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Crítica
29 de Dezembro de 2007   História da filosofia

A vida de Wittgenstein

Rui Daniel Cunha
Ludwig Wittgenstein
de Edward Kanterian
Londres: Reaktion Books, 2007, 224 pp.

A mais recente biografia de Wittgenstein saiu há pouco tempo na editora Reaktion Books, e é um excelente relato da vida do pensador austríaco, escrita num estilo cativante e acessível, que seduz o leitor interessado desde o início do livro e o obriga a continuar a ler até ao seu final. Além da história pessoal de Wittgenstein, o autor fornece um conjunto de conteúdos filosoficamente relevantes, o que só aumenta o interesse e a importância da obra. É mais um volume da colecção Critical Lives, que já nos tinha trazido Michel Foucault, por David Macey, e Noam Chomsky, por Wolfgang Sperlich, entre outros títulos.

Claro está que os livros Ludwig Wittgenstein: the Duty of Genius, de Ray Monk, editado pela Jonathan Cape em 1990, e Wittgenstein: A Life (Young Ludwig 1889–1921), de Brian McGuinness, publicado pela Duckworth em 1988, continuam a ser as obras biográficas de referência acerca do filósofo vienense. Contudo, o leitor que preferir uma biografia mais sucinta — mas não menos fiel — de Wittgenstein tem neste livro de Kanterian uma óptima opção.

O livro está dividido em dez capítulos e uma Introdução, que faz apelo a Heidegger logo na abertura do livro. No início de uma aula sua, este terá dito (a propósito de Aristóteles, que era o assunto da aula), “Aristóteles nasceu, trabalhou e morreu. Agora debrucemo-nos sobre as suas ideias “ (p. 7), como expressão de uma tese bem precisa e bem conhecida: quaisquer detalhes da vida de um filósofo são irrelevantes para a análise e avaliação das suas teorias.

Claro está que existe também uma tese perfeitamente oposta a esta, igualmente notória: a compreensão das teorias de um pensador passa necessariamente pela análise das circunstâncias e do meio envolvente em que escreveu a sua obra, isto é, pelo conhecimento dos aspectos relevantes da sua própria vida.

O texto fora da vida, na primeira hipótese, contra a vida dentro da escrita, na segunda hipótese. E qual das duas hipóteses permite explicar melhor Wittgenstein? Este é o problema de que se ocupa a Introdução de Kanterian. Em qualquer uma das duas hipóteses subsiste, contudo, um problema hermenêutico fundamental: será possível compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si próprio? E, decorrendo desta questão, uma outra questão essencial — poderemos nós, leitores, perceber melhor a visão do mundo de Wittgenstein e as suas teorias filosóficas, através do trabalho de biógrafos e comentadores?

Kanterian começa por se decidir pela primeira hipótese: a vida de Wittgenstein é irrelevante para a sua produção filosófica, argumentando com o facto de a larga maioria dos seus escritos versarem questões como “os fundamentos da matemática e da lógica, a filosofia da linguagem e da mente, e a natureza da própria filosofia” (p. 7). Contudo, a personalidade carismática de Wittgenstein e a sua própria maneira muito peculiar de viver exercem sobre nós um fascínio que persiste mesmo se não conhecermos os detalhes da sua obra filosófica, o que leva Kanterian a refinar a sua análise. Kanterian estabelece então um contraste entre o Wittgenstein intelectual — com preocupações éticas e religiosas, crítico do mundo contemporâneo, ambivalente em relação à psicanálise e ao marxismo, rejeitando o seu próprio estatuto social de membro da classe alta austríaca — e o Wittgenstein filósofo — autor de duas filosofias distintas e ambas geniais, a do Tractatus Logico-Philosophicus e a das Investigações Filosóficas, contrastantes nas teses, no método e até no estilo de escrita. Deste modo, a tese reformulada do livro de Kanterian é que, mesmo sendo possivelmente irrelevante para o Wittgenstein filósofo, a vida de Wittgenstein já não é irrelevante — bem pelo contrário — para o Wittgenstein intelectual, e daí a razão de ser desta biografia e a sua importância.

