A base mais segura para discutirmos o surgimento do antigo pensamento chinês esta afixada na figura do sábio Kungzi (VI a.C.), que os missionários portugueses do século XVI chamaram de Confúcio. Comprovado historicamente, e a primeira das figuras a indignar-se com a crise de sua época, Confúcio pregava a reestruturação social de sua civilização tendo como modelo o passado ideal dos Zhou, mas através de uma metodologia totalmente inovadora.
Embora se visse desta forma, a idéia de resgatar o passado não lhe transformava num conservador marcado: Confúcio examinou as causas da corrupção de sua sociedade, e concluiu que a degradação era promovida pelo não cumprimento das vontades da natureza (Tian). O desconhecimento dessas causas era gerado pela falta de educação, e, por conseguinte, para que as pessoas pudessem compreender o caminho (Dao), era necessário que estudassem. Estudando, podiam entender como funcionava a sociedade, os costumes, e assim sendo, poderiam segui-los. No entanto, o próprio Confúcio achava que sua proposta ética não podia pautar-se em nenhum critério religioso: “se não se sabe servir em vida, como podemos esperar compreender a morte?” (LY, 11:2)
O Ideal de Confúcio era que todos estudassem e se transformassem em “seres superiores” (junzi, ou nobreza da alma), titulação que não denota nenhum título nobiliárquico, mas sim, moral e ético. A superioridade aí descrita é a compreensão da principal virtude do ser, o Ren. Esta palavra é de difícil tradução: o ideograma é composto pelo radical ser humano e o número dois. Isso representa a junção de duas pessoas, o que pode ser entendido como ajuda, altruísmo, benevolência, caridade, união.
M. Granet (1997) acreditava que a melhor tradução possível deste termo era humanismo, já que Confúcio era favorável a um tipo de ajuda dignificante, que aperfeiçoasse o ser, em detrimento da caridade pura e simples, que ao seu ver gerava apenas dependência. Chan (1979) apontou muito bem o fato do próprio Confúcio não ter explicado muito bem o termo, privilegiando, provavelmente, a sua prática. Isso fica claro nas suas máximas “ame a todos, sem distinção”, “não faça aos outro o que não quer que lhe seja feito” e “desejando ter êxito, procure ajudar os outros a ter êxito também” (LY, 12:22, 6:28)
Na proposta confucionista, o estudo em si, porém, não bastava: convinha que as pessoas atentassem a sua conduta: “raciocinar sem estudar é frívolo: estudar sem raciocinar é perigoso” (LY, 2:15), “retribui sempre com a bondade” (LY, 14:36), e busca sempre “conhecer os homens” (LY, 12:22).
Esta fé na retificação do ser humano está contida em três livros da escola Confucionista, que são o Lun Yu (Analectos, ou Conversações), o Da Xue (Grande Estudo) e o Zhong Yong (O Justo Meio, Harmonia Central, Doutrina do Meio, entre outras traduções possíveis). È possível que só o primeiro tenha sido realmente feito com ditos do próprio Confúcio. O Zhong Yong teria sido escrito pelo neto de Confúcio, Zisi, representando um amadurecimento das idéias desta escola e abrindo espaço para o surgimento de Mengzi (Mêncio), autor que deu nome ao quarto livro do Cânon Confucionista.
O Zhong Yong deixava claro que o caminho do ser estava contido na analise individual constante e na preocupação com o coletivo: “aquilo que o céu outorgou se chama natureza, e a harmonia com este princípio é o caminho; a ordenação deste caminho é a cultura” (ZY, 1)
Meng zi (Mêncio), no século IV a.C., iria desenvolver esta idéia da Cultura ligada a natureza, concluindo que, se a cultura é uma construção do Ser proveniente do natural (ou seja, é um desenvolvimento do mesmo), logo, a natureza do Ser e das coisas é construtiva e boa (MZ, VI, 1:2). A corrupção, por conseqüência, é resultado da ignorância (MZ, VI, 1:6 e VII, 1:15).
Esta perspectiva idealista iria se desdobrar em sua obra, fomentando seu discurso a favor do povo e contra o abuso. Para Mêncio, a vontade das classes baixas era a vontade do Céu, por ser a mais pura: a elite, por conseguinte, devia prestar atenção nos seus atos, já que era a mais educada e, no entanto, a que mais praticava a corrupção. Isto não era uma contradição para Mêncio: na verdade, todas as classes se viam imersas na Cultura: o povo, porém, era o que estava mais próximo daquilo que se exigia dele, conquanto os grupos superiores da sociedade, apesar de “instruídos”, se deixavam levar por seus interesses mesquinhos. Logo, a questão não era mais apenas o esforço no trabalho e pela instrução, mas a “qualidade” e a “prática” do “estudo”. E os pobres, mesmo sabendo pouco, e tendo o direito de errar, ainda assim buscavam agir de forma correta.
