Segundo um ser extraterrestre tralfamadoriano, no livro Slaughterhouse Five de Kurt Vonnegut, Jr., os tralfamadorianos viajaram até aos confins do universo e só na Terra se fala de livre-arbítrio. Talvez. Mas fala-se mesmo muito.
O problema do livre-arbítrio e do determinismo surge devido a uma aparente contradição entre duas ideias plausíveis. A primeira é a ideia de que os seres humanos têm liberdade para fazer ou não fazer o que queiram (obviamente, dentro de certos limites — ninguém acredita que possamos voar apenas por querermos fazê-lo). Esta é a ideia de que os seres humanos têm vontade livre — ou livre-arbítrio. A segunda é a ideia [...] de que tudo o que acontece neste universo é causado, ou determinado, por acontecimentos ou circunstâncias anteriores. Diz-se de aqueles que aceitam esta ideia que acreditam no princípio do determinismo e chama-se-lhes deterministas. (De aqueles que negam esta segunda ideia diz-se que são indeterministas.)
Pensa-se frequentemente que estas duas ideias entram em conflito porque parece que não podemos ter livre-arbítrio — as nossas escolhas não podem ser livres — se forem determinadas por acontecimentos ou circunstâncias anteriores.
Além disso, algumas pessoas defenderam que se tudo o que fazemos é determinado pelo que aconteceu no passado de uma forma tal que as nossas escolhas nunca são livres, então não somos moralmente responsáveis por nenhuma das nossas acções, porque nesse caso não escolhemos livremente fazê-las. Pode esta ideia estar correcta?
Na história da filosofia, foram propostos essencialmente três tipos diferentes de respostas a esta questão. Um consiste em aceitar que o determinismo é verdadeiro e, por conseguinte, que a responsabilidade moral não tem sentido. A este ponto de vista chama-se geralmente determinismo radical, e àqueles que o aceitam deterministas radicais. Um segundo ponto de vista é o de que tem efectivamente sentido sustentar que as pessoas são moralmente responsáveis pelas suas acções, porque o determinismo está errado e nós no fim de contas temos livre-arbítrio. Chama-se com frequência libertista a este ponto de vista e aos seus defensores libertistas. Finalmente, um terceiro ponto de vista é o de que ao aceitarmos o determinismo e a liberdade da vontade não nos contradizemos, pelo que podemos ser considerados moralmente responsáveis pelas nossas escolhas embora elas sejam determinadas. Chama-se geralmente determinismo moderado a este ponto de vista e aos seus defensores deterministas moderados.
Quando examinado, vê-se que o determinismo radical baseia-se em três princípios:
Os deterministas radicais tendem a acreditar que a segunda e a terceira das afirmações necessárias para apoiar a sua posição são óbvias (e o mesmo fazem os libertistas). Parece-lhes óbvio que as acções determinadas, digamos, pela hereditariedade e pelo ambiente não podem ser acções livremente escolhidas; e igualmente óbvio que as pessoas são apenas responsáveis pelas acções que escolheram livremente. Por isso, os deterministas radicais concentraram o seu fogo no primeiro princípio — que o determinismo é verdadeiro. Os seus argumentos são muito fortes.
Em primeiro lugar, as provas a favor do determinismo em geral baseadas na vida diária parecem extraordinariamente fortes. Quando pomos açúcar no café, esperamos que o café fique doce e ficaríamos muito surpreendidos se não o ficasse. Quando passeamos, o solo suporta-nos sempre — não nos enterramos lentamente na terra. Do mesmo modo, a gravidade nunca falha — nunca flutuamos suavemente até às estrelas. Quando os astronautas vão para o espaço, milhares de peças de equipamento têm de trabalhar de forma exactamente correcta milhões de vezes — “exactamente correcta” significa exactamente como foi previsto pelas teorias científicas acerca das leis da natureza que explicam como as coisas estão determinadas para acontecer.
A verdade é que não podemos fazer um movimento sem confiar em pelo menos algo que funcione como funcionou no passado. Assim, cada experiência que temos parece apoiar a tese geral de que tudo o que acontece neste universo é causado ou determinado pelo que aconteceu no passado.