O primeiro capítulo (1889–1911) descreve as origens da aristocrática família Wittgenstein: o pai, Karl Wittgenstein, a mãe, Leopoldine Kalmus, os sete irmãos de Wittgenstein — quatro rapazes (três dos quais viriam a cometer suicídio) e três raparigas —, a profunda ligação da família ao mundo artístico e cultural da sociedade austríaca, a ambiente da Viena fin-de-siècle, e sua influência na formação intelectual e espiritual de Wittgenstein. Todo este material é aqui elegantemente apresentado.

O segundo capítulo (1911–1914) é mais importante, porque trata de uma questão fundamental: a génese do interesse de Wittgenstein pela filosofia. Tendo estudado engenharia mecânica em Berlim, de 1906 a 1908, e depois engenharia aeronáutica em Manchester, a partir desta última data, nada faria prever que Wittgenstein viesse a desenvolver um interesse pela filosofia. Kanterian defende a tese segundo a qual esse nascimento do interesse foi um processo gradual, que começou ainda nos tempos de Berlim e se acentuou já em Manchester, com base no interesse de Wittgenstein pelos fundamentos da matemática e pelos trabalhos de Frege (lógica matemática), Cantor (teoria dos conjuntos) e Peano (axiomatização da aritmética). Foi justamente o interesse pelo trabalho de Frege que levou Wittgenstein a deslocar-se a Jena, em 1911, para estudar com ele, mas Frege sugeriu-lhe que seria melhor ir para Cambridge e trabalhar com Bertrand Russell — o primeiro volume dos Principia Mathematica tinha sido publicado no ano anterior. Wittgenstein seguiu o seu conselho e foi para o Trinity College, de Cambridge, marcando presença nas aulas de Russell a partir de Outubro de 1911. É Russell quem o aconselha a dedicar-se definitivamente à filosofia, não se enganando quando declarou — profeticamente — à irmã de Wittgenstein, Hermine, numa visita desta a Cambridge, em 1912: “Esperamos que o próximo grande passo em frente na filosofia seja dado pelo seu irmão” (p. 38).

Em Cambridge, Wittgenstein conhece, para além de Russell, outros pensadores notáveis: o economista John Maynard Keynes, o matemático G.H. Hardy e o filósofo G.E. Moore. O maior amigo de Wittgenstein, contudo, nestes primeiros anos em Cambridge, seria David Pinsent, jovem estudante de matemática, e a cuja memória — Pinsent morreria em 1918 — dedicou Wittgenstein o seu Tractatus Logico-Philosophicus. Kanterian analisa detalhadamente a relação entre os dois e também a crescente tensão entre Wittgenstein e Russell, primeiro, e Wittgenstein e Moore, a seguir, motivada em grande parte pelo temperamento difícil de Wittgenstein. É também nesta altura que se iniciam as viagens de Wittgenstein para retiros de tipo monástico, onde possa pensar e escrever filosofia sem ser incomodado. Wittgenstein tinha uma predilecção especial pela Noruega: uma pequena e isolada cabana de madeira, a cerca de dois quilómetros da pequena aldeia de Skjolden, na zona de Bergen, tornar-se-ia o seu local favorito e ao qual regressaria pela vida fora (a fotografia da cabana de Wittgenstein encontra-se na página 57).

