A hermenêutica, a “arte da interpretação”, era originalmente a teoria e o método de interpretação da Bíblia e de outros textos difíceis. Wilhelm Dilthey a alargou à interpretação de todas as criações e atos humanos, incluindo a história e a interpretação da vida humana. Heidegger, em Ser e Tempo (1927), esboçou uma “interpretação” do ser humano, o ser que, em si mesmo, compreende e interpreta. Sob sua influência, a hermenêutica se tornou um tema central na filosofia continental, gerando várias controvérsias. Ao interpretar algo, desenterramos os pensamentos e as intenções do autor, imaginando-nos em sua posição, ou relacionamo-lo a um todo mais amplo que lhe dá significado? Essa última perspectiva produz um círculo hermenêutico: não podemos compreender o todo (um texto, por exemplo) sem compreender suas partes, ou compreender as partes sem compreender o todo. Heidegger descobriu outro círculo: já que inevitavelmente trazemos pressupostos para o que interpretamos, significa isso que toda interpretação é arbitrária, ou ao menos infinitamente passível de revisão?
A palavra grega hermeneuein significa expressar, explicar, traduzir ou interpretar; hermeneia é interpretação e assim sucessivamente, muitas vezes interpretação de uma mensagem sagrada. Platão chamou os poetas de hermenes — intérpretes — dos deuses. Filósofos interpretaram Homero de forma alegórica. Agostinho interpretou o Velho Testamento como alegoria, usando conceitos neoplatônicos e atribuindo a ascensão da alma ao seu sentido espiritual acima dos sentidos morais e literais do texto. A interpretação alegórica se manteve como padrão durante toda a Idade Média. Com a Reforma, especialmente na Alemanha, a hermeneia se tornou mais explícita e sistemática. A palavra hermeneutica, a “arte da interpretação”, apareceu em 1654 no título de uma obra de J.C. Dannhauer, Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum. Protestantes tiveram de interpretar devidamente a Bíblia: recorreram a ela contra o Catolicismo Romano. Rejeitaram a interpretação alegórica e insistiram no sentido exato do texto, esperando resgatar seu significado de distorções introduzidas pela Igreja e pela escolástica. A exegese bíblica não continuou isolada da interpretação de outros textos. Espinosa, no Tractatus theologico-politicus (1670 cap. VII: §94), afirmou que “o padrão da exegese bíblica pode apenas ser a luz da razão comum a tudo”. Para Espinosa, a exegese bíblica se tornou um criticismo bíblico, o que envolveu a história. Posto que os relatos de milagres estão aquém dos padrões racionais das crenças, devemos explicar por que os autores da Bíblia e seus contemporâneos acreditavam em milagres.
Johann Ernesti afirmou em seu manual de hermenêutica (1761: 7) que o “sentido verbal da Escritura deve ser determinado do mesmo modo que apuramos o sentido verbal de outros livros”. Outros textos que precisavam ser interpretados eram os documentos legais e as obras da antiguidade clássica, e estas disciplinas também contribuíram para a hermenêutica. Avanços significativos foram feitos por dois classicistas: Friedrich Ast e Friedrich August Wolf. Ast, em Grundlinien der Grammatik, Hermeneutik und Kritik (Elementos de Gramática, Hermenêutica e Criticismo) (1808), discriminou diferentes níveis da compreensão de um texto. O primeiro é “histórico”, que estabelece o texto autêntico comparando diferentes manuscritos e utilizando o conhecimento da história além de outros escritos do período; a esta compreensão corresponde à “hermenêutica da letra”. O segundo é gramatical, e corresponde à “hermenêutica do sentido”: compreendemos o significado das palavras e frases no texto. O terceiro é espiritual: a partir do sentido literal ascendemos ao espírito (Geist) do autor e de sua sociedade (“espírito” significa “perspectiva”, “mentalidade” ou “visão de mundo”; não precisa ter conotação psicológica ou teológica). Em suas palestras publicadas na “enciclopédia de estudos clássicos” de 1785 a 1807, Wolf definiu a hermenêutica como a “ciência das regras pelas quais é discernido o significado dos signos” (1831: 290). Seu objetivo é “apreender os pensamentos escritos ou simplesmente falados de outrem do mesmo modo como teríamos os nossos apreendidos” (1831: 293). Isto envolve não somente o conhecimento da linguagem do texto, mas também conhecimento histórico, da vida do autor, da história e da geografia de seu país. Um intérprete deveria conhecer idealmente tudo o que o autor conhecia. Wolf propôs várias regras para lidar com problemas de interpretação, mas insistiu que um intérprete precisa uma “leveza da alma” que “rapidamente o harmoniza com pensamentos estranhos” (1831: 273). Conhecer regras não é suficiente: precisamos de uma habilidade na aplicação de regras que nenhuma regra pode garantir.