Mas a questão principal entre os deterministas radicais e os seus opositores não é a propósito do determinismo ou da causalidade em geral. A questão diz respeito apenas a um conjunto limitado de acontecimentos ou circunstâncias no universo, a saber, a escolhas e acções humanas, em particular, a escolhas e acções morais. São as nossas acções livres (não-determinadas)? São as nossas escolhas livres? Há “espaço” suficiente nas leis que governam o universo para que estas coisas possam acontecer? Os deterministas dizem que não e as provas parecem estar fortemente a seu favor.
Em primeiro lugar, na vida diária fazemos constantemente previsões acerca do que as pessoas irão fazer. Como é óbvio, não podemos fazer previsões com 100 % de precisão, mas as pessoas perspicazes, de algum modo, fazem-nas razoavelmente bem. Classificam as pessoas em pessoas em quem se pode confiar, egoístas, sem escrúpulos, sociáveis, agressivas, hostis, e tudo o mais, com um sucesso moderado que é difícil explicar se as nossas acções e as nossas escolhas não forem determinadas.
Além do mais, sabemos pela vida diária quão facilmente podemos alterar os nossos estados e capacidades mentais tomando drogas. É essa a razão do amplo uso do álcool, da marijuana, da cafeína, da nicotina, da aspirina, do Valium, e de outros modificadores da mente — alteramos as nossas percepções, libertamos as nossas inibições ou livramo-nos da dor. No caso do álcool, com frequência enfraquecemos a vontade moral ou abalamos, por exemplo, a resolução de nos abstermos de relações sexuais imorais. Tudo isto apoia o ponto de vista dos deterministas e opõe-se à ideia de vontades livres (não-causadas).
Além disso, há as provas decisivas da ciência. Os cientistas pressupõem que as leis da natureza que descobriram se aplicam a tudo no universo, incluindo as minúsculas partículas que constituem o cérebro e o sistema nervoso humanos. Quando escolhemos fazer algo — digamos, apertar um dedo indicador contra o gatilho de uma arma carregada apontada a um inimigo —, impulsos eléctricos viajam do cérebro para os músculos apropriados do corpo. Há uma grande quantidade de provas científicas (e nenhumas contraprovas convincentes) de que estes impulsos eléctricos são causados por outros impulsos no cérebro, que em última instância são causados por interacções químicas algures no corpo (por exemplo, em várias glândulas que segregam hormonas e na retina do olho). A noção de uma vontade livre (não-causada) parece assim contraditar alguns princípios científicos muito bem estabelecidos.1
Por último, deve-se fazer notar que, na vida diária, os indeterministas, tal como todas as outras pessoas, agem como se acreditassem realmente que o determinismo é verdadeiro. Em particular, antecipam as escolhas morais das outras pessoas exactamente como toda a gente. E pressupõem que a exortação moral, o treino moral e a educação moral serão eficazes, embora o objectivo do treino moral seja influenciar as decisões morais dos estudantes. Se as pessoas tomam efectivamente as suas decisões morais independentemente das forças causais, como tem o treino moral efeito?
Como vimos, o determinismo radical baseia-se em três princípios. Não o podemos refutar rejeitando o primeiro deles (o princípio do determinismo), como acabámos de defender. Por isso, para refutá-lo, temos de atacar o segundo e o terceiro princípios (embora praticamente ninguém escolha o terceiro). Como veremos, esta é exactamente a forma como os deterministas moderados refutam o determinismo radical. Mas por detrás desta refutação encontra-se um desejo muito forte de que as pessoas sejam responsáveis pelas suas acções e escolhas e uma enorme necessidade de admirar e premiar aqueles que se sacrificam pelo seu dever e de abominar e punir a obra do diabo. E essa é, em última instância, a razão fundamental para rejeitar o determinismo radical. (Seja o que for que alguns filósofos possam afirmar, a verdade é que quando julgamos moralmente os outros não nos importa se as nossas escolhas morais são determinadas ou não — uma vez mais, repara no comportamento quotidiano de todos, incluindo os deterministas radicais.)
