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Crítica
1 de Agosto de 2008   História da filosofia

As confusões de Heidegger

Paul Edwards
Tradução de Vítor Guerreiro

Em tempos, Bertrand Russell referiu-se a Kant como a maior catástrofe na história da filosofia. C. D. Broad comentou que este lugar pertencia seguramente a Hegel. Tanto Russell como Broad se enganaram, porque este título pertence sem dúvida a Martin Heidegger.

Há alguns anos, Anthony Quinton falou nas “solenes e disparatadas questões de lana caprina” de Heidegger. Até há bem pouco tempo, Heidegger não era levado a sério por filósofos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Infelizmente esta situação mudou. Um dos objectivos do presente estudo é remar contra esta maré de irracionalidade.

Extravagâncias neurais e o maior perscrutador deste século

Martin Heidegger morreu em 1976. No seu funeral, Bernhard Welte, padre católico e professor de filosofia cristã da religião na Universidade de Friburgo, pronunciou um breve discurso, em que descreveu o “caminho” de Heidegger como o daquele que foi “porventura o maior perscrutador deste século”. O pensamento de Heidegger, comentou também Welte, “abanou o mundo e o século”.1 Se a importância de um filósofo se mede pela quantidade de comentários que a sua obra recebeu e pela quantidade de traduções dos seus livros, a observação do Padre Welte é bastante exacta. Escreveu-se mais livros e artigos, sobretudo de carácter devoto, acerca de Heidegger do que acerca de qualquer outro filósofo do século XX, e os seus livros foram traduzidos não só para francês, inglês, italiano e castelhano, mas também para árabe, chinês, croata, checo, japonês, coreano, português, romeno e diversas outras línguas. Retirei esta informação da enorme compilação Martin Heidegger: Bibliography and Glossary, uma obra com mais de quinhentas páginas que foi editada por Hans-Martin Sass e publicada em 1982 pelo Centro de Documentação Filosófica em Bowling Green. Sass não inclui quaisquer traduções para hebraico. Isto é talvez um facto feliz — é certo que os judeus já sofreram o suficiente.

O Padre Welte dificilmente será um filósofo ou um teólogo de renome internacional, mas diversas figuras influentes têm prestado tributos igualmente entusiásticos. Assim, na sua autobiografia, Hans-Georg Gadamer descreveu Heidegger como um “perscrutador do ouro do discurso e do pensamento”2 que “radiava uma aura incomparável”3 e cujas palestras exibiam “a energia brilhante de um pensador revolucionário”.4 “Por que negar”, pergunta Gadamer, que “é uma vantagem ter um génio por professor?”5 Num discurso em honra do septuagésimo quinto aniversário de Heidegger, publicado em 1972 nos seus Kleine Schriften, Gadamer afirmou que se podia detectar o génio de Heidegger só de olhar para ele. “O primeiro encontro breve com o seu olhar mostrou-me o que ele era”, escreve Gadamer, “um visionário — um pensador que vê”.6 Não só os olhos de Heidegger mas também a sua voz impressionaram grandemente Gadamer. Reparou que quando nas suas palestras Heidegger alcançava “as fronteiras extremas do pensamento”, a sua voz, normalmente grave, ficava peculiarmente limitada ao registo agudo. Finalmente, no clímax do confronto com o derradeiro, a tensão tornava-se quase insuportável e a voz de Heidegger cedia por completo. A linguagem de Heidegger provocou uma impressão igualmente profunda em Gadamer. Parecia na verdade tão mágica que fazia Gadamer pensar no oculto. As palavras e expressões de Heidegger tinham “um poder pitoresco inigualado por quaisquer contemporâneos filosóficos”. Tornavam o mental tão “tangível” que não se podia evitar relembrar os fenómenos de materialização relatados na bibliografia do oculto.7 Talvez seja interessante notar que Karl Löwith, que foi próximo de Heidegger durante uma série de anos, nos deixou uma descrição algo diferente. “Heidegger nunca era capaz de olhar directamente para alguém durante muito tempo”, escreve Löwith. Tinha testa nervosa, rosto velado e olhar descaído. Se durante uma conversa, prossegue Löwith, “o forçássemos a olhar directamente para nós, a sua expressão tornava-se impenetrável e insegura, visto que lhe era negada a abertura nas relações com os outros”.8

Em 1969 a televisão alemã celebrou o octogésimo aniversário de Heidegger com uma série de palestras em louvor dos seus importantes feitos. Um dos oradores era o bem conhecido teólogo católico Karl Rahner. Dirigindo-se a Heidegger como seu “mestre”, disse aos telespectadores que embora tenha tido muitos bons “mestres-escola”, tinha apenas “um a quem podia chamar, reverentemente, professor”. Reconheceu agradecidamente que Heidegger “nos ensinou a ser capazes de procurar em cada coisa e em todas aquele segredo inefável que “nos subjuga"9. O “segredo inefável” que “nos subjuga [verflügt]” é o Ser de Heidegger.

