A filosofia emergiu no século VI a.C. em Mileto, uma colónia grega na Ásia Menor, com três figuras, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, que se interessaram por duas questões principais — “de que é feito o mundo?” e “como se deu origem ao mundo?”. Estes três milésios não foram os primeiros a fazer estas perguntas, e a responder-lhes; e hoje a sua discussão é tanto tarefa dos cientistas quanto dos filósofos. No entanto, estes três milésios são correctamente encarados como os primeiros filósofos, e neste capítulo quero perguntar por que haverão de sê-lo. Irei defender que fazer perguntas filosóficas faz parte da condição humana e que o questionamento filosófico emerge naturalmente no contexto da vida quotidiana. Porém, o que é próprio de um filósofo não é, ou não é apenas, as perguntas que faz mas antes a natureza da sua resposta a essas perguntas. Assim, irei indagar o que há no pensamento de Tales, Anaximandro e Anaxímenes que torna filosóficas as suas respostas a tais perguntas.
Indaguemos primeiro o que foi que em Mileto por volta do século VI a.C. conduziu a estes desenvolvimentos. Muitas teorias foram oferecidas para dar conta da emergência da filosofia em Mileto. Aristóteles fez notar um factor económico: o interesse dos seres humanos em questões filosóficas só pode surgir quando nem todo o tempo é gasto na luta pela sobrevivência (Metafísica 981b17–24). Outra ideia (mencionada por Lloyd, Magic, Reason and Experience, p. 235) é que as crenças mágicas são ultrapassadas pelas racionais e pela discussão racional quando os seres humanos se dão conta de que podem controlar o mundo e que não estão à sua mercê; isto sugere que os desenvolvimentos tecnológicos são um factor crucial. Uma terceira sugestão é que a reflexão sobre a ética se impõe numa sociedade primitiva quando os seus membros descobrem que noutros lugares, noutras sociedades, as pessoas têm comportamentos diferentes (veja-se Horton, “African Traditional Thought and Western Science”).
Todas estas teorias são atraentes. Contudo, como Lloyd argumentou, a prosperidade económica, os avanços tecnológicos e as viagens ao estrangeiro não ocorreram apenas na Grécia do século VI a.C. e no entanto só nesse contexto encontramos uma emergência do pensamento especulativo (expressão com a qual queremos falar, entre outras coisas, de ciência e filosofia) (Lloyd, Magic, Reason and Experience, pp. 234–238). Temos de perguntar que outros factores podem estar envolvidos.
Lloyd (The Revolutions of Wisdom) faz notar três outros factores. Primeiro, há uma ligação entre o que Lloyd chama egotismo e inovação. Nos poetas líricos que se seguiram à poesia oral de Homero, encontramos um ego autoral, juntamente com inovação técnica, e poemas que por todo o lado têm a marca do autor. Lloyd não pode afirmar que os filósofos milésios eram egotistas neste sentido — não temos indícios suficientes para saber se o eram ou não. Porém, pode afirmar, e afirma, que Heraclito, o seu sucessor imediato, obedece a este padrão (veja-se Lloyd, The Revolutions of Wisdom, p. 59). Heraclito afirma que encontrou inovadoramente a verdade e que foi ele quem o fez e mais ninguém. Pode ser, pois, que os gregos tenham ganho neste período uma nova consciência de si mesmos como indivíduos, com uma contribuição distinta a dar ao mundo, e que com alguns indivíduos esta contribuição assumia a forma de pensamento filosófico.
Um segundo factor complementar é o desenvolvimento de escrita alfabética e a divulgação da literacia por meio meio de textos alfabéticos (Lloyd, The Revolutions of Wisdom, p. 70ss.; Lloyd, Magic, Reason and Experience, pp. 239–240). Estes textos permitem o escrutínio sem pressas do seu conteúdo. E a sua existência torna mais provável que as inovações serão reconhecidas e cumulativas. (E na filosofia os textos escritos podem ajudar as teorias filosóficas a sobreviver, incentivando assim a competição entre teorias filosóficas rivais.) Além disso, pode ser que formas diferentes de escrita possam em si estimular o interesse em formas diferentes de perguntas. (Daí que fazer listas estimule um interesse em questões de classificação.)