Ao contrário dos deterministas radicais, os libertistas (com frequência chamados indeterministas) negam que o determinismo seja verdadeiro. O libertismo é o ponto de vista segundo o qual as escolhas morais são em geral livres; isto é, não-causadas (ou autocausadas) e que, portanto, temos razões para considerar que as pessoas são moralmente responsáveis pelas suas acções. Isto é outra forma de dizer que o determinismo é falso, pelo que há liberdade da vontade e, portanto, a moralidade faz de facto sentido.
Como é óbvio, os libertistas sabem que não podemos fazer exactamente qualquer coisa — é completamente impossível ter poderes sobre-humanos. Mas, afirmam, somos geralmente livres nas situações morais típicas em que podemos escolher fazer ou não o mal, que é o que importa para justificarmos a prática da moralidade.
Há duas razões fundamentais para o libertismo ser tão popular. A primeira é a crença de que de outro modo não temos justificação para considerar as pessoas responsáveis pelas suas acções. (Deste modo, os libertistas concordam com os deterministas radicais que se as nossas escolhas morais forem determinadas, então não serão livres.)
A segunda razão importante pela qual os libertistas acreditam que temos vontades livres (não-causadas) é que sentimos que somos livres. Digamos que, em geral, quando escolhemos mentir sentimos que poderíamos ter escolhido não mentir, que a nossa escolha não nos foi imposta pelo que nos aconteceu no passado. Por outras palavras, sentimos que podíamos ter escolhido caminhos verdadeiramente alternativos.
Infelizmente, estas duas defesas libertistas são inadequadas. Peguemos na segunda — de acordo com a qual temos uma sensação de liberdade. Mesmo que isto seja verdadeiro (e alguns deterministas também pensam que é) não prova que temos de facto livre-arbítrio, porque muitas sensações são enganadoras (por exemplo, a sensação de que num dia frio o ar está mais frio do que a água da praia). Assim, o simples facto de nos sentirmos livres não é razão suficiente para acreditarmos que somos realmente livres.
Mas poderia ser uma prova de que somos livres, tal como, digamos, sentirmos que partimos um osso é uma prova de que partimos. Não nos sentimos livres quando escolhemos fazer isto em vez de aquilo? Sim, claro. Mas não no sentido relevante de independente de causas, porque não se pode sentir uma causa! Portanto, também não se pode sentir a ausência de causa.
Peguemos num caso em que toda a gente concorda não existir liberdade de escolha — digamos, um acto reflexo como o movimento automático da perna. Quando o médico bate no lugar certo do joelho do paciente e a sua perna se eleva, ele não sente a causa do movimento da perna — sente unicamente o movimento da perna. Em casos deste género, certamente que o movimento do nosso corpo é causado, mas não sentimos essa causa. Por que devemos então acreditar que sentimos a ausência de causa? Contudo, para sentirmos uma escolha como livre temos de senti-la como não-causada, temos de sentir a ausência da causa. E isto é algo que não podemos fazer. (Se pensas que podemos, pergunta a ti mesmo que sensação têm as causas — ao invés das vontades.2)
É verdade que nos podemos sentir compelidos (forçados) ou não-compelidos (não-forçados) a fazer certas escolhas. Mas, como veremos quando discutirmos o determinismo moderado, ser compelido é muito diferente de ser causado e não ser compelido muito diferente de não ser causado.
