A razão pelo qual decidi produzir este artigo deve-se à um problema essencialmente “ocidental” em relação ao pensar filosófico: existe ou não um sistema de lógica formal clássica na China? Na verdade, esta pergunta tem sido feita com pouca constância e correção dentro do panorama acadêmico; os especialistas a respondem com um simples “não”, posto que a filosofia (e conseqüentemente, o que dela advém, tal como a lógica aristotélica), tem origem grega e se desenvolveu no Ocidente; e muito comumente, esta afirmação (que em nada se baseia, senão do desconhecimento do pensar asiático) é complementada por uma outra afirmação tão esdrúxula quanto a primeira; “porque os orientais têm lógicas diferentes da nossa”. Não precisamos nos esforçar muito para perceber que esta postura transforma o pensamento chinês, por exemplo, num típico sistema de filosofia alienígena.
Não se pode negar que o caso dos chineses exige um exame detalhado, posto que seus procedimentos de pensar a realidade diferem, em alguns aspectos, daqueles criados no nosso lado do mundo. Mas negar que a China possa raciocinar de forma semelhante à nossa é negar-lhe a humanidade. Mais, ainda; este questionamento (se há ou não lógica nesta civilização) só pode ser feito mesmo por um ocidental; parte do princípio de que estou buscando no outro aquilo que eu já tenho, como se este elemento fosse de algum modo superior ao que aquele possui. E, ao crer que um oriental possa simplesmente conhecer alguma forma de lógica alternativa à nossa (o caso das “lógicas diferentes”), porque não buscamos conhecê-la, de modo a enriquecer nosso próprio conhecimento?
O que buscarei discutir brevemente neste artigo, pois, é de como se apresenta a estrutura da lógica antiga chinesa, e do porque esta civilização — num dado momento — optou por adaptar os sistemas que conhecia à campos específicos do conhecimento, tal como a ética e a ciência. Não pretendo comprovar “definitivamente” a existência da lógica formal ou dialética na China; para isso, o estudante de filosofia deve pura e simplesmente buscar um bom manual sobre pensar chinês e resolverá suas dúvidas (vejam o de C. Hansen, 1983 e 2000 e de A. Cheng, 2003). Mas, como nem isso acontece usualmente, decidi-me por fazer esta breve apresentação, com o intuito de despertar a curiosidade do leitor e instigá-lo a saber um pouco mais sobre esta civilização, feita de seres tão humanos quanto nós.
Para iniciarmos esta investigação temos que delinear o nosso ponto de partida, que é a filosofia grega. Pergunto se aquilo que entendo ser a lógica formal aristotélica existe ou não na China. Questiono para saber se os chineses inferiram algo semelhante a isso, como o fizeram e de que modo a desenvolveram (ou não). Como afirmei antes, meu objetivo não é criar uma hierarquia de culturas ou de pensar, nem comprovar a anuência de um sistema sobre o outro. Apenas pretendo demonstrar que duas civilizações distintas podem absolutamente inferir o que chamamos de lógica formal e, no entanto, dar-lhe um destino completamente diferente.
A primeira razão pelo qual não encontrávamos o método aristotélico entre os chineses reside nas falhas apresentadas pelas pesquisas históricas e teóricas que foram realizadas sobre o pensar chinês. Analisado superficialmente, e visto num prisma reduzidamente moralista, o pensar chinês pouca vezes foi estudado (até recentemente) em suas perspectivas científicas ou metodológicas. Quem lesse Confúcio com um pouco de boa vontade vislumbraria fragmentos de um raciocínio apuradamente lógico-formal no texto dos Diálogos (Lunyu) e do Justo Meio (Zhongyong); quem buscasse conhecer um pouco mais sobre a escola de Mozi ou dos Nominalistas de Gong Sunlong e Huishi verificaria claramente a sedimentação de uma estrutura textual baseada nos princípios da premissa, do silogismo e da falácia; quem se dispusesse a investigar a teoria do conhecimento natural chinês (wuxing, ou teoria dos cinco agentes), saberia que os mesmos desenvolveram um sistema de correlação de variáveis amplamente complexo baseado numa interpretação do real.
