Não é difícil encontrar obras de grande ambição na história da filosofia, mas entre estas são muito poucas as que acabaram por se revelar efectivamente inovadoras, profundas e inspiradoras. O Tratado da Natureza Humana é um desses raros exemplos. Esta obra singular em tantos aspectos, a começar pela juventude do autor, marcou definitivamente todas as áreas maiores da filosofia. A influência do Tratado de David Hume perdura em muitos dos debates filosóficos em curso, onde frequentemente a fronteira principal é a que separa as perspectivas humianas das anti-humianas. A publicação deste clássico é assim muito oportuna. O leitor pode contar com uma tradução de grande qualidade de Serafim da Silva Lopes. E o volume beneficia de um prefácio de João Paulo Monteiro, autor de três livros sobre a filosofia de Hume, que também se encarregou da revisão técnica da tradução.
Hume começou a trabalhar no Tratado ainda na adolescência e tinha apenas vinte e oito anos quando este foi publicado, mas a recepção da obra foi tão desencorajante que o filósofo acabou por lamentar tê-la publicado tão cedo. Hume não estava insatisfeito com as suas teorias e argumentos, que no essencial nunca abandonou — o problema do Tratado residia sobretudo no estilo de exposição adoptado, um estilo que na época o tornava demasiado difícil de entender. Isto levou-o a reformular posteriormente as suas ideias apresentando-as em obras mais curtas e acessíveis. Estas, no entanto, não dispensam a leitura da sua obra juvenil, pois mesmo conjuntamente não têm um âmbito tão vasto como o Tratado. Apesar de todas as suas imperfeições, em nenhum outro lugar o pensamento de Hume sobre os mais diversos assuntos se encontra tão desenvolvido e refinado.
O Tratado valeu a Hume a reputação de ter sido o céptico radical e destrutivo que, em última análise, levou o empirismo dos seus predecessores às últimas consequências desacreditando-o completamente. Esta reputação ainda persiste, mas resulta em grande parte do facto de Hume ter sido um crítico perspicaz de práticas e dogmas religiosos, o que o tornou demasiado incómodo aos olhos dos seus contemporâneos e, aliás, arruinou as suas aspirações académicas.
Na verdade, embora Hume seja seguramente um céptico (mas bastante moderado), o projecto que preside ao Tratado não podia ser mais construtivo: motivado pelo sucesso da mecânica newtoniana, o jovem filósofo pretendia estender o método experimental ao estudo do funcionamento da mente. Tal como Newton conseguira explicar muitos fenómenos físicos aparentemente desconexos através de alguns princípios bastante simples, também Hume, advogando esse método, propôs-se a elaborar uma teoria da natureza humana com um poder explicativo similar. O seu esforço teórico, como se observa no prefácio desta edição portuguesa, “concentra-se na formulação de conjecturas plausíveis acerca de princípios da natureza humana encarados como inatos”.
O primeiro dos três livros do Tratado começa com uma apresentação dos elementos e mecanismos fundamentais da mente humana. Hume introduz aí as noções básicas da sua filosofia da experiência, que depois lhe permitem desenvolver uma explicação empirista da origem e natureza de vários conceitos fundamentais, como os de espaço e tempo, causa e efeito, conexão necessária e identidade pessoal. A sua concepção do eu como uma ficção, bem como a sua perspectiva das inferências causais, continuam a constituir um grande desafio à criatividade argumentativa dos filósofos.
Enquanto o Livro I se ocupa do “entendimento”, sendo primariamente uma tentativa de compreender o nosso conhecimento do mundo e de nós próprios, o Livro II consiste numa investigação das “paixões” — sobretudo do orgulho e da humildade, do amor e do ódio. No entanto, neste segundo livro as contribuições filosoficamente mais relevantes de Hume surgem perto do fim: uma discussão marcante do livre-arbítrio e a defesa da incapacidade da razão para motivar a acção.
O Livro III não diz respeito a uma outra “parte” da natureza humana. Foi publicado dois anos depois dos anteriores, e consiste numa teoria dos fundamentos da ética baseada nas suas perspectivas sobre o entendimento e as paixões. Destaca-se aqui a teoria de que não é através da razão que distinguimos ou reconhecemos a virtude e o vício: as distinções morais resultam antes de sentimentos aprazíveis ou dolorosos desencadeados pela “simpatia”, a capacidade de nos identificarmos com os outros participando do seu prazer ou dor.
David Hume é um autor que tem sido pouco traduzido para português. E muitas vezes mal traduzido. Esperemos que a esta edição da Gulbenkian se siga, num futuro não muito distante, a publicação de outras traduções de qualidade de obras do filósofo. O Tratado tem muito para oferecer mas não esgota o pensamento de Hume: a sua filosofia da religião, por exemplo, tem o maior interesse e já devia estar acessível nas nossas livrarias.