No Verão de 1914, Wittgenstein parte da Noruega para Viena, de visita a casa, e um acontecimento maior da história europeia do século XX vai afastá-lo de Cambridge por longos anos: o deflagrar da primeira guerra mundial. O capítulo terceiro é justamente dedicado ao período de guerra de Wittgenstein, que se alista como voluntário no exército austríaco a 7 de Agosto de 1914. Serão quatro anos penosos de guerra, que terminariam quando Wittgenstein é capturado e feito prisioneiro de guerra pelas tropas italianas, perto de Trento, uma semana antes do armistício de Novembro de 1918. Kanterian cita, curiosamente, uma observação do Manuscrito MS 101, de 25 de Outubro de 1914 (edição electrónica em CD-Rom do Nachlass, Bergen e Oxford, 2000), que mostra que Wittgenstein não alimentou grandes ilusões acerca do destino da guerra: “Parece-me certo que não nos conseguiremos superiorizar à Inglaterra. Os ingleses — a melhor raça do mundo — não podem perder. Pelo contrário, nós podemos e vamos perder, e se não for este ano, então será para o ano. O pensamento de que vamos ser derrotados deprime-me terrivelmente, porque sou completamente germânico” (pp. 61–62).

É ainda durante este tempo de guerra que Kanterian relata a perturbação de Wittgenstein ao ler O Anti-Cristo, de Nietzsche. Citando, de novo, o Nachlass (MS. 102, 8 de Dezembro de 1914): “Estou profundamente afectado pela hostilidade [de Nietzsche] ao cristianismo. Porque os seus escritos parecem ter alguma verdade. Claro que o cristianismo é o único caminho seguro para a felicidade; mas o que é que acontece se se rejeita essa felicidade? “ (pp.65). Como bem observa Kanterian, “as questões acerca da vida e da morte eram, nesta altura, de importância pessoal para Wittgenstein, e não filosófica” (pp. 65). Porém, a preocupação com Deus, com o sentido da vida, com a ética e com a felicidade vão encontrar expressão, mais tarde, num conjunto final de parágrafos do Tractatus Logico-Philosophicus, a par das reflexões acerca da lógica, da linguagem e da ontologia, de tal modo que a conciliação dos dois tipos diferentes de reflexões na mesma obra (o Tractatus) ainda hoje é um desafio que divide os comentadores.

Foi justamente nestes anos de guerra que, nos intervalos das missões e dos combates, Wittgenstein escreveu a sua primeira obra-prima, o Tractatus Logico-Philosophicus, a cuja análise filosófica se procede no capítulo quatro, onde Kanterian expõe, de forma muito concisa mas tanto quanto possível precisa, as linhas gerais de interpretação das teorias filosóficas do Tractatus.

Segue-se o capítulo quinto, sugestivamente intitulado “The Wilderness Years” (de 1918 a 1929). Escrito o Tractatus e publicado (após muitas dificuldades e várias recusas) nos Annalen der Naturphilosophie, em 1921, Wittgenstein abandonou a filosofia, tendo decidido tornar-se professor primário. Matriculou-se na Escola de Formação de Professores de Viena em Setembro de 1919 e obteve o diploma requerido em Julho de 1920. Segue-se um Verão a trabalhar como jardineiro, no mosteiro de Klosterneuburg, perto de Viena. A morte de Pinsent durante a guerra afectou profundamente Wittgenstein, como ele próprio o refere numa carta a Russell, que Kanterian cita apropriadamente: “Penso em Pinsent todos os dias. Ele levou consigo metade da minha vida. A outra metade será levada pelo diabo” (p. 93). Começa então a carreira de professor primário de Wittgenstein, primeiro em Trattenbach, depois em Hassbach, Puchberg e Otterthal.

Kanterian descreve a experiência — nem sempre agradável — de ter Wittgenstein como professor primário a partir de memórias de antigos alunos de Wittgenstein, algumas das quais, aliás, já citadas no livro de Ray Monk. Em Abril de 1926, Wittgenstein terminaria a sua carreira de professor primário da pior maneira, após bater num aluno durante uma aula e este ter desmaiado. Regressa então ao seu trabalho de jardineiro, agora em Hütteldorf, até à morte da mãe, em Junho de 1926, que o leva a uma reaproximação da sua família. Passa então a projectar e dirigir a construção de uma vivenda para a sua irmã Margarete, na Kundmanngasse, em Viena, ainda hoje existente e local de peregrinação dos wittgensteinianos — quando a visitei pela primeira vez, no Verão de 1986, funcionava lá a Embaixada da Bulgária (a fotografia da casa está na página 104).