Isso se deve a uma constante reprodução de análises descritivas realizadas por aqueles que investigaram o pensar chinês. Poucos foram os autores, tal como M. Granet ou R. Wilhelm, que buscaram compreender a estrutura deste pensamento de forma a escapar da armadilha logocêntrica criada por Hegel (Jullien, 2000). Como sabemos, foi Hegel um dos primeiros a tentar dar consistência ao estudo filosófico do Oriente, mas suas conclusões (baseadas igualmente num conjunto de parcas fontes e escritos) foram um tanto depreciativas. Porém, se Hegel assim agiu porque tinha em mãos muito pouca coisa, seus continuadores fizeram bem pior, pois reproduziram todos os seus preconceitos sem tentar realizar uma investigação mais apurada sobre a Ásia. Tal condição só começou a ser quebrada com a evolução dos estudos orientalistas após as primeiras décadas do século XX. Mas muito, ainda, precisava (ou precisa?) ser feito.
A segunda consideração reside no problema da linguagem e da apresentação dos textos. Os escritos filosóficos chineses (com poucas exceções) não apresentam discussões metodológicas, posto que estas subjazem a constituição do documento. Na China Antiga, pressupunha-se que o aluno já conhecesse parte do expediente necessário para apreensão do conteúdo de um texto. Do mesma maneira, um professor era indispensável para auxiliar na interpretação do mesmo. Por isso, quando lemos um desses clássicos, muitas vezes estamos lendo as conclusões já prontas destes mestres e/ou de suas escolas. Isso não significa, no entanto, que não possamos apreender parte da trajetória que leva à eleição de uma determinada proposta ou conceito. Estes sistemas podem ser subentendidos pelos uso da linguagem, da terminologia e da estrutura pelo qual são inferidos, trabalho extremamente difícil para quem não domina a língua chinesa.
A escrita chinesa, pictogramática, expressa-se por símbolos cujo conteúdo representativo pode significar uma ou mais idéias. O arranjo dos esquemas de interpretação é diferenciado, e os objetos ou palavras utilizadas na designação de um conceito necessitam uma investigação apurada antes de serem traduzidos, posto que sua copulação com análogos ocidentais podem induzir facilmente ao erro (Chang, 1977 e Yu, 1977). Assim sendo, era de se esperar que houvesse uma natural dificuldade em encontrar a “lógica formal” no pensar chinês, senão de uma forma simplificada e pouco evoluída (Chan, 1978). Esta dificuldade só aumenta se pensarmos que, ao analisar o problema, temos como base os nossos conhecidos procedimentos lógicos, amplamente desenvolvidos antes que nos preocupássemos em estudar o caso da China.
Por fim, a questão cultural é igualmente importante; atrelados à uma estrutura cosmológica própria, os chineses buscaram modos diferenciados (dos nossos) de acoplar os sistemas lógicos à sua investigação do real. Esta condição confunde um pesquisador menos habilitado, que espera encontrar sempre as mesmas conclusões formais para um determinado problema de dedução ou indução. A possibilidade da variação — um elemento fundamental na pesquisa científica, e principalmente na ética — apresenta-se como mais um elemento extremamente interessante e atrativo para um estudo do problema.
Como abordei no artigo “A Estrutura do Pensar Chinês”, a cosmologia chinesa é processual, centrada num movimento criativo dialético que se manifesta através da oposição complementar entre yin e yang. Por conseguinte, a geração dos seres e das coisas regula-se essencialmente pela ordenação (o princípio, ou Li) e materialmente pela mutação (Yi, que promove a variabilidade), fundamentando uma análise flexível e adaptativa do real.
Por conta disso, a percepção chinesa sobre a aplicação de procedimentos lógicos formais e/ou dialéticos variou consideravelmente, segundo a circunstância e o objeto de estudo. No campo da ciência tradicional chinesa, um sistema básico de lógica formal mediava o processo de identificação e classificação dos objetos — sistema este que prevaleceu nos procedimentos de experimentação e desenvolvimento contínuo, estruturando principalmente a constituição das categorias de conhecimento. Este sistema articulava-se através das conhecidas teorias ordenadoras de yin-yang e wuxing. Foi assim, pois, que áreas como a medicina, matemática, química, entre outras, evoluíram significativamente desde a antiguidade, criando um legado acessível até os dias de hoje. As diferenças entre este sistema e o ocidental residiam no uso e atribuição dos símbolos designadores, bem como no processo pelo qual eles são relacionados. Ao identificar um problema, um especialista chinês da antiguidade utilizava a dedução ou a indução de modo similar ao que conhecemos no Ocidente; mas inseria sua avaliação no conjunto de expedientes e categorias que lhe eram próprias, inferindo uma resposta que, para um ocidental, poderia parecer uma conclusão “ilógica”. Ou seja, o problema que aqui se insere é que muitas vezes nos atemos ao produto final de uma especulação. Como nosso embasamento teórico pressupõe um tipo determinado de resposta, o surgimento de uma alternativa sislógica nos faz crer que houve um “erro” na seqüência lógica. Ou ainda, como estes métodos de experimentação e de trabalho podem ser diferentes dos nossos, atribuímos-lhes um caráter “irracional” ou “ilógico”, dando-lhes uma pecha pejorativa e aprisionando suas conclusões num círculo de falácias encerradas dentro do próprio sistema.