Vejamos agora o segundo argumento importante a favor do libertismo — que apenas o libertismo torna racional a ideia de responsabilidade moral. Supõe que o Silva decide roubar o Banco de Portugal e que ninguém o forçou a fazê-lo (razão pela qual a sua acção não implica qualquer compulsão). Para serem consistentes, os libertistas têm de dizer que só temos justificação para considerar o Silva moralmente responsável pela sua acção se ela não foi causada, nem mesmo pelos seus próprios motivos, desejos ou objectivos.3
O problema é que os libertistas escondem algo. Só faz sentido considerar uma pessoa moralmente responsável por escolhas que resultem pelo menos em parte de necessidades ou desejos que tentou satisfazer fazendo essas escolhas! Esta inversão impressionante da pretensão libertista é de crucial importância. Para ver a sua força, imagina que és livre em sentido libertista. Isto é, imagina que as tuas escolhas não são causadas, nem mesmo pelos teus desejos, motivos ou objectivos. Supõe que vais a descer a rua principal quando de súbito puxas de uma pistola e matas alguém a sangue frio. Se te perguntassem por que fizeste essa coisa horrível, que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste fazê-la, porque se soubesses a razão, saberias o que te tinha motivado a fazê-la e, assim, saberias (em parte) a causa de o teres feito. (Algumas pessoas diriam que o teu desejo não foi a causa da acção mas antes um efeito do mesmo processo fisiológico que causou a acção.)
Para perceber a ideia, imagina que dizes que mataste porque querias mostrar que te poderias libertar das limitações vulgares das acções humanas, querias quebrar a regra contra o assassinato unicamente para mostrar que podes fazê-lo (tal como há uns anos algumas pessoas corriam nuas unicamente para provar que o podiam fazer). Por conseguinte, o teu desejo de provar isto seria a causa da tua acção, ou parte dela. Para que o assassinato seja uma acção verdadeiramente livre, nenhum desejo destes ou de qualquer outro tipo pode ter causado a tua escolha. Assim, se te perguntassem por que razão fizeste aquele acto, terias de responder que não tinhas qualquer razão e te limitaste a escolher fazê-lo.
Portanto, se o libertismo estivesse correcto, o que escolhes fazer não poderia ser causado pelo teu carácter ou resultar de algum dos teus desejos, motivos ou valores. Não poderia ser causado pela inveja, pelo teu desejo de provar algo, pelo desejo de vingança ou qualquer outra coisa. Não poderia, por conseguinte, ter qualquer ligação efectiva contigo ou com quem tu és. Assim, se as tuas escolhas fossem verdadeiramente não-causadas, seria um erro elogiar-te, censurar-te, recompensar-te ou punir-te pelo que escolhes fazer, que é precisamente o inverso de aquilo que os libertistas pretendem.
Confrontados com objecções deste tipo, alguns libertistas admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos, mas defendem que podemos escolher livremente os nossos desejos e motivos ou, pelo menos, decidir com base em quais agir.
Mas será isto correcto? Em primeiro lugar, como mostrámos, todas as provas parecem indicar que os nossos desejos e motivos são tão causados como tudo o resto. E, em segundo lugar, se fôssemos realmente livres para escolher coisas como desejos, não haveria nenhuma razão para escolhermos um desejo em vez de outro. Não teríamos mais razões para desejar o amor do que o ódio, tartes de maçã do que veneno, a vingança do que crianças ou a vida do que a morte.
Para ver que as coisas são assim, imagina que és livre de escolher os teus próprios desejos, objectivos e motivos — não com base nos que tens agora, mas a partir do zero. Digamos que escolhes um conjunto A de desejos em vez de um outro conjunto B. Supõe que o conjunto A contém o desejo de assassinar a tua avó e que o fazes. Se te perguntassem por que desejaste fazer uma coisa tão horrível, o que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste esse desejo, porque se soubesses a razão, saberias o que te teria motivado a fazê-lo, e estamos a pressupor que começaste do zero, isto é, que escolheste sem ter quaisquer desejos ou motivos anteriores. Portanto, se fosses completamente livre para escolher os teus próprios desejos e motivos, livre até dos desejos e motivos que tens efectivamente agora, os desejos que escolherias não teriam a mínima ligação contigo, como defendemos anteriormente. (Não serviria de nada dizer que poderias escolher livremente os teus próprios desejos com base nos desejos que já tens, porque nesse caso os novos desejos alegadamente “escolhidos livremente” derivariam na realidade dos antigos e não da tua escolha livre.)