Friedrich Schleiermacher reuniu essas teorias parciais em uma única disciplina, abarcando a interpretação de todos os textos, independente de gênero e de doutrinas (ele interpretou Heráclito e Platão, bem como a Bíblia). Em cada nível de interpretação estamos envolvidos em um círculo hermenêutico. Não podemos saber a leitura correta de uma passagem no texto a menos que conheçamos, grosso modo, o texto como um todo; não podemos conhecer o texto como um todo a menos que conheçamos determinadas passagens. Não podemos conhecer o significado de uma palavra a menos que saibamos os significados das palavras que a rodeiam, e do texto como um todo; conhecer o significado do todo requer o conhecimento de palavras individuais. Não podemos compreender o texto por completo a não ser que conheçamos a vida e a obra do autor como um todo, o que requer o conhecimento de textos e outros acontecimentos que constituem sua vida. Não podemos compreender um texto por completo a não ser que conheçamos por completo a cultura que deu origem ao texto, o que pressupõe o conhecimento dos textos e acontecimentos que constituem a cultura. Não só existe a circularidade em cada nível de interpretação como também entre os níveis. Não podemos escolher uma leitura correta de uma passagem particular a não ser que já saibamos alguma coisa sobre o seu significado, e também sobre a vida ou cultura do autor. Não obstante, como devemos adquirir esse conhecimento, se não a partir de textos como esse?
O círculo hermenêutico é menos misterioso do que freqüentemente parece. Um texto não tem de ser invariavelmente problemático. Um manuscrito irremediavelmente adulterado (ou um livro com erros de impressão) pode ser indecifrável. Mas se os manuscritos são confiáveis na parte principal do texto, o intérprete emprega o conhecimento dessa parte nas outras em que os manuscritos estão adulterados. Nem todas as palavras e frases são obscuras de modo idêntico; o relativamente transparente fornece um indício ao relativamente opaco. Portanto, a compreensão é uma questão de graus. Não posso compreender um texto por completo a não ser que compreenda por completo cada palavra e cada frase, e não posso compreender uma palavra ou uma frase por completo a menos que compreenda o todo. Se a compreensão completa e a incompreensão vazia fossem as únicas alternativas, eu não poderia compreender um texto de qualquer tamanho ou complexidade. No entanto, a compreensão não funciona assim: posso compreender um texto de maneira aproximada sem compreendê-lo por completo, e a compreensão aproximada me permite decifrar partes específicas.
Em 1813, Schleiermacher escreveu: “Pensamento e expressão são íntima e essencialmente a mesma coisa” (1959: 21). Isso sugere que o que compreendemos é o sentido literal de um texto, o que as palavras significam ou significavam. Em 1819, escreveu: “A arte só pode desenvolver suas regras a partir de uma fórmula positiva, que é esta: a reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso” (1959: 87). Isso sugere que existe algo mais a dizer sobre o pensamento de um autor do que o significado de suas palavras, e que o intérprete deve desenterrar o pensamento. O pensamento deve diferir do significado das palavras por diversas razões: a má expressão por parte dos autores, o deslize da caneta ou da língua, a ausência de habilidade verbal ou o emprego imprudente das palavras. (Quando alguém fala “mitigando contra”, ou escreve “vale novar que…”, partimos do princípio de que esse alguém queria dizer “militando contra” e “vale notar que…”.) Para entender um discurso por completo, muitas vezes vamos além do significado das palavras e questionamos as intenções do autor: quisera ele dizer isso com seriedade ou como uma piada? Ele quis dizer isso ou aquilo com a palavra? Estava o autor fazendo uma crítica desta ou daquela forma? De modo oposto, podemos discernir mais nas palavras do autor do que podemos atribuir plausivelmente aos seus pensamentos conscientes, e invocar seus pensamentos inconscientes ou o “espírito” do autor ou sua cultura. Ou podemos apelar à audiência. A pergunta “O que esse texto significa?” pode ser desdobrada de duas maneiras: (1) “O que o autor quer/quis dizer com o texto?”, (2) “O que o texto quer/quis expressar para a audiência”. Esses desdobramentos podem, por sua vez, ser interpretados de diferentes maneiras. O que constitui o autor e seu significado? Devemos restringir isso às intenções e aos pensamentos conscientes do autor, ou devemos incluir suas intenções e seus pensamentos subconscientes, ou ainda o espírito de sua época, admitindo isso como parte de sua autoria. Quem é a audiência? Pode ser os contemporâneos do autor, ou uma audiência posterior, como nós mesmos. É improvável que as respostas às duas questões coincidam, se o autor e a audiência pertencem a diferentes épocas e culturas. O que Shakespeare pretendia expressar com Hamlet não é o que Hamlet expressa para uma audiência moderna, a menos que essa audiência consista em habilidosos hermeneutas. É mais provável que as respostas sejam equivalentes se a audiência for contemporânea do autor; então, a audiência e o autor partilham do mesmo “espírito”, mesmo que não tenham a mesma competência criativa.