Xunzi (Hsun tse) discordou, no entanto, dessa visão otimista de Mêncio. Ambos foram praticamente contemporâneos, embora não tenham se encontrado. Xun zi era totalmente avesso a idéia de bondade natural do seres. Para ele, ocorria justamente o contrário: todos nasciam maus, e assim o seriam se não fossem educados. Em tempos de fome, guerra e escassez, os seres humanos mostravam sua selvageria, matando-se uns aos outros, tais como animais. Na natureza, alias, a caça e a destruição são constantes, inerentes ao ciclo cósmico. Logo, a natureza do ser é má; mas poderia ser modificada pela educação (XZ, 23).
Novamente vemos a recorrência da necessidade do estudo para o conhecimento das virtudes. Xun zi acreditava que a cultura era uma construção humana para sua própria preservação, e apenas aqueles que não fossem instruídos tornar-se-iam elementos perigosos. Um mínimo de noção de civilidade tornava qualquer ser mais sociável. O Ser, mau por natureza, “precisava de professores e leis” (XZ, 23) para ser modificado. No entanto, se tal mister fosse alcançado, haveria uma harmonia perfeita (XZ, 17).
Xun zi aperfeiçoou, ainda, a questão da retificação dos nomes (XZ, 22). Introduzida por Confúcio, ela tratava da necessidade de verificar como eram aplicados e entendidos certos conceitos, concepções e termos empregados no discurso filosófico, social e político. O objetivo não era apenas o de criar definições específicas para cada palavra, mas também, de torna-la compreensível e acessível a todos; e, por fim, de garantir sua aplicabilidade no cotidiano, evitando confusões.
Esta questão parecer-nos-ia irrelevante, se na cultura chinesa não houvesse uma crença firme no poder que a palavra tinha de suscitar um movimento no plano real. Logo, o mau uso de um termo qualquer geraria uma ação descontrolada sobre a matéria, desagregando-a ou criando uma conformação não adequada à nossa vida. Daí porque o comedimento nas palavras, a discussão salutar e edificante e a análise constante do saber tornar-se-iam motes fundamentais desta doutrina.
Confúcio e Mêncio seriam eleitos santos em períodos posteriores; Xun zi quase não seria reconhecido como um confucionista, e seu nome é fortemente associado à escola dos legistas. Confúcio se situa, no entanto, como a base do humanismo chinês, e o primeiro dos grandes autores a encarar, de frente — e numa perspectiva universalista — os problemas do mundo. Afora os outros autores com os quais iremos lidar, alguns mesmo de existência duvidosa, Confúcio é a referência segura que temos para compreender a base sobre a qual muito da filosofia chinesa posterior iria se desenvolver. Mêncio foi seu complemento ideal, e o embate de suas idéias com as de Xunzi nos dá um exemplo perfeito da capacidade de interpretação variada que estes autores possuíam.
Kung zi, ou Confúcio (551 a.C — 479 a.C.) foi, provavelmente, o pensador que mais influenciou a cultura e a sociedade chinesa desde a antiguidade até nossos dias. Não é exagero dizer que o amor nutrido pela China ao antigo, a tradição, tem grande parte de suas raízes fincadas no pensamento deste sábio, um entusiasta da história, dos costumes e da civilização: “revelando-se o passado, compreende-se o presente”, teria dito (LY, 2:11). Preocupado com a crise que se instalava nas instituições da dinastia Zhou, sua resposta filosófica centrou-se na discussão dos mais diversos tópicos relativos à política, aos costumes, e a construção do conhecimento, difundido através de uma ampla proposta educativa. Era antes de tudo um humanista, e sua figura praticamente molda o arquétipo do sábio chinês; um ser profundo, denso, sensível, comedido e perspicaz.(LY, 10)
Decorrente disto, aquela que veio a se chamar escola dos letrados (rujia), organizada por seus discípulos, constituía-se num sistema de pensamento muito bem estruturado, pautado em valores definidos, como o Li (Ritual), Zheng (Conduta), Ren (Humanismo), entre outros. Nesta nossa pequena introdução, decidimos por privilegiar estes três conceitos, que julgamos ser os mais importantes para um conhecimento inicial do confucionismo.
Iniciemos pelo Li. Para Confúcio e seus seguidores, a questão do comportamento ritual era o grande índice da civilidade humana, separando o ser educado dos bárbaros e ignorantes. No entanto, não havia ninguém, na mentalidade confucionista, que não pudesse aprender o comportamento ritual e a cultura (educar-se, aliás, era a base da formação de um ser humano, sem o que ele não se aperfeiçoaria nem evoluiria do estado primitivo de sua natureza). O Li se constituía, por conseguinte, no conjunto dos atos oficiais, religiosos e sociais responsáveis pela interação entre os membros da comunidade e pela sua conexão com a ordem natural e a vontade do Céu: “o homem de bem, ampliando seus conhecimentos sem cessar, e ordenando-os pelo ritual, este não perde o caminho” (LY, 6: 25) Para este sábio, a execução deste comportamento ritual era uma forma de assegurar a reprodução da velha estrutura de vida que havia possibilitado a existência da China desde os tempos ancestrais. (LY, 4:13) A degradação moral, a corrupção dos costumes e a apropriação indébita do poder vinham, justamente, do desconhecimento que as pessoas tinham sobre a importância deste comportamento ritual, ocorrido tanto pelas tendências egoísticas dos homens quanto pela sua má formação educativa.