É também neste período que, conforme refere Kanterian, “Wittgenstein foi apresentado a uma jovem e rica suíça, estudante de arte, Marguerite Respinger, amiga da família, e que Wittgenstein cortejou durante cerca de três anos — a única relação heterossexual que conhecemos dele” (p. 106). Kanterian descreve algumas peripécias da relação, que terminaria definitivamente em 1931, após uma última visita de Marguerite a Wittgenstein, na Noruega.

Também durante estes anos de Viena começariam os contactos filosóficos de Wittgenstein com os membros do chamado Círculo de Viena, e em especial com Moritz Schlick e Friedrich Waismann, abordados por Kanterian no sexto capítulo, que trata exactamente do regresso de Wittgenstein à Filosofia e a Cambridge, onde seria professor ao longo da década de trinta. A conferência proferida em Viena, em Março de 1928, pelo matemático holandês L.E.J. Brouwer, fundador do intuicionismo em filosofia da matemática, terá sido, argumenta Kanterian, uma das principais razões para esse retorno. Ao reencontrar Wittgenstein, em Janeiro de 1929, Keynes terá comentado: “Bem, Deus regressou. Encontrei-O no comboio das 17 horas e quinze minutos” (p. 117). Aos quarenta anos, Wittgenstein é de novo estudante do Trinity College, agora de doutoramento, sob a orientação do seu amigo Frank P. Ramsey. Submetido o Tractatus como tese de doutoramento, é aprovado, em Junho desse mesmo ano, por um júri de que fazem parte Russell e Moore, justamente. E Wittgenstein recomeça o seu trabalho académico, leccionando no seu Study, e de investigação, escrevendo imenso em cadernos manuscritos, muitos dos quais a que hoje já se tem acesso graças à edição electrónica de Bergen do seu Nachlass. As suas aulas, exercícios de puro pensamento, sempre sem notas nem preparação prévia, conferiram-lhe a aura de um génio e a elas assistiram um conjunto de alunos que viriam também a produzir trabalho filosófico de relevo. Exemplos disso são Elizabeth Anscombe, Max Black, Peter Geach, Georg Kreisel, Norman Malcolm, Stephen Toulmin e, claro, Alan Turing. Em 1932, entretanto, Wittgenstein conhece um outro jovem estudante de matemática, Francis Skinner, com quem se relacionaria profundamente durante vários anos. Tragicamente, Skinner morreria de poliomielite em 1941, aos 29 anos. Como observa Kanterian, “Wittgenstein estava devastado. No funeral de Francis, descreveram Wittgenstein como tendo um comportamento de um “animal selvagem assustado"" (p. 135).

Entretanto, a evolução filosófica de Wittgenstein levara-o já para bem longe das teses do Tractatus. Estava em gestação todo um novo conjunto de ideias filosóficas, que Wittgenstein se esforçava por fixar de forma definitiva, sempre sem sucesso (a sua segunda obra-prima, as Investigações Filosóficas, só seriam publicadas postumamente e graças aos cuidados de edição de Elizabeth Anscombe, Rush Rhees e Georg Henrik von Wright, seus antigos alunos).