Quando Schleiermarcher quis reconstruir o significado verbal de um texto, na crença de que “o pensamento e sua expressão” são coisas idênticas, respondia à pergunta “O que o texto quer dizer para sua audiência contemporânea, culta?”. Quando tentou reconstruir o pensamento do autor, na crença de que o pensamento não necessita ser a mesma coisa que sua expressão, respondia à pergunta “O que quer dizer o autor através do texto?” Como podemos saber o que Shakespeare quis dizer (isto é, o que ele tinha em mente)? Podemos sabê-lo da mesma maneira que sabemos o que um contemporâneo, com o qual discutimos, tem em mente? Nossas mentes não são tão diferentes da de Shakespeare; existe uma “afinidade espiritual” entre nós. Se adquirirmos conhecimento suficiente sobre sua vida e obra, podemos imaginativamente por-nos no seu lugar, reproduzindo seu pensamento. É possível por-mo-nos no lugar de outrem; romancistas freqüentemente o fazem. É duvidoso se precisamos fazer isso para saber o que alguém está pensando: posso saber que um cão quer um osso sem imaginativamente reproduzir em mim o seu querer.
O contacto de Whilhelm Dilthey com a hermenêutica está relacionada à sua preparação teológica, embora a tenha utilizado para responder à pergunta “Como se diferenciam as ciências humanas ou sociais das ciências naturais?” Enquanto as ciências naturais explicam (erklären), as ciências sociais compreendem (verstehen). Compreendem não somente textos e discursos, mas qualquer “objetivação” significativa ou “expressão” da vida humana: gestos, ações, nossa própria vida ou de outrem, pinturas, instituições, sociedades, eventos passados. Existem dois tipos de compreensão. Primeiro, a compreensão de expressões simples como um discurso, uma ação, um gesto ou o medo. Aqui não há qualquer abismo entre a expressão e a experiência expressada: compreendemos imediatamente sem nenhuma inferência. Tal compreensão pressupõe um termo médio “comum ao Eu e ao Você”, um “espírito objetivo” no qual ocorrem a expressão e a compreensão: a cultura e a linguagem compartilhadas. Segundo, existem “formas mais elevadas de compreensão”, que lidam com todos complexos, como a vida ou um trabalho artístico. Uma parte possui um significado (Bedeutung) apreendido pela compreensão elementar, o todo possui um sentido (Sinn) resultante da composição ordenada de suas partes e apreendido pela compreensão mais elevada. A compreensão mais elevada é geralmente provocada por uma falha da compreensão elementar. Se não consigo compreender imediatamente a ação de uma pessoa, investigo sua cultura ou sua vida como um todo. Se não consigo compreender uma frase, devo interpretar o livro inteiro.
Muitas vezes a compreensão elementar é insuficiente porque a pessoa — o autor de um texto, um gesto ou uma ação — é invulgar, e não pode ser compreendida pelos cânones normais do espírito objetivo. Para compreendermos o que o autor diz ou faz, precisamos compreendê-lo em sua individualidade. Portanto, a compreensão mais elevada geralmente envolve a compreensão dos indivíduos, e não somente a compreensão geral apropriada para a vida diária. Também me compreendo a mim mesmo: através da compreensão elementar, sei imediatamente que estou com fome, com ciúmes e assim por diante, sem recurso às minhas expressões. Pela compreensão mais elevada dou sentido a mim mesmo, à minha vida como um todo. Novamente, a compreensão mais elevada pode ser estimulada por uma falha da compreensão imediata: como posso estar com ciúmes, me pergunto, ou como posso ter feito isso? Na compreensão mais elevada de mim mesmo, torno-me ciente de minha individualidade, do que me diferencia dos outros.