Conseqüentemente, toda e qualquer conclusão que a ciência tradicional chinesa pudesse alcançar — e que fosse semelhante as nossas — seria ou um acidente, ou uma prova de que os chineses seriam falhos em lógica formal (o que os levava a fazer avaliações imprecisas do real). Neste jogo de interpretações, porém, não nos permitimos pensar na possibilidade dos orientais acertarem onde nós erramos e vice-versa. É desta armadilha logocêntrica que devemos escapar. Se assim o fizermos, enxergaremos facilmente que a ciência tradicional chinesa nada tinha de mística ou mágica, mas baseava-se num sistema formal tão eficiente quanto o nosso. O uso de supertições e crendices por parte de profissionais chineses, em suas áreas, era um acidente tão comum quanto o é até hoje entre os seres humanos de todas as partes do mundo (inclusive no Ocidente). Não devemos, pois, confundir as distorções que nos chegam por leituras superficiais da China com a sua verdadeira produção científica; precisamos estudá-las.
No entanto, o campo do pensamento chinês com o qual mantivemos um contato maior é a ética, mais comumente conhecida através dos escritos confucionistas e daoístas. Embora ambas as escolas se valessem da ancestral cosmologia chinesa para estruturar suas fórmulas sociais e políticas, suas percepções sobre o emprego da lógica formal variavam consideravelmente em relação à ciência. Conquanto esta buscasse estudar as manifestações da matéria, a ética era vista pelo chineses como a via de adequação ao real — privilegiando, por conseguinte, o caráter adaptativo, flexível e variável dos seres — o que estimulava estes pensadores a evitarem uma interpretação rígida e fixadora de seus objetos de estudo.
Por conta disso, confucionistas e daoístas afastaram-se da aferição formal do processo ético, privilegiando uma articulação entre a sabedoria interna do indivíduo e a regulação mutável da realidade. Ativeram-se ao aspecto de interpretação dialética do universo, delegando ao sistema formal o aspecto da generalização das categorias e da formação do conhecimento. Por este motivo encontramos tão pouco desta “lógica” nos axiomas das duas escolas. Confúcio e Mêncio ocasionalmente utilizavam-se de expedientes formais para fixar pequenas seqüências de raciocínio (mas lembremos, seu caráter é mais ilustrativo e didático do que propriamente conceitual). Entre os daoístas, os vestígios são esparsos, discutíveis e pouco esclarecedores — em Zhuangzi, porém, vemos um apurado uso da linguagem na argumentação lógica, principalmente em seus debates com Huishi, um dos principais representantes da escola Nominalista.
E aqui chegamos a um ponto importante; se constatamos que conhecemos pouco do pensamento chinês — e justamente da ética, onde as principais escolas (confucionistas e daoístas) eram pouco afeitas a lógica formal, não é de estranhar que soubéssemos quase nada sobre o assunto. Mas mesmo neste campo, os chineses tiveram suas experiências com a aplicação do sistema formal ao problema da moral e da linguagem. Elas ocorreram em duas escolas que nos são menos conhecidas, os moístas e os nominalistas.
O tempo de vida destas duas escolas ocorreu no fértil contexto das Cem escolas de pensamento (sécs. VI-VI a.C.), concomitantemente aos confucionistas e daoístas. Centrados em propostas alternativas de remodelação da sociedade, moístas e nominalistas ensaiaram tentativas de aplicar o sistema de premissa-hipótese e conclusão às suas teorias. Os primeiros esperavam justamente inferir idéias de correção, justiça e virtude através de uma investigação lógico-formal; os seguintes buscaram discutir o significado dos conceitos através de sua relativização pela linguagem e de sua possível correlação com o real.
Esta diferente perspectiva nos é demonstrada pelos fragmentos documentais que sobreviveram de ambas as escolas. Os Moístas elaboram longas seqüências lógicas de modo a conduzir a inserção de um conceito numa categoria específica de virtude ou de acepção moral que pudesse ser universalmente correta e aplicável (Graham, 1987). De modo diverso, Huishi e Gong Sunlong (os nominalistas mais famosos) fizeram experiências com paradoxos lingüísticos para demonstrar os problemas de eficácia do discurso, terminologia, relatividade dos nomes e, por fim, dos métodos de produção de seqüências lógicas. Infelizmente, quase nada sobrou destes últimos autores. Conhecemos o clássico exercício de lógica formal do mestre Gong (“Um cavalo branco não é um cavalo” — uma relativização dos objetos em relação as suas categorias)(Rieman, 1981 e Thompson, 1995), bem como um pouco da estrutura lingüística pelo qual estes exercícios foram elaborados (tanto para moístas quanto para nominalistas) (Makeham, 1991).