Porém, o advento da literacia não pode explicar completamente o que aconteceu em Mileto. Pois a literacia transforma frequentemente as sociedades primitivas sem dar origem à especulação filosófica. O que é único no pensamento especulativo na Grécia da antiguidade, afirma Lloyd, é o desenvolvimento do conceito de prova como demonstração por meio de argumento dedutivo.1 E isto, sugere ele, pode ter origem nas perturbações políticas do período e na emergência da democracia grega. Era necessário, tanto para tomar decisões políticas como para argumentar nos tribunais, dar a devida atenção à qualidade da argumentação e das provas a favor de uma dada decisão. E a atenção à argumentação e às provas é precisamente o que é necessário para a prática bem-sucedida da ciência e da filosofia.2
O argumento de Lloyd baseado na emergência da democracia é sem dúvida poderoso. Irei defender, contudo, que os seres humanos faziam perguntas filosóficas muito antes da emergência da filosofia como disciplina — e certamente antes do argumento dedutivo como instrumento da filosofia. No contexto grego, o primeiro filósofo que sabemos que usou o método do argumento dedutivo foi Parménides. Porém, há um sentido em que é perfeitamente apropriado ver os milésios e Heraclito como filósofos. Mais em geral, veremos que não há um método de investigação que seja o método filosófico por excelência: tanto Nietzsche como Descartes são filósofos, e Anaxágoras é tão filosófico quanto Parménides. Podemos sentir, pois, que Lloyd não dá suficiente atenção ao método filosófico e que a sua caracterização da filosofia está de algum modo empobrecida.3 Um tratamento completo da natureza da filosofia incluirá uma discussão da natureza das questões filosóficas e dos seus resultados.
E contudo pode ser que tenhamos de nos centrar na natureza dos métodos filosóficos para que sejamos bem-sucedidos em distinguir as respostas filosóficas das não-filosóficas às perguntas filosóficas. É proveitoso mencionar aqui a comparação levada a cabo por Horton entre o papel da magia nas sociedades tradicionais e o papel da ciência nas modernas. Horton sugere que tanto a ciência como a magia têm a mesma relação com as crenças quotidianas, ao fornecer uma teoria do mundo mais sofisticada; e ambas dizem respeito à explicação, previsão e controlo do mundo (Horton, “Tradition and Modernity Revisited”, p. 240). As crenças tradicionais são conservadoras, mas abertas à “mudança gradual adaptativa” (“Tradition and Modernity Revisited”, p. 243). Contudo, não há competição entre teorias rivais do mundo nas sociedades tradicionais; e a sabedoria numa sociedade tradicional ganha autoridade porque foi transmitida pelos antigos, e não porque, por exemplo, se ajuste melhor à experiência. As sociedades modernas, em contraste, caracterizam-se por essa competição interteórica interna; e as teorias rivais são (racionalmente) avaliadas em termos do seu ajuste com a experiência.
A tese de Horton não foi concebida para dar conta da emergência da filosofia na Grécia antiga. Ele pensa, de facto, que as sociedades modernas começaram a emergir por volta do ano 1200 d.C. (“Tradition and Modernity Revisited”, p. 237). Porém, há uma moral relevante para a nossa investigação que podemos retirar do seu trabalho: é que o que nos interessa não é antes de mais a emergência da filosofia (e da ciência), mas antes a emergência de um certo grau de sucesso destas actividades, ou a emergência de duas disciplinas com histórias. O que aconteceu em Mileto no dealbar do século VI a.C., em resultado da coincidência, nesse momento e nesse lugar, dos diferentes factores mencionados, foi que surgiu a possibilidade de conseguir algum progresso no controlo, previsão e compreensão do mundo.4 O ímpeto para fazer perguntas filosóficas e científicas deve ser visto como parte integrante da natureza humana, comum em todas as sociedades; e não carece de explicação.