Na década de 1890, Dilthey considerou a psicologia a fundação das ciências sociais. Posteriormente, a hermenêutica tomou o lugar da psicologia. O que é de interesse para as ciências sociais não é a “alma”, o processo psicológico do indivíduo, mas o “espírito”, o mundo cultural compartilhado. O significado de uma brincadeira é independente da “alma” do autor. Ainda que uma obra expresse alegria ou tristeza, esses são estados não do autor mas da “pessoa ideal” em cuja boca o autor coloca a sua experiência. A vida psicológica, mesmo a do próprio sujeito, é conhecida através da interpretação de suas expressões: “O homem só conhece a si mesmo na história, nunca pela introspecção” (1981: 348). A interpretação da história não apreende a essência humana numa fórmula. Ela nos revela as diversas possibilidades da humanidade, libertando-nos dos confins do presente.
Dilthey sustentava que os estudos históricos dependem da nossa consciência da vida humana como um todo “histórico”, coerente, imbricado num contexto histórico. Martin Heidegger também fazia a conexão de questões sobre o significado de textos históricos com questões sobre o sentido da vida. Textos como as cartas de São Paulo não podem ser compreendidos tendo como base somente os dicionários e as gramáticas; temos de entender as vivências e a situação do autor e de sua audiência. Em qualquer texto, especialmente naqueles que apresentam certa dificuldade, como os de Aristóteles, precisamos investigar nossa “situação hermenêutica”, a situação que, modelada pelo passado, impõe sobre nós os pressupostos que trazemos para a compreensão do texto. Estariam corretos os termos em que interpretamos Aristóteles? Se não, como podemos explicar essa degenerescência aparente em nosso aparato conceitual? Essas são questões sobre o presente, e não somente sobre a filosofia contemporânea, mas sobre a vida contemporânea e nossa tendência em interpretar mal o passado. Dessa forma, Heidegger desloca-se, em sua conferência de 1923, para uma “hermenêutica da facticidade, uma interpretação do ser humano (“Dasein”) e da vida cotidiana.
Ser e Tempo (1927), de Heidegger, é uma “hermenêutica” em vários sentidos. Explora a própria compreensão e interpretação do Dasein: o Dasein compreende e interpreta, não incidentalmente e esporadicamente, mas essencialmente e constantemente. Ele compreende — conhece seu modo no mundo como um campo para suas próprias atividades. Interpreta os entes no mundo — vê uma mesa como uma mesa, uma cadeira como uma cadeira. Tal compreensão e interpretação são anteriores às ciências. Antes de interpretar um documento, vejo-o como documento; antes de fazer geologia, vejo rochas como rochas. A interpretação envolve pressupostos: para interpretar algo como um livro, devo estar familiarizado com um mundo em que os livros tenham o seu lugar, um mundo de cômodos, mobília, estantes, leitores. O Dasein também se interpreta a si mesmo. Ele se considera, por exemplo, como um sapateiro ou um marujo. Considera sua própria vida de certa maneira. Implicitamente na vida cotidiana, mais explicitamente na filosofia, o Dasein interpreta-se de modo incorreto — como um animal racional, uma substância pensante, ou uma máquina.
Heidegger descreve as características essenciais do Dasein, incluindo a interpretação e a interpretação de si. Posto que os próprios filósofos são o Dasein, eles manifestam as mesmas tendências que o Dasein em geral. Por essa razão, no estudo do Dasein, eles o compreendem e o interpretam, dando continuidade, num plano conceitual e mais elevado, à interpretação de si que é uma característica inevitável de todo o Dasein. Como toda interpretação, a de Heidegger envolve pressupostos: a compreensão preliminar do Dasein que todo o Dasein possui, um certo modo de ver o Dasein (com relação ao seu “ser”, em vez de, digamos, suas características biológicas), e conceitos para serem a ele aplicados, como “existência”.