Este baseava-se na articulação shi-fei (é, não é) e ming (nome, termo). Os termos podem ser (ou não) comparados ou categorizados segundo uma escala funcional pautada na proposição. Assim, os chineses podiam perfeitamente formular seqüências formais que incluíssem a tradicional ordenação “se [termo1]...então[é, ou não é][termo2]”, e tanto moístas quanto nominalistas tinham uma clara consciência sobre as possibilidades de construir falácias ou silogismos com este sistema, empregando um grande número de variáveis e termos (Chang, 1977 e Hansen, 1983). Resta-nos perguntar, pois: porque este sistema não obteve, então, sucesso junto ao campo da ética? Como vimos, profundeza, habilidade e conhecimento não faltavam a estes autores. Mas o que fez os chineses cercearem a lógica formal ao campo da ciências?
A resposta mais consistente parece centrar-se na própria estrutura do pensar chinês (Jullien, 2000). Ao tentar fixar uma interpretação formal dos conceitos, os moístas perderam de vista o problema da variabilidade dos seres e da pluralidade cultural e moral. Esta percepção fundamental — a regulação do real pela articulação entre o princípio gerador e a mutação — era decisiva para os chineses, atrelando inclusive o funcionamento das ciências (pois se estas evoluem, é porque se atém ao material, aspecto do real que naturalmente se transforma). No campo da ética, portanto, a tentativa dos moístas significava enquadrar numa mesma categoria seres de potencialidades diferentes, promovendo uma descontinuidade no real, uma ordenação artificial — e sendo artificial, fadada ao desaparecimento rápido, posto que não se regula e nem é gerada pela natureza. Ela se contrapunha a este sistema processual, que é o pensar chinês. Quanto aos nominalistas, faltou-lhes justamente formular uma proposta ética que possuísse eficácia, o que os fez desaparecer rapidamente do cenário intelectual. No entanto, sua herança pode ser sutilmente notada em ligeiras modificações que se manifestam na apresentação dos discursos filosóficos, principalmente a partir do século III a.C. Não surgiria mais nenhum nominalista famoso, mas o exercício com a linguagem permaneceria como uma forma de analisar conceitos e teorias.
Acredito, portanto, que para qualquer um que se interesse pelo tema, o desenvolvimento de métodos lógicos na China possui uma complexidade própria e digna de uma análise mais profunda. Não se pode ignorar que esta civilização conquistou avanços significativos em todos os campos, o que nos impede absolutamente de ignorá-la. Como vimos, o problema de se investigar o pensar chinês é justamente o modo pelo qual ele ordena e transforma os processos de observação e interpretação do real. Possuindo uma estrutura lingüística singular, eles alcançam os mesmos métodos desenvolvidos no Ocidente (em alguns casos mesmo antes do Ocidente), mas dão-lhes um destino diferente, de acordo com uma proposta cosmológica única que lhes é familiar. Sua ciência e sua ética aproximam-se tanto quanto divergem nos procedimentos de investigação — e no entanto, fundem-se, trocam, nesta correlação dialética que caracteriza a fundamental oposição complementar, cerne do seu pensar.
Neste aspecto, portanto, o emprego da lógica formal na China não nos parecerá tão estranho, se formos capazes de respeitar-lhes as suas próprias categorias, teorias e métodos de articulação de idéias. Do mesmo modo, sua relativa recusa em aceitar este sistema como a única forma racional de investigar o real gera-nos perspectivas intrigantes, que podem ser de grande valia quando buscamos alternativas de pensar que nos sejam inéditas. Ao gerar repostas que porventura consideraríamos “ilógicas”, o pensamento chinês possibilita-nos, na verdade, apontar as falhas de nossas próprias seqüências lógicas, se tivermos flexibilidade e sabedoria suficiente para reconhecer a sua valia. Do mesmo modo, ele pode nos mostrar possibilidades de interpretações diferentes e abrir novas fontes enriquecedoras de recursos para o estudo da lógica formal e dialética — contanto que estejamos dispostos a fazer o extenuante, porém recompensador, esforço de estudar um pouco desta fascinante e tão pouco conhecida civilização.
André Bueno