Confrontados com objecções deste tipo, alguns libertistas admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos e que não podemos escolher os nossos desejos e motivos independentemente dos que já temos. Mas argumentam que podemos escolher livremente resistir a agir com base nos nossos motivos e desejos imorais empregando a nossa força de vontade (ou tendo mais força de vontade) e, portanto, somos moralmente responsáveis pelas acções realizadas para satisfazer esses desejos. (Por exemplo, diz-se frequentemente que não nos podemos libertar dos desejos da carne, mas podemos dominar estes desejos se nos esforçarmos bastante.)
Mas a experiência diária assim como as teorias psicológicas indicam que a quantidade de força de vontade que podemos empregar para resistir à tentação de fazer uma acção imoral depende da força relativa do desejo de cometer a acção má comparada com o desejo de fazer aquilo que é moralmente correcto. Por exemplo, se o Silva resistirá ou não à tentação de fazer amor com a mulher (que também está disposta) de um amigo depende da força do seu desejo de fazê-lo comparada com o seu desejo de ser leal ao amigo ou de evitar o que acredita ser errado. É-nos tão impossível escolher livremente a intensidade dos nossos desejos quanto escolher livremente os próprios desejos.
Pensa por um momento no que seria escolher a intensidade dos nossos desejos. Supõe que o desejo do Silva por sexo é o dobro da intensidade do seu desejo de ser leal ao seu amigo e que escolhe duplicar a intensidade do desejo de ser leal. Se lhe perguntassem por que razão escolheu aumentar a intensidade do seu desejo de ser leal, o que poderia dizer? Tão somente que não tinha qualquer ideia da razão pela qual o escolheu. Em particular, não poderia apelar a qualquer motivo ou desejo de o fazer, porque estamos a pressupor que escolheu livremente aumentar o seu desejo, o que significa que escolheu fazê-lo sem um motivo ou desejo como causa para o fazer.
Ou então supõe que ele escolhe duplicar a sua vontade de poder, isto é, escolhe resistir à tentação de pecar com duas vezes mais força. Uma vez mais, se lhe perguntassem por que razão escolheu fazê-lo, que poderia responder? Não poderia apelar a qualquer motivo ou desejo de tentar com mais força porque estamos a pressupor que ele escolhe livremente tentar com mais força.
Estamos presos à conclusão de que as nossas escolhas e acções têm de derivar dos nossos desejos e motivos ou, mais exactamente, do nosso carácter. É óbvio que podemos escolher livrarmo-nos de um desejo particular, ou intensificá-lo, mas apenas baseados noutros desejos e motivos que tenhamos. De outro modo, fazê-lo não teria qualquer ligação com quem somos — teria caído do céu — e certamente que não teríamos responsabilidade por o ter feito.
Parece, então, que o libertismo não é satisfatório.
Parece que ficámos encurralados. Temos de rejeitar o determinismo radical porque nega a responsabilidade moral. Mas temos igualmente de rejeitar o libertismo, porque se fosse verdadeiro, nunca teríamos justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis pelas suas acções.
O problema está na nossa definição de liberdade. Dissemos que chamaríamos livre a uma escolha se não fosse causada. Mas há outra concepção de escolha livre, mais útil. Para ilustrá-lo, imagina os soldados Silva e Nunes de sentinela durante a guerra, o Silva depois de 72 horas acordado em batalha e o Nunes depois de um bom descanso. Supõe que o Silva tenta ao máximo estar acordado, enquanto que o Nunes, digamos, por travessura, se deixa deliberadamente dormir. Parece que neste caso deveríamos repreender o Nunes por se ter deixado adormecer, mas não o Silva, porque o Nunes, se quisesse, poderia ter estado acordado, enquanto o Silva não poderia, ainda que de facto o desejasse. O Nunes deveria ser considerado culpado porque quis fazer a acção maldosa, enquanto o Silva deve ser considerado inocente ou, pelo menos, ser perdoado, porque quis fazer o seu dever, estar acordado, e tentou ao máximo fazê-lo. Podemos dizer que adormecer foi, no caso do Nunes, um acto livre, porque não foi compelido — não foi forçado a adormecer “contra a sua vontade”. Mas o adormecer do Silva não foi livre, porque foi compelido pela fadiga corporal a fazer o que desesperadamente não queria fazer, a saber, adormecer.