A interpretação do Dasein e do ser em geral envolve a interpretação de textos. Posto que o Dasein se interpreta de modo incorreto, devemos remover as camadas de interpretação incorreta para que possamos vê-lo como é. Essas interpretações incorretas, em sua pureza original, ocorrem em filósofos como Kant, Descartes e Aristóteles, por exemplo. Estudamo-los para perceber o que fizeram de correto e onde se perderam, para revelar e avaliar sua influência em nossa situação hermenêutica e, quando apropriado, para nos libertar de sua influência. Heidegger interpreta tais textos principalmente em suas últimas obras, mas Ser e Tempo prefigura esse processo. As palavras não têm significados fixos e unívocos independentemente de seu uso e aplicação. Os significados acumulam-se nas palavras a partir de inter-relações que constituem nosso mundo. Um “martelo” não é simplesmente um “utensílio para bater”: o significado da palavra deriva do contexto de bancada, pregos, madeira, oficina e consumidores que constituem o “mundo” do artesão. O que significa uma palavra depende do mundo de seu usuário: por “transporte”, “liberdade” ou “educação”, Aristóteles não quer dizer o mesmo que nós, dado que vivia num mundo diferente. Para compreender um texto, precisamos ir além dos dicionários e gramáticas para reconstruir o mundo do autor e as “possibilidades” por ele oferecidas.
Posteriormente, Heidegger evitou a palavra “hermenêutica”. No entanto, continuou a interpretar textos, tanto poéticos quanto filosóficos, em sua investigação do “sentido do ser”. Ele tergiversou com relação ao fato de podermos ou não interpretar um texto definitivamente. Nossas interpretações do passado estão vinculadas à nossa situação hermenêutica, e abertas a revisão futura. Ser e Tempo sugere que o significado de um evento (ou de uma vida), se não de um texto, é o que ele significa para nós/mim, dependendo da significância a ele conferida por nós/mim através de (e nas) nossas/minhas decisões para o futuro. Conversamente, afirma — apesar de toda a sua “violência” perante o texto literal — pôr a descoberto o significado de Aristóteles, por exemplo, sem qualquer alusão ao facto de a sua própria interpretação poder ser vista mais tarde, com igual justificação, como mais uma interpretação incorreta. De todo modo, o círculo hermenêutico agora abarca intérpretes e seus pressupostos, bem como o texto, o autor e sua cultura. A compreensão prévia do todo, que Schleiermacher e Dilthey viam como uma exigência para a interpretação da parte, só pode surgir a partir dos próprios pressupostos do intérprete. Estes, entretanto, devem ser revisadas no decorrer da interpretação.
A hermenêutica de Heidegger tem sido explorada por Bultmann, Ricoeur e Derrida, mas seu seguidor mais próximo é Gadamer. Gadamer também afirma que voltamos a captar o contexto em que um autor escreveu tendo em consideração a audiência pretendida e as questões a que o autor respondia. A interpretação pressupõe uma “pré-compreensão” historicamente determinada, um “horizonte”; envolve uma “fusão de horizontes”, os horizontes do passado e do presente. Não podemos ter a certeza de que a nossa interpretação é correta ou melhor do que interpretações anteriores. A nossa interpretação, e o nosso veredicto sobre interpretações anteriores, está sujeita a revisão futura. Ao interpretar um texto do passado, investigamos nossa pré-compreensão tanto quanto o texto em si.
Com Gadamer e outros, a hermenêutica retornou às suas raízes antigas e medievais. Não mais perguntamos por aquilo que um autor queria dizer com um texto, mas o que o texto nos quer dizer a nós, ou para nós. A justificação medieval disso é o fato de que Deus, o autor último do texto, pode inscrevê-lo em qualquer sentido que escolher, seja alegórico ou anacrônico. Os modernos justificam isso através do apelo à não existência, indeterminação, inacessibilidade ou irrelevância das intenções do autor, ou do apelo aos pressupostos historicamente variáveis da interpretação. O alargamento de Dilthey da hermenêutica às vivências e eventos históricos dá suporte a essa tendência. O “significado” da Revolução Francesa não pode ser o que seu(s) autor(es) quis(eram) dizer com ela, ou ainda o que significou para a audiência que lhe era contemporânea. É o que ela “quer dizer” para as audiências posteriores e sucessivas, ou mesmo o que fazem dela por seus próprios planos e decisões. Poucos argumentam, entretanto, que a interpretação de um texto está inteiramente relacionada com o capricho do intérprete. Isso subverteria a comunicabilidade do ceticismo dos hermeneutas ao permitir que os oponentes interpretem a sua expressão da maneira como bem quiserem.