Ao contrário de Rahner, a falecida Hannah Arendt não era teóloga nem sequer crente em deus. Também não acreditava, tanto quanto sei, que haja um “segredo inefável” em cada coisa e em todas, mas deu-nos uma avaliação igualmente extática da façanha filosófica de Heidegger. “O vento que sopra através do pensamento de Heidegger, como aquele que ainda nos chega, após milhares de anos, das obras de Platão”, escreve, com uma incaracterística veia lírica, “não vem do século em que ele incidentalmente vive. Vem do primevo, e o que deixa para trás é algo perfeito, algo que, como tudo o que é perfeito (nas palavras de Rilke), regressa às suas origens”.10 Não temos qualquer informação posterior acerca deste notável vento e do seu igualmente notável depósito.

Há não muito tempo, era quase impossível encontrar um defensor de Heidegger entre filósofos anglo-saxónicos respeitáveis. Esta situação mudou nos últimos anos. Arroubos extáticos como os de Gadamer, Rahner ou Arendt são ainda raros, mas uma série de filósofos de algum renome aclamaram Heidegger como um dos grandes pensadores do século XX. Em destaque entre estes está indubitavelmente Richard Rorty, que tem amontoado encómios à obra de Heidegger desde o seu artigo “Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey”, originalmente publicado em 1974 na Review of Metaphysics e reimpresso no seu Consequences of Pragmatism (1982).11 No seu bem conhecido livro Philosophy and the Mirror of Nature, Rorty inclui Heidegger juntamente com Hegel, Marx, Frege, Freud e Wittgenstein, numa lista de “homens de génio que pensaram algo novo”.12 Mais atrás, no mesmo livro, Heidegger é apelidado “um dos três filósofos mais importantes do século”,13 sendo os outros Dewey e Wittgenstein. Isto faz eco de uma afirmação no artigo anterior, em que se descreve estes três como “os filósofos mais ricos e originais do nosso tempo”.14 Este artigo contém alguns comentários críticos posteriormente lamentados no prefácio de Consequences of Pragmatism. A perspectiva que Rorty dá de Heidegger nas páginas finais do seu artigo anterior, que agora julga ter sido “inapropriadamente desfavorável”,15 e declara a intenção de se desculpar com um livro sobre Heidegger que “agora” redige.16 É uma grande infelicidade que tal livro não tenha sido publicado, pois aí Rorty poderia dar alguma razão para a sua rejeição daqueles que não vêem mérito algum em Heidegger, Foucault ou Derrida, enquanto “ignorantes afectados”.17

Embora o prometido livro de Rorty sobre Heidegger nunca tenha aparecido, a publicação de Heidegger e o Nazismo por Victor Farias deu-lhe mais uma oportunidade de se exprimir com algum detalhe acerca deste assunto. Farias é um chileno que estudou com Heidegger e agora ensina na Universidade Livre de Berlim.18 Farias não conseguiu encontrar um editor alemão, mas no final de 1987 apareceu uma tradução francesa da sua obra, que recebeu a apreciação crítica de Rorty no New Republic de 11 de Abril de 1988. Tem sido costume nos seguidores de Heidegger desculpar o apoio deste ao regime nazi com base em que ele era um nacionalista alemão acrítico sem qualquer apreensão das realidades práticas.19 Rorty nunca tentou desculpar desta maneira a conduta de Heidegger, e chama correctamente a atenção para que tal apologia diverge abertamente de muitos factos que eram letra comum muito antes das revelações recentes. Rorty não encontra palavras suficientemente fortes para condenar Heidegger, o homem. Este era uma “grandessíssima peste — um cobarde e mentiroso, do princípio ao fim”. Um “labrego megalómano anti-semita”. Heidegger tinha na verdade muito em comum com o próprio Hitler: “retórica racial, anti-semitismo, autodelusão... e o desejo de fundar um culto”.20 Nada disto, contudo, devia fazer a mínima diferença para o nosso ajuizamento da sua filosofia, e Rorty reitera a sua perspectiva de que Heidegger “foi o filósofo mais original que tivemos este século”. Temos simplesmente de compreender que, quer gostemos quer não, não se pode correlacionar a grandeza na filosofia com a decência e a bondade, como não o fazemos com a grandeza na matemática e na microbiologia. É “o resultado de alguma extravagância neural que ocorre independentemente de outras extravagâncias”.