Os deterministas moderados consideram a ausência de compulsão, e não a ausência de causa, o critério da liberdade de escolha. Em termos gerais, defendem que as pessoas agem livremente quando fazem o que querem e escolhem fazer e não agem livremente quando o que fazem é forçado ou compelido. Por outras palavras, de acordo com os deterministas moderados, uma vontade livre é simplesmente uma vontade não-compelida.
As acções compelidas dividem-se em dois tipos, internas e externas, consoante a origem da força que compele. A sentinela que tenta ao máximo estar acordada mas apesar disso adormece é compelida internamente, porque forças psicológicas no interior do seu corpo são a causa de que adormeça. As crianças fechadas nos quartos pelos pais são compelidas externamente, porque as forças que limitam o seu comportamento são externas aos seus corpos. Os deterministas moderados defendem que a ausência de compulsão, e não a ausência de causa, é a marca de um acto livre. Todos os actos são causados, mas apenas alguns são compelidos.
Recorda agora os três princípios que conduzem ao determinismo radical, a saber:
Deve ser óbvio neste momento que os deterministas moderados aceitam os princípios 1 e 3 mas rejeitam o princípio 2. Eles chamam a atenção para o seguinte: na vida diária, o critério de escolha livre não é a escolha ser não-causada mas antes a escolha ser não-compelida, não forçada, pelo que a pessoa faz o que quer e escolhe fazer. Os deterministas moderados “salvam” assim a ideia de responsabilidade moral e resolvem o problema do livre-arbítrio e do determinismo defendendo que a liberdade necessária para justificar considerar as pessoas moralmente responsáveis pelas suas acções não é a ausência de determinismo, que nunca existe, mas a ausência de compulsão, a liberdade para fazer o que queremos fazer, o que com frequência temos.
A razão fundamental para aceitar o determinismo moderado é que parece resolver o problema sem violar quaisquer intuições fortemente arreigadas. Ao contrário do libertismo, o determinismo moderado é consistente com a tese determinista muito bem estabelecida segundo a qual tudo tem uma causa. Ao contrário do determinismo radical, é consistente com a ideia de que temos justificação para considerar as pessoas moralmente responsáveis pela maior parte das suas acções. Além disso, diz-nos grosso modo quais são as acções pelas quais somos responsáveis (as que não são compelidas) e pelas quais não o somos (as que são compelidas) e fornece-nos um critério para decidir em casos particulares (as acções que queremos fazer não são compelidas, ou livres, as acções que não queremos fazer mas fazemos na mesma são compelidas, ou não livres). E fá-lo de um modo que está razoavelmente de acordo com a prática diária, uma vez que, em geral, na vida diária somos desculpados pelas acções compelidas e considerados responsáveis apenas pelas não-compelidas.
O determinismo moderado enfrenta dois problemas fundamentais. Primeiro, como os próprios deterministas moderados costumam afirmar, o critério para determinar se as escolhas são livres ou compelidas precisa de ser aprimorado. Dissemos que, em termos gerais, as acções são livres quando os agentes fazem o que querem fazer e são compelidas quando é ao contrário; e que uma pessoa é responsável apenas pelas suas acções livres. Considera então os casos seguintes:
Como é óbvio, não podemos ter a certeza de que o determinismo moderado resolva o problema até sabermos como lidar com casos como os que acabámos de apresentar. Diferentes deterministas moderados tratam estes casos de forma diferente. Uma forma é chamar a atenção para que a liberdade de compulsão não é o único critério de responsabilidade moral. As crianças, por exemplo, são frequentemente desculpadas por escolherem livremente acções pelas quais os adultos são castigados. O mesmo se passa com os doentes mentais. A questão é que tais pessoas de algum modo carecem de estatuto moral, talvez porque não se pode esperar que conheçam a natureza moral dos seus actos (como a criança de três anos que puxa a irmã bebé para fora do berço) ou que conheçam as consequências das suas acções (o louco que acidentalmente deita fogo a