Porém, é o ímpeto para procurar respostas a perguntas filosóficas uma parte integrante da natureza humana? A ideia de Craig (The Mind of God and the Works Of Man) de que os filósofo articulam tipicamente mundividências bastante comuns tem esta implicação.E a perspectiva de que num sentido importante todos somos filósofos foi persuasivamente defendida por Popper (“How I See Philosophy”) e Bambrough (“Question Time”). Bambrough recorda o seu trabalho em tempo de guerra e a experiência de discutir questões filosóficas com os mineiros (“Question Time”, p. 63), assim como as suas experiências posteriores, como reitor do colégio de S. João, de discutir questões filosóficas com estudantes rebeldes (p. 66). Refere a “conversa geral da humanidade da qual emerge a filosofia e à qual tem de regressar” (p. 65), e conclui (ainda que não unicamente, é claro, a partir desta base autobiográfica) que “mesmo os génios entre os escritores e pensadores — Shakespeare e Tolstói, Platão e Wittgenstein — estão a fazer a um nível mais intenso algo que todos fazemos e temos de fazer” (p. 60). Popper defende que “todos os homens e todas as mulheres são filósofos, ainda que alguns o sejam mais do outros (Popper, “How I See Philosophy”, p. 198). Se nem todos temos problemas filosóficos, temos pelo menos preconceitos filosóficos (p. 204); e a filosofia profissional é, ou deve ser, o exame crítico de teorias comuns e influentes que damos como garantidas na vida quotidiana (p. 204–205). Porém, “todos os homens são filósofos, porque de um ou de outro modo todos temos uma atitude perante a vida e a morte” (p. 211).
Pensa-se por vezes não apenas que todos os seres humanos adultos são filósofos, mas que também todas as crianças o são. Nagel pensa que “por volta dos catorze anos […] muitas pessoas começam a pensar por si acerca de problemas filosóficos” (Nagel, What Does it All Mean?, p. 3), ao passo que Matthews (Philosophy and the Young Child) detectou um interesse em questões filosóficas entre crianças mais novas. Na introdução desse livro conta como lhe ocorreu “que a minha tarefa como professor não-universitário de filosofia era reintroduzir aos meus estudantes uma actividade a que se tinham já entregado e considerado natural, mas que depois foram pela sociedade levados a abandonar” (p. vii). O seu livro começa com uma criança de seis anos que pergunta “como podemos ter a certeza de que não é tudo um sonho?” — uma pergunta que Descartes formulou e considerou digna de discussão na sua primeira Meditação.5
Segundo esta perspectiva da filosofia, “a matéria-bruta filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado”, como Nagel escreve (What Does it All Mean?, p. 4). E as perguntas que, como seres humanos, não podemos evitar fazer — perguntas sobre ética (como devemos viver), conhecimento (o que podemos ter a esperança de saber e como podemos ter a esperança de sabê-lo), metafísica (o que há no mundo; o nosso lugar no mundo) — surgem naturalmente da condução quotidiana das nossas vidas.
Nesta perspectiva acerca da natureza das perguntas filosóficas é fácil compreender por que a filosofia emergiu mal as condições lhe foram favoráveis. A emergência da filosofia é a emergência de uma resposta distintamente filosófica a perguntas filosóficas; estas por sua vez surgem de um desejo natural que temos, enquanto seres humanos, para compreender o mundo e para nos orientarmos em relação a ele. (Outras perspectivas da natureza das perguntas filosóficas são discutidas em capítulos posteriores.)
Podemos agora virar-nos para os milésios e perguntar por que o tratamento que deram às perguntas filosóficas devem ser visto como filosófico.