Paul Edwards
Heidegger’s Confusions (Prometheus Books, 2004).

Notas

  1. “Seeking and Finding: The Speech at Heidegger's Burial”, em Heidegger, the Man and Thinker, org. T. Sheehan (Chicago: Precedent, 1981), p. 73.
  2. Hans-Georg Gadamer, Philosophical Apprenticeships (Cambridge, MA: MIT Press, 1985), p. 52.
  3. Ibid, p. 45.
  4. Ibid, p. 48.
  5. Ibid.
  6. Hans-Georg Gadamer, Kleine Schriften (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1972), p. 204.
  7. Ibid.
  8. Karl Löwith, Mein Leben in Deutschland vor und nach 1933 (Estugarda: Metzlersche, 1986), p. 43. Elizabeth King traduziu este relato para inglês com o título My Life in Germany before and after 1933 (Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1944). O livro de Löwith, que foi escrito em 1940 durante o seu exílio no Japão, é um dos mais comoventes relatos da degradação da vida académica alemã antes e durante os anos do nazismo. O seu retrato de Heidegger é devastador.
  9. Citado em R. Wisser, org., Martin Heidegger im Gespräch (Firburgo e Munique: K. Alber, 1970), pp. 48-49, os itálicos são todos de Rahner.
  10. Hannah Arendt, “Martin Heidegger at Eighty”, New York Review, 21 de Outubro de 1971; reimpresso em M. Murray, org., Heidegger and Modern Philosophy (New Haven, CT: Yale University Press, 1978), p.303.
  11. Rorty foi um dos signatários de uma carta publicada no New York Review of Books em 2 de Abril de 1981, defendendo as traduções Harper e Row das obras de Heidegger contra algumas críticas de Thomas Sheehan. A carta, que foi também assinada por Stanley Cavell, Hubert Dreyfus, Karsten Harries, John Haugeland e David Hoy, exprimia a gratidão ao editor e ao falecido Glenn Gray por tornar acessíveis aos leitores de língua inglesa as obras “deste filósofo imensamente importante e difícil”.
  12. Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1979), p. 264.
  13. Ibid, p. 5.
  14. Richard Rorty, Consequences of Pragmatism (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982), p. 51.
  15. Ibid, p. ix.
  16. Rorty informou-me que já não planeia escrever um livro.
  17. London Review of Books, 3 de Setembro de 1987.
  18. O New York Review of Books, 6 de Junho de 1988, contém um artigo excelente de Thomas Sheehan, que dá as passagens fundamentais do livro de Farias e a investigação semelhante mas mais cuidadosa, levada a cabo pelo historiador Hugo Otto, que publicou numerosos artigos acerca das actividades de Heidegger durante o período nazi.
  19. Encontra-se exemplos típicos deste tipo de apologia na introdução de William Barrett à secção “Phenomenology and Existentialism”, em Philosophy in the Twentieth Century, org. William Barrett e Henry D. Aiken (Nova Iorque: Random House, 1962), p. 163, e em Hannah Arendt, “Martin Heidegger at Eighty”, pp. 302–303.
  20. Rorty exagera o anti-semitismo de Heidegger. É verdade que Heidegger não proferiu uma palavra de pesar pelo holocausto e que nada fez para ajudar muitos dos seus alunos judeus, mas não atormentou nem perseguiu activamente judeus. Sheehan, Heidegger, The Man and Thinker, pp. 39-40, dá uma avaliação prudente da atitude de Heidegger para com os judeus. A esse respeito, Löwith, Mein Leben in Deutschland, p. 40, absolve Heidegger, chamando a atenção para que alguns oficiais do partido desconfiavam de Heidegger por causa da sua aparente ausência de anti-semitismo.
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