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Crítica
10 de Novembro de 2006   História da filosofia

Epicteto em pratos limpos

Aires Almeida
A Arte de Viver
de Epicteto
Introdução, tradução e notas de Carlos de Jesus
Lisboa: Edições Sílabo, 2007, 77 pp.

É de saudar a tradução directa do grego para português do Manual de Epicteto, um dos mais populares e acessíveis textos do estoicismo, a escola de pensamento fundada mais de trezentos anos antes por Zenão de Cítio.

Epicteto nasceu por volta do ano 55 da era cristã na Frígia (actual Turquia) e é um dos representantes do chamado estoicismo imperial, juntamente com Séneca, que o antecede, e o imperador romano Marco Aurélio, que ele acabou por influenciar fortemente. Nasceu escravo e como escravo de Epafrodito, uma espécie de secretário do imperador Nero, foi ainda muito jovem para Roma. Segundo alguns terá ficado coxo para toda a vida, como resultado dos maus tratos infligidos por Epafrodito. Mas há também quem diga que era coxo de nascença.

Já no princípio da idade adulta tornou-se um homem livre e começou por se dedicar à filosofia, o que o levou a ser expulso de Roma pelo imperador Domiciano, juntamente com outros filósofos. Refugiou-se no Epiro, uma região do noroeste da Grécia, onde se tornou professor na escola de filosofia que ele mesmo abriu, difundindo ideias fortemente influenciadas pelos primeiros filósofos estóicos, sobretudo por Crisipo.

Quando morreu, por volta de 153, era um filósofo muito admirado e famoso. Segundo Orígenes, um dos primeiros filósofos cristãos, Epicteto teve mais reputação em vida do que Platão. Contudo, não deixou qualquer obra escrita, tal como Sócrates, que ele tinha como modelo do verdadeiro filósofo. De entre os seus discípulos e admiradores, Arriano recolheu e organizou com zelo as notas e os apontamentos das suas aulas, que deram origem à sua obra principal, Discursos, e a uma espécie de resumo desta, precisamente o Manual, de cuja tradução aqui me ocupo.

A tradução de Carlos de Jesus inclui, além de uma nota à tradução, uma curta introdução e notas explicativas ao longo do texto. Três aspectos se destacam logo à primeira vista.

Em primeiro lugar, o título do livro não traduz o original (enchiridion), que significa literalmente “manual”, e que assim costuma ser conhecido, optando antes pelo título A Arte de Viver. Opção algo discutível, mas que o tradutor explica na nota à tradução, dizendo que é disso mesmo que se trata, o que não deixa de ser verdade. É também verdade que torna o livro comercialmente mais atractivo, o que não tem mal nenhum.

Em segundo lugar, são atribuídos títulos a cada um dos pequenos capítulos que constituem o livro, o que não se verifica no original. Isto não é inédito, pois há traduções noutras línguas que também dão títulos aos capítulos. É, de resto, uma opção que se compreende, na medida em que facilita a leitura.

Em terceiro lugar, a linguagem é simples, clara e sem ornamentos retóricos inúteis, ao contrário do que se verifica com demasiada frequência em traduções portuguesas dos clássicos antigos (por vezes desrespeitando os próprios originais). Podemos assim ler o texto de Epicteto sem ter a desagradável sensação de estar a decifrar uma linguagem estranha. Pelo contrário, lê-se muito bem e sem esforço. Isto deve-se em parte ao próprio estilo do filósofo e não apenas ao tradutor, que todavia soube preservar essa rara e desejável característica.

O Manual de Epicteto era, como o próprio título sugere, um livro de apoio para o aprendiz de filosofia; um guia para a formação do filósofo. Apesar de Epicteto se ter dedicado às três grandes áreas de estudo estabelecidas pelos estóicos, a lógica, a ética e a física (segundo os discípulos de Zenão, a lógica era o esqueleto da filosofia, a ética era a carne e a física era a alma), o livro centra-se exclusivamente na ética, ao contrário do que o tradutor parece sugerir na introdução (p. 15–16), onde diz que trata das duas primeiras, ainda que principalmente da ética.