Kanterian dedica o sétimo capítulo do seu livro aos anos da segunda guerra mundial (1939–1945), bem como aos últimos dois anos de ensino em Cambridge (1945–1947). Com o Anschluss hitleriano de Março de 1938, Wittgenstein perdera a cidadania austríaca e tornara-se automaticamente cidadão alemão, sujeito — devido à sua ascendência judaica — às leis racistas de Nuremberga. Wittgenstein opta então por pedir a nacionalidade britânica, que lhe é concedida em Junho de 1939 e que conservaria até ao fim da sua vida. Entretanto, no início desse ano de 1939, Moore deixa a cátedra de Filosofia e Wittgenstein candidata-se ao seu lugar. Como escreve Kanterian, “Wittgenstein estava convencido que não seria eleito, porque o filósofo de Oxford, R.G. Collingwood, de quem Wittgenstein suspeitava ser-lhe hostil, fazia parte do júri eleitoral. Mas como observou na altura C.D. Broad, que também não gostava de Wittgenstein, “recusar a cátedra a Wittgenstein seria como recusar uma cátedra de física a Einstein”, observação que terá surpreendido o próprio Wittgenstein. Foi eleito professor catedrático a 11 de Fevereiro de 1939" (pp. 151–152).

Com o início da segunda guerra mundial, Wittgenstein quis, de novo, exercer uma actividade mais prática e que contribuísse para o esforço de guerra anti-hitleriano — e desta vez Wittgenstein estaria do lado inglês da guerra. Com a ajuda do filósofo de Oxford Gilbert Ryle, cujo irmão era médico no Guy's Hospital, em Londres, Wittgenstein torna-se lá auxiliar hospitalar, com a tarefa de distribuir os vários medicamentos pelas várias alas do hospital. Mais tarde viria a trabalhar nos laboratórios do mesmo hospital, preparando remédios e pomadas para tratamentos da pele (eram numerosas as vítimas londrinas do Blitz). Kanterian relata que foi neste tempo a trabalhar no hospital que Wittgenstein se começou a interessar profundamente por Freud e pelas suas teorias psicanalíticas.

Em Abril de 1943, Wittgenstein é transferido para Newcastle, onde ficará até Fevereiro de 1944, integrado agora numa unidade de investigação dos efeitos psicológicos dos bombardeamentos nas populações atingidas (aquilo a que hoje se chama o “stress pós-traumático”). Depois de Newcastle, com a guerra a aproximar-se do fim, por efeito conjugado da pressão soviética na frente oriental e do desembarque aliado em França, na frente ocidental, Wittgenstein vai para Swansea, no País de Gales, onde Rhees era professor e onde ficará cerca de seis meses. Conforme explica Kanterian, “foi aqui que Wittgenstein deixou de trabalhar na filosofia da matemática [...] e passou a interessar-se pela filosofia da psicologia (ou filosofia da mente, como diríamos hoje em dia)” (p. 160).

Só em Outubro de 1944 Wittgenstein regressaria a Cambridge e às suas aulas, agora essencialmente acerca da filosofia da mente, e ao trabalho — que qualificaríamos de quase sisifiano — de composição das Investigações Filosóficas. Em 1945, Wittgenstein conhece outro jovem estudante de Cambridge — medicina, no King’s College —, Ben Richards, com quem viria a desenvolver uma relação que duraria vários anos. Entretanto, cada vez mais fatigado do ensino, Wittgenstein abandona definitivamente a docência no Verão de 1947, demitindo-se da cátedra, e decide-se por um novo retiro para tentar terminar o seu livro, agora na Irlanda, partindo para Dublin em Dezembro de 1947. Mas não é ainda desta vez que as Investigações serão terminadas.

Kanterian, no entanto, dedica todo o capítulo oito do seu livro a uma breve — mas de novo iluminante — análise filosófica da obra, enfatizando o contraste entre o paradigma sistemático de fazer filosofia, como era o caso do Tractatus, e o novo paradigma assistemático das Investigações, descritivo e já não prescritivo, casuístico e já não genérico, labiríntico e já não axiomático. Necessariamente sintética, está análise de Kanterian tem o mérito de ajudar o leitor a adquirir uma visão clara da segunda filosofia da Wittgenstein.

O penúltimo capítulo descreve os últimos quatro anos (1947–1951) da vida de Wittgenstein. Como correctamente refere Kanterian, “são anos de doença, solidão e melancolia” (p. 187) para Wittgenstein. Na Irlanda, de Dezembro de 1947 a Junho de 1949, Wittgenstein escreve, dividindo o seu tempo entre a cidade (Dublin) e o campo (primeiro em Red Cross, no concelho de Wicklow, e depois na costa oeste, em Killary Bay, no concelho de Galway). Mas a sua saúde começa a dar sinais inquietantes, com problemas intestinais e uma forma atípica de anemia, diagnosticada em Maio de 1949. Mesmo assim Wittgenstein decide atravessar o Atlântico, visitando pela primeira e única vez os Estados Unidos, para reencontrar o seu antigo aluno Norman Malcolm, professor na Universidade de Cornell, no estado de Nova Iorque. Parte em Julho desse ano e aí passa o Verão, discutindo longamente filosofia com Malcolm, Max Black, Oets Bouwsma e John Nelson, entre outros professores de Cornell. Filosoficamente, os problemas epistemológicos são agora proeminentes (especialmente a questão do cepticismo), tendo as observações de Wittgenstein acerca deste problema sido reunidas na obra Da Certeza — que foi matéria opcional do programa da disciplina de Filosofia do 12.º ano até há bem pouco tempo.

De regresso à Europa — Inglaterra — em Outubro, é-lhe diagnosticado um cancro na próstata. Vai então passar um último Natal em Viena com a sua irmã Hermine, que morreria em Fevereiro de 1950. Na Primavera regressa a Inglaterra, mas desta vez vai para Oxford, alojando-se em casa da sua ex-aluna, a professora Elizabeth Anscombe. Por lá permanecerá até Outubro. Como escreve Kanterian, “em Oxford, Wittgenstein sentiu que a sua vida estava a chegar ao fim e pediu a Anscombe que o colocasse em contacto com um padre católico, o Padre Conrad Pepler” (p. 195). Wittgenstein aproxima-se agora da mesma fé que tanto o amparara nos seus dias de militar, durante a primeira guerra mundial. A doença, porém, ainda lhe concede algum tempo e em Outubro de 1950 parte uma última vez para o seu refúgio de Skjolden, na companhia de Ben Richards, ainda e sempre às voltas com a filosofia — escreveria os seus últimos pensamentos filosóficos dois dias antes de morrer. Mas em Janeiro de 1951 Wittgenstein sofre uma nova recaída e fica claro que já lhe restam poucas semanas de vida. Generosamente, o seu médico de Cambridge, o Dr. Bevan, convida-o a passar os últimos dias de vida na sua residência, pois a perspectiva de morrer num hospital aterroriza Wittgenstein.

Wittgenstein morre a 29 de Abril de 1951, e as suas últimas palavras, ditas à esposa do Dr. Bevan, ficaram famosas: “Tell them I've had a wonderful life”. Os seus amigos providenciam para que tenha um funeral católico, sendo sepultado no cemitério da igreja de St. Giles, em Cambridge.

O último capítulo é dedicado ao enorme impacto de Wittgenstein na filosofia contemporânea, e Kanterian recenseia — de forma breve mas adequada — a influência de Wittgenstein nalgumas das principais áreas da filosofia: a filosofia da linguagem, claro, mas também a filosofia da mente e a metafilosofia, por exemplo. Os cerca de 10 000 livros e artigos publicados acerca de Wittgenstein comprovam, se necessário fosse, a sua relevância no panorama filosófico contemporâneo.

A sua vida permanece igualmente fascinante e Kanterian termina a sua excelente biografia construindo uma analogia entre a existência de Wittgenstein e a moderna condição humana: “Apesar dos seus sucessos intelectuais, Wittgenstein nunca encontrou o seu Sitz um Leben, o seu lugar na vida — tal como o homem moderno. Lutou para ser perfeito, mas a sua vida foi fragmentária, rica em triunfos, contradições e falhanços. É neste sentido que a sua vida foi bela, ou antes, paradigmática” (pg. 204).

Rui Daniel Cunha

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