Aristóteles diz-nos que Tales pensava que o arche, “princípio” ou “origem”, era a água, “supondo-o talvez por ver humidade no nascimento de todas as coisas” (Metafísica, A3). A explicação de Aristóteles parece hesitante, e é difícil de interpretar. Talvez Tales sustentasse que “tudo é água” ou talvez que “tudo tem origem na água” (daí Kirk, Raven e Schofield, The Presocratic Philosophers, p. 90). Mas não há muita dúvida de que Anaxímenes defendeu que “tudo é ar”. E dos outros pré-socráticos, Heraclito sustentava que tudo é fogo (mas também que há um ciclo cósmico), Anaxágoras defendeu que há algo de tudo em tudo (tudo é uma mistura), e os atomistas que tudo era composto de átomos e vazio. É de confiar, pois, que afirmações como “tudo é água” figuravam entre as primeiras teses filosóficas — e eu proponho-me prosseguir pressupondo que esta tese particular foi realmente avançada por Tales (ainda que eu aceite não haver provas conclusivas de que esta era a sua doutrina central). Como o que nos interessa é perguntar que género de tese é ela, e por que razão tais teses devem ser consideradas filosóficas, não tem grande importância se a tese for incorrectamente atribuída a Tales.
Perguntemos primeiro a que género de pergunta um filósofo que sustenta que “tudo é ar” ou “tudo é água” está a tentar dar resposta. Para Aristóteles, não era difícil formular a pergunta a que tais perspectivas tentam responder. Na Metafísica Z Aristóteles afirma que “Trata-se da pergunta a que os homens sempre tentaram responder, mas que sempre os deixou perplexos — o que é o ser?” (1028b2–4). Em grego, a pergunta é ti to on?, e Aristóteles sente-se autorizado a interpretá-la imediatamente como tis he ousia?, “o que é a substância?”. Guthrie comenta que “a pergunta “o que é o ser?” não é vaga nem obscura, mas antes perfeitamente natural e sensata” (History of Greek Philosophy, p. 204). Ele pensa que o que a pergunta quer dizer é “como havemos de responder à pergunta “o que é?” quando somos confrontados com qualquer objecto?” (p. 208). O próprio Aristóteles pensa que podemos responder à pergunta “o que é?” de muitas maneiras diferentes. Contudo, na Metafísica A3 diz que os milésios se interessavam sobretudo pela causalidade material, ao perguntar pela composição das coisas. Um milésio, deste ponto de vista, responderá sempre à pergunta “o que é?” do mesmo modo. Seja o que for que apontemos, dir-nos-á, por exemplo, que “é água”.
Pode então ser que os milésios não estavam perguntando “o que é o ser?”, ou “o que é a substância?”, mas “de que é feito o mundo?”. E acerca desta pergunta Williams sustenta que
é um dos feitos do progresso intelectual que [esta pergunta] não tenha um significado determinado; se uma criança faz a pergunta, não lhe damos uma ou várias respostas — antes a levamos a ver por que deve ser substituída por várias perguntas diferentes. Claro que há um sentido em que a teoria moderna das partículas é uma descendente das investigações iniciadas pelos milésios, mas essa descendente mudou tanto as perguntas que seria um erro dizer que há uma pergunta sem ambiguidade à qual damos a resposta “electrões, protões, etc”., respondendo Tales (talvez) “água”. (“Philosophy”, p. 208).
Analogamente, a pergunta “de que é tudo feito?” é criticada por Berlin (“Logical Translation”). Ele considera infeliz a propensão dos filósofos para fazê-la, e comenta que na verdade é científica. Os filósofos dão respostas não-empíricas à pergunta, mas só a resposta empírica tem sentido. As filosóficas não podem ser postas empiricamente em dúvida; mas “uma proposição que não pode, sem perda de significado, ser negada ou posta em dúvida não pode dar-nos qualquer informação” (“Logical Translation”, p. 76–77). Claro que Berlin escreve no clima do positivismo lógico; mas é algo como isto que parece estar por detrás da ideia de Williams de que não há aqui uma só pergunta coerente. Não é que Williams partilhe a atitude positivista quanto à metafísica; mas pensa, como Berlin, que uma pergunta filosófica se mistura aqui com uma científica; e concorda implicitamente com a ideia de Berlin de que as discussões que encontramos nos filósofos gregos da pergunta ti to on? são inadequadas. Berlin sugere que fizeram uma pergunta científica que confundiram com uma pergunta filosófica; Williams que não conseguiram distinguir pelo menos duas perguntas diferentes.
Porém, não é auto-evidente que a pergunta ti to on? seja ambígua ou obscura. Nos primeiros anos do século XX, G. E. Moore e Bertrand Russell consideraram a pergunta (relacionada) “o que há?” inteiramente coerente. Na verdade, G. E. Moore sustenta que o “primeiro e mais interessante problema da filosofia” é fornecer “uma descrição geral de todo o universo”, ou fazer os filósofos “exprimir as suas opiniões sobre o que há ou não no Universo” (Some Main Problems of Philosophy, p. 23). E pensa que quando nos entregamos a esta tarefa recebemos respostas diferentes do senso comum, por um lado, e dos vários filósofos, por outro, alguns dos quais acrescentam algo ao senso comum, contradizendo-o outros. Russell, no seu Problems of Philosophy, baseando-se no trabalho de Moore, toma a sua mesa de trabalho como um exemplo de um objecto do senso comum e comenta que para os filósofos é um “problema cheio de possibilidades surpreendentes”. As respostas dos filósofos à pergunta “que género de objecto é isto?”
diferem das perspectivas dos mortais comuns […] Leibniz diz-nos que é uma comunidade de almas; Berkeley que é uma ideia na mente de Deus; a ciência sóbria, dificilmente menos maravilhosa, diz-nos que é uma vasta colecção de cargas eléctricas em movimento violento […] a dúvida sugere que talvez não haja mesa alguma. (Problems of Philosophy, p. 6).
Moore e Russell sustentam, pois, que há uma só pergunta aqui à qual o senso comum, a ciência e vários filósofos dão respostas diferentes e que entram em conflito entre si. Oferecem a ciência e a filosofia teorias mais sofisticadas acerca do mundo do que o senso comum, como Russell parece sugerir nesta passagem? Ou tem Williams razão ao diagnosticar a inexistência de conflito, depois de as perguntas terem sido clarificadas?
A favor da perspectiva de Williams podemos argumentar que o contexto no qual alguém pergunta “o que está ali?” irá realmente ajudar a determinar o tipo de resposta que lhe daremos. E talvez o próprio facto de se poder dar diferentes respostas, ou diferentes tipos de respostas — científicas e filosóficas, filosóficas e de senso comum —, seja uma indicação de que a pergunta é de facto ambígua (ou que não tem um significado claro). Porém, ao mesmo tempo, temos de reconhecer que os filósofos (se não os cientistas) consideram muitas vezes que estão a contradizer a perspectiva de senso comum acerca do que há, ou a acrescentar-lhe algo. É certo que tentam contradizer e complementar as perspectivas de outros filósofos. Além disso, permanece o problema filosófico imenso de como relacionar o que Williams denomina a concepção “absoluta” do mundo com as suas representações mais paroquiais e particulares (Williams, Descartes).
Regressaremos à questão de como os resultados da reflexão filosófica ou da investigação científica se relacionam com a nossa perspectiva de senso comum do mundo. Aceitemos aqui simplesmente que tanto os cientistas e os filósofos como o senso comum perguntam, por vezes, “o que há ali?”, e examinemos as respostas dos milésios.
Parece claro que ao afirmar que “tudo é água” ou “tudo é ar”, Tales e Anaxímenes não queriam formular a sabedoria tradicional da sociedade milésia nem articular uma mundividência de senso comum. Dummett fez a sugestão plausível de que o senso comum não oferece uma ““teoria do mundo” única, permanente e unificada” (“Common Sense and Physics”, p. 18), estando antes “culturalmente condicionada e sujeita a evoluir” (p. 20). Porém, parece claro que nunca e em nenhum lugar foi uma perspectiva de senso comum de que o mundo é composto de água ou ar. Ao invés, o mundo é composto de uma diversidade de objectos físicos inanimados como mesas e cadeiras, juntamente com uma diversidade de objectos animados como seres humanos.
Como adultos, não reflectimos muito no que há, ou na composição do mundo. Damos como garantidas as respostas a estas perguntas na vida quotidiana. (As crianças, é claro, perguntam o que há ao tentar compreender o funcionamento do mundo — podem perguntar-se se há mágicos ou não, por exemplo.) Contudo, todos temos alguma teoria acerca do que há que desempenha algum papel na nossa compreensão geral do funcionamento do mundo.6 E esta teoria pode ser científica ou filosoficamente posta em questão.
Como está Tales a pôr em questão a posição de senso comum? Será a tese de que “tudo é água” científica? Se perguntarmos hoje se podemos dar sentido à ideia de que tudo é água, podemos talvez pensar que a ciência poderia revelá-lo. É certo que não parece que tudo é água; mas as descobertas científicas revelaram muitas vezes que o mundo não é exactamente o que parece (que o mundo é redondo, e não plano; que a Terra orbita o Sol e não vice-versa; e assim por diante). Talvez, pois, Tales estivesse formulando a primeira conjectura científica ao sustentar que a arche é água.7
Popper (The Logic of Scientific Discovery) defendeu que a ciência avança por meio do método de conjectura e refutação. Formula-se uma conjectura especulativa acerca da natureza das coisas; é então criticada à luz de provas experimentais; acaba por ser refutada; e é então ultrapassada por outra conjectura mais adequada que, por sua vez, é sujeita à crítica e à refutação. Popper teceu comentários directos aos pré-socráticos no artigo “Back to the Presocratics”. Neste artigo, sublinha menos a tese de que os pré-socráticos foram os primeiros cientistas do que o modo como estabeleceram pela primeira vez uma tradição de discussão crítica. (Pois todo o conhecimento, sustenta ele, procede por meio de conjecturas e refutações (“Back to the Presocratics”, p. 152).) Popper sustenta que todos os pré-socráticos tentam responder às mesmas perguntas — perguntas que ele vê como filosóficas e não científicas, de facto8 — mas que cada qual tenta melhorar o trabalho dos seus predecessores. Assim, um dos méritos de Tales é dar origem a Anaximandro. E dificilmente podemos evitar pensar que isto não é apenas porque ele era o género de pessoa que podia tolerar a crítica (como Popper sugere, p. 150), mas também devido à natureza da perspectiva que expressa. Para Popper, um dos méritos de perspectivas como “tudo é água” é que é improvável que sejam suscitadas simplesmente pela mera observação do que acontece no mundo. Na verdade, é precisamente porque a conjectura é corajosa que vale a pena formulá-la e depois criticá-la.
Assim, será que o facto mais significativo acerca de Tales é ter formulado uma conjectura corajosa e de aparência implausível, que vai muito além da nossa experiência quotidiana do mundo? Se demarcarmos o domínio da ciência a priori, como Popper, consideraremos que a tese de Tales acerca da água é totalmente científica: afinal de contas, foi entretanto falsificada em resultado do progresso científico. Contudo, se caracterizarmos a ciência examinando, de maneira naturalista, os procedimentos dos cientistas, como faz Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions), os pré-socráticos não se parecem muito com cientistas. Pois a ciência, tal como agora a conhecemos, envolve algum género de prática efectiva de descoberta, atribuindo algum papel à observação e à experimentação, e a maior parte do que os pré-socráticos oferecem é realmente, como Berlin suspeita, mera teorização de poltrona. Assim, há consequentemente alguma razão para duvidar se devemos realmente ver a tese de Tales como científica em vez de filosófica.
Quanto à natureza da tradição crítica mais em geral, pode ser que também aqui a perspectiva de Popper precise de ser alterada. Os pré-socráticos podem ficar com algum crédito por terem estabelecido uma tradição crítica. Contudo, como Barnes sublinhou, a crítica dos predecessores oferecida pelos pré-socráticos consiste, em geral, não numa cuidadosa atenção aos seus argumentos ou na refutação experimental das suas conclusões, mas antes na formulação de teorias rivais, que alegadamente permitem melhores explicações dos fenómenos (cf. The Presocratic Philosophers, vol. 1, p. 51).9 Os milésios submetem realmente as suas ideias ao escrutínio crítico; mas esse escrutínio não assume a forma que Popper antecipa.
Regressemos agora à pergunta “o que há?”, e perguntemos por que razão pensaram os filósofos que é importante.
Para os próprios milésios, dizer o que há, ou qual é a composição do mundo, pode simplesmente ter sido uma tentativa de ir além e de aprofundar o nosso entendimento quotidiano do mundo — do mesmo modo que as religiões podem ter a esperança de fazer o mesmo. Podemos comparar com Guthrie: “o caos aparente dos acontecimentos têm de esconder uma ordem subjacente […] esta ordem é o produto de forças impessoais” (History of Greek Philosophy, Vol. I, p. 26). Ou Popper: “Penso que os milésios viam o mundo […] como uma espécie de casa […] Não havia necessidade de perguntar para que servia. Mas havia uma necessidade real de investigar a sua arquitectura” (“Back to the Presocratics”, p. 141).10 Pode muito bem ser que eles tenham alterado significativamente o entendimento contemporâneo do mundo. Como Guthrie sugere, é importante que o mundo não seja, para os milésios, um palco mitológico, e que seja antes povoado por forças naturais. O conteúdo dos ensinamentos dos milésios difere, neste aspecto, do conteúdo dos ensinamentos religiosos; e a natureza das suas perspectivas estimula-nos a reflectir criticamente.
Para nós, a importância da pergunta “o que há?” é muito diferente. Pois dizer o que há prepara as coisas para os problemas posteriores da filosofia (devemos chamar-lhe o primeiro problema da filosofia — e a ele dedica Russell o primeiro capítulo do seu livro). Assim, Hume argumenta primeiro que há ideias e impressões, dando depois uma explicação do resto da vida em termos de ideias e impressões. Quine sustenta que há teorias e que há coisas nas teorias; e isto é o fundamento da sua filosofia. E David Lewis defende a doutrina da “sobreveniência humiana”, que “tudo o que há no mundo é um imenso mosaico de questões locais de facto particular, uma coisa pequena apenas, e depois outra” (Philosophical Papers, Vol. II, p. xi).
Levanta-se depois a questão de estes filósofos conseguirem ou não explicar a nossa experiência humana do mundo em termos da sua ontologia (da sua teoria do que há). Não sabemos se os milésios tentaram fazê-lo ou não. Aristóteles pensava que alguns pré-socráticos tardios o tentaram mas sem sucesso. Ele comenta que
não é provável que o fogo ou a terra ou qualquer outro elemento deva ser a razão pela qual as coisas manifestam o bem e a beleza tanto no seu ser como no seu devir […] nem seria além disso correcto entregar tão grave questão à espontaneidade ou ao acaso. (Metafísica, 984b11–15).
A ontologia de um filósofo pode ser talvez filosoficamente adequada para esta tarefa, mas cientificamente incorrecta. Assim, os comentários de Lewis de que “Na verdade, o que sustento não é tanto a verdade da sobreveniência humiana quanto a sua viabilidade. Se a própria física me mostrasse que é falsa, não o lamentaria” (Philosophical Papers, Vol. II, p. xi). Parece improvável, contudo, que os milésios teriam partilhado a perspectiva de Lewis. Se Tales disse “tudo é água”, penso que teria lamentado ao descobrir que nem tudo é água, e não teria dito apenas “bem, a tese era viável; tudo poderia ter sido água”. Os milésios trabalhavam no domínio da ciência e devem ter tido a esperança de que as suas perspectivas seriam cientificamente comprovadas, além de serem filosoficamente viáveis.
A filosofia não emergiu totalmente desenvolvida em Mileto no século VI a.C. Mas Tales, Anaximandro e Anaxímenes estavam num contexto propício e nos seus trabalhos encontrou a filosofia a sua primeira base. Estas figuras queriam compreender o mundo (como a maior parte dos seres humanos) e para isso avançaram várias explicações unificadoras simples (e que estavam em conflito entre si) da aparente diversidade do mundo. Porém, o que é importante para nós é que os milésios ofereceram um género novo de resposta a uma pergunta tradicional — uma resposta que pedia avaliação racional. As perspectivas de Tales serviram de ponto de partida para os seus sucessores imediatos e ajudaram a inaugurar uma tradição crítica. E é por isso que agora vemos estes três milésios como os primeiros filósofos.
Em Magic, Reason and Experience (p. 233), Lloyd destaca também o interesse grego em questões fundacionais e em formas generalizadas de cepticismo como características únicas do pensamento especulativo grego. ↩︎︎
Compare-se, com o argumento político de Lloyd, a tese de Cohen de que a filosofia é “um movimento cultural que promove a tolerância, o sufrágio universal, o pluralismo ético, a resolução não-violenta de disputas e uma liberdade de actividade intelectual, ao mesmo tempo que resulta de tudo isto” (The Dialogue Of Reason, p. 62). ↩︎︎
Lloyd refere a natureza “limitada” do pensamento especulativo do século VI (Magic, Reason and Experience, p. 262). Ele tem em mente sublinhar o âmbito limitado da investigação filosófica no século VI (veja-se também Magic, Reason and Experience, pp. 226–267, esp. pp. 235–240). ↩︎︎
Williams pensa que a pergunta “por que eram os milésios racionais?” é mais frutífera do que a pergunta “por que eram eles filosóficos?” (“Philosophy”, p. 218). A única resposta que ele dá à primeira é que eles sabiam quais as perguntas que precisavam de resposta; e isto não é muito iluminante. ↩︎︎
Matthews sugere que à medida que as crianças ficam mais velhas o seu interesse pela filosofia torna-se menos óbvio e menos intenso (p. 106). ↩︎︎
Penso, pois, que Dummett está enganado ao sugerir que “a crença numa perspectiva de senso comum única (…) postula uma teoria que não é uma teoria” (“Common Sense and Physics”, p. 19). As citações de Moore e Russell mostram que eles pensam que o senso comum oferece uma teoria que compete com as filosóficas (e possivelmente com as científicas). ↩︎︎
Devemos fazer notar que se Tales defendeu não que tudo é água mas que tudo tem origem na água, esta ideia também parece uma conjectura científica. ↩︎︎
Popper refere tanto os seus “interesses cosmológicos” (“Back to the Presocratics”, p. 141) como “o problema geral da mudança” (p. 142) — um problema que ele considera filosófico e não científico. ↩︎︎
Lloyd faz notar que os primeiros pensadores especulativos gregos tinham tendência para ser pouco cautelosos e dogmáticos, e não autocríticos (Magic, Reason and Experience, p. 234). ↩︎︎
Compare-se também com Frischer: “Tales propõe uma nova ideologia que sustenta a nova classe dominante de hoplitas não-aristocratas do tirano destruindo o mito aristocrata da descendência dos deuses que criaram o mundo” (The Sculpted Word, pp. 18–19). ↩︎︎