Como acontece com qualquer manual, o que lá se encontra depende do que o seu autor considera ser a natureza do que quer ensinar. Neste caso, depende do que o autor considera ser a natureza da filosofia. Ora, de acordo com a tradição estóica em que Epicteto se insere, a filosofia não existe simplesmente para compreender o mundo (embora seja necessário compreendê-lo) e muito menos para transformá-lo. A verdadeira finalidade da filosofia é aprender a viver. E aprender a viver é o mesmo que alcançar a eudaimonia (a vida boa ou felicidade). Alcançar a vida boa deve ser aquilo que a filosofia nos permite ao ensinar a virtude, a qual se traduz numa vida de simplicidade, de autodomínio e de aceitação das circunstâncias que não dependem de nós. É por isso que Epicteto começa o Manual distinguindo o que depende do que não depende de nós.

No primeiro caso temos os desejos e apetites, os impulsos, a aversão e, em geral, o que resulta das nossas acções. No segundo caso temos o nosso corpo, os bens, a fama, o poder e, em geral, tudo o que não resulta das nossas acções. Querer intervir no que não nos é possível resulta sempre em frustração e infelicidade. Por isso não vale a pena lutarmos contra o que não depende de nós. Em vez de nos deixarmos levar pelo desejo de mudar a realidade, temos antes de nos controlar a nós próprios, moderando os nossos desejos e anulando as nossas ambições, ao mesmo tempo que aceitamos as coisas como elas são. A passagem seguinte resume perfeitamente a moral estóica:

Não procures que tudo quanto acontece aconteça como desejas, antes deseja que tudo aconteça como de facto acontece. Assim serás feliz. (p. 30)

A raiz de toda a frustração e infelicidade reside, segundo Epicteto, na interpretação fantasiosa da realidade e nos juízos falsos que fazemos sobre ela. A filosofia tem assim um papel importante na busca da felicidade porque nos ensina a distinguir as falsas impressões, ou aparências, da verdade. A natureza só pode ser boa, pelo que nada há de errado e de censurável nela. O que nos afasta da virtude e causa infelicidade são os juízos falsos que fazemos sobre a natureza. Por isso devemo-nos abster de fazer juízos sobre a natureza. Assim, é a ignorância que leva à infelicidade, o que está muito próximo do princípio socrático segundo o qual só se erra por ignorância. Se levarmos uma vida filosófica seremos, então, capazes de nos aproximar dos dois grandes ideais que constituem a felicidade: a tranquilidade (apatheia) e a paz de espírito (ataraxia). Por isso recomenda:

Preocupa-te, por isso, em dizer claramente a cada ilusão enganadora: “és uma ilusão e nem de perto és o que pareces ser”. Analisa-a de seguida e testa-a segundo essas normas que possuis, das quais a primeira e mais importante é saber se pertence à categoria das coisas que dependem de nós ou à das que de nós não dependem. Então, se for das que não dependem de nós, tem bem pronta a resposta: “não é nada comigo”. (p. 24)

Seguindo este princípio, Epicteto dá numerosos exemplos concretos ao longo do livro sobre o modo como devemos encarar as coisas: a propriedade, a morte, a família, as necessidades do corpo, o sexo, etc. Eis o que recomenda a propósito da inevitabilidade da morte:

A morte nada de terrível representa por si — assim teria parecido ao próprio Sócrates — mas o julgamento da morte como algo terrível, isso sim é um mal. Por isso, quando estamos de pés atados, perturbados ou atormentados, ninguém mais podemos culpar para além de nós próprios, ou melhor, dos nossos julgamentos. (pp. 27-28)

Outras passagens são verdadeiramente lapidares:

Culpar-se a si é já próprio de quem deu início à sua formação. (p. 28)

Ou ainda:

Jamais te orgulhes de um qualquer mérito que não seja teu. [..] O que é, em boa verdade, pertença tua? Apenas o uso das impressões externas. (p.29)

Outra passagem que ilustra bem a atitude do estóico perante a realidade é a seguinte:

Jamais digas, acerca do que quer que seja, “perdi-o”, antes “devolvi-o”. O teu filho morreu? Foi devolvido. Morreu a tua mulher? Foi devolvida. “A minha herdade foi roubada!” Pois bem, também ela foi devolvida. “Mas foi um malvado que ma roubou!” Mas que importa por que meio Aquele que ta deu vem buscá-la de volta? Posto que te foi ofertada, cuida dela enquanto pertença de outrém, tal qual os viajantes desfrutam do seu hospedeiro. (p. 32)

E para aqueles que pensam que a filosofia consiste apenas em interpretar o que os filósofos escrevem, Epicteto não pode ser mais certeiro:

Quando alguém se envaidece por compreender e interpretar os livros de Crisipo, tem para ti próprio que “se Crisipo não tivesse escrito de forma obscura, nada teria esse homem com que se vangloriar”.

Mas que pretendo eu? Examinar a fundo a Natureza e seguir os seus ensinamentos. Busco, por isso, quem seja capaz de a interpretar. E tendo ouvido dizer que Crisipo é esse homem, abordo a sua obra. Mas não compreendo os seus escritos. E continuo a minha busca, agora de quem consiga intepretar Crisipo. E até aqui, nenhum motivo de orgulho. Mas quando encontrar um intérprete capaz, é imperativo pôr em prática os seus preceitos. E apenas nisto há lugar para admiração. Se, contudo, admirar apenas a sua intepretação, que outra coisa me tornarei senão gramático, em vez de filósofo? Tão só, em vez de Homero, interpretei Crisipo. (p. 69)

Isto mostra bem que vale muito a pena ler Epicteto ainda hoje e que as suas ideias não têm apenas interesse histórico.

Termino com quatro reparos ao tradutor sobre outros tantos aspectos que merecem ser corrigidos numa futura reimpressão.

No texto, Epicteto fala de Diógenes, que o tradutor explica em nota de rodapé tratar-se de Diógenes de Laércio, “filósofo cínico”. Ora, nem Diógenes de Laércio foi um filósofo cínico, nem sequer Epicteto poderia estar a falar de Diógenes de Laércio, pelo simples facto de este biógrafo de filósofos antigos ter vivido cerca de dois séculos depois de Epicteto. Não se trata de um simples lapso, pois o mesmo é repetido na página 14 da introdução. Epicteto está a referir-se a Diógenes de Sínope, o cínico, que viveu no século IV a.C. Além disso, as datas de nascimento e morte de Diógenes indicadas pelo tradutor estranhamente não correspondem a nenhum dos dois. E também não correspondem a Diógenes de Apolónia, que viveu no século V a.C.

Na introdução (p. 19) escreve-se o seguinte: “Num discurso lógico, silogístico mesmo (onde para a condição X são exigidas as premissas Y e / ou / e não Z), é frequente o recurso a metáforas, imagens e alegorias do quotidiano que muito dizem ao leitor seu contempoâneo”. Ora, por um lado, é falso que se trate de um discurso silogístico, a não ser que se use uma noção de silogismo demasiado afastada do seu uso habitual na lógica e na filosofia. Por outro lado, o que está entre parêntesis é simplesmente ininteligível e nem mesmo a interpretação mais caridosa permite decifrar o que aí se diz.

Na página 65 fala-se de raciocínios errados e de raciocínios verdadeiros. Mas não existe tal coisa. Dizer que um raciocínio é verdadeiro é um erro categorial, dado que a verdade não é uma propriedade dos raciocínios, mas sim das afirmações ou juízos. Os raciocínios são válidos ou inválidos, correctos ou incorrectos e nunca verdadeiros ou falsos. É pouco provável que Epicteto, que também se interessava pela lógica, cometesse tal erro, mesmo naquele tempo.

Finalmente, deixo algumas reservas realtivamente a alguns dos títulos dos capítulos, que não parecem adequados, induzindo mesmo o leitor em erro. Por exemplo, o capítulo 36 intitula-se “Lógica”, mas nada tem que ver com lógica. Assim como o título “Lógica Tríplice”, do capítulo 52, é algo opaco e não traduz exactamente o que lá está.

Apesar disso, nota-se que houve algum cuidado nesta edição, pelo que merece bem a nossa atenção e, mais do que isso, este livro merece ser lido e discutido.

Aires Almeida

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ISSN 1749-8457