Estudar, para Confúcio, era a base de tudo; instruindo-se, o ser humano assegurava a conduta reta (Zheng) e a justiça (Yi) nos negócios públicos e para com as pessoas. Para o Mestre, a conduta não era apenas uma forma polida de etiqueta: era um meio pelo qual as pessoas conheciam seus limites internos e externos, garantindo seu bom relacionamento com o próximo. Era também uma forma de autocontrole, que em última analise levava a criatura a perceber sua importância no mundo, deslocando-a dos interesses próprios para os interesses da comunidade. Temos uma noção muito hipócrita da etiqueta, que em nossas concepções apresenta-se como uma forma diplomática de relacionamento, muito ligada à cultura de elite. A idéia dos confucionistas ia bem além da mera formalidade: o hábito da retidão na conduta moral deveria forçar o ser a repensar suas atitudes, perante seu papel na sociedade. Assim sendo, as práticas de relacionamento não seriam uma mera repressão dos sentimentos, mas sim uma expressão digna e respeitosa do íntimo, que através da formalidade, seriam filtradas de forma não agressiva.
Estas idéias se originavam da concepção de Confúcio de que Ren (o Humanismo) era, de fato, a base de todo o Mundo. Mas o que é Humanismo numa visão confucionista?
É complicado traduzir este termo para nossa língua, tendo em vista que ele engloba várias idéias diferentes, mas façamos uma aproximação explicativa.
O primeiro conceito que podemos utilizar para entender este Humanismo confucionista é o do Amor. (LY, 4:3) Muito se deturpou em relação à sua proposta de distribuição do afeto entre os seres, e cedo tendeu-se a acreditar que Confúcio defendia a possibilidade de amar apenas aqueles que também fossem civilizados, o que em breve traduziria-se por “chineses”. Isso não é verdade: mesmo criticando os bárbaros do Norte por seus costumes diferentes e agressivos, Confúcio nunca estabeleceu um limite para quem poderia ou não entender o caminho (Dao) por ele proposto. A base desse Humanismo, assim como do ritual e da conduta eram, sempre, os estudos. Estudar a si próprio, estudar os outros, estudar a cultura, formando assim um arcabouço íntimo de idéias e valores: eis o mister dos autênticos confucionistas. Assim sendo, Amar é um termo que se aproxima pela noção de sentimento afetivo recíproco, de compreensão mútua, de equilíbrio e equanimidade entre as pessoas. Isso não basta, porém, para explicar o Ren.
Devemos aqui incluir outra noção, a do Altruísmo. A ajuda desinteressada faz parte dos elementos componentes do Ren, o que permite o equilíbrio da sociedade pelo aproveitamento sadio de todos os seres. Para Confúcio, a simples caridade era uma medida emergencial; a longo prazo, no entanto, o mestre se colocava contra a sua prática — por ser humilhante em certos casos — e por reforçar as desigualdades e a acomodação (LY, 6:3). Era necessário empreender a educação comum, a ajuda mútua e a distribuição do trabalho para que todos pudessem viver em uma harmonia digna, justa. Uma pessoa só seria lançada ao desequilíbrio e a carência se não tivesse trabalho ou, ainda, se mesmo com trabalho, não tivesse uma educação que lhe impedisse de cometer excessos ou que a fizesse desconhecer as regras de conduta e de ritual; “praticar o ren é começar por si próprio, querer para os outros o que quer para si mesmo (...) busca em ti a idéia daquilo que podes fazer pelos outros- eis o que te porá no caminho do ren” (LY, 6:28).
No período Han (III a.C. — III d.C.), quando o Confucionismo foi adotado pelo Estado como filosofia oficial, a China passou por um período de grande renovação cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, a escola dos letrados sofreu, também, grandes deturpações, transformando-se inclusive numa espécie de “religião estatal”, algo que Confúcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformação do comportamento ritual em um separador da cultura chinesa em relação ao resto do mundo; somada a banalização do Ren, que se transformou em um conceito de afeto disperso e superficial, dirigido em termos caritativos, o confucionismo perdeu grande parte de sua potência como proposta universal para se tornar um discurso sinocentrista de civilização.
Temos que nos impressionar, no entanto, com a atualidade e a abrangência da proposição original de Confúcio. “Amar a todos”, e “não fazer ao próximo o que não quer que façam com você” (LY, 12:22, 13:23) são, no mínimo, afirmações tiradas sobre uma razão humana que transcende as lógicas culturais. Nessa hora somos obrigados a nos perguntar se, de fato, alguns autores chineses não estão certos ao afirmar a ascendência do espírito humano sobre certos valores e conceitos similares que surgem, em diversas sociedades e contextos históricos, tendo por base pressupostos culturais completamente diferentes. Há que se pensar aí, realmente, numa universalidade do saber, patrimônio indelével da mentalidade humana que de tempos em tempos é inferida por estes grandes pensadores. E Confúcio, já no século VI a.C. foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspectos invejável, para a resolução de problemas sociais que parecem atravessar a existência humana com persistência e tenacidade, sobre os quais apenas a vontade íntima é capaz de se sobrepor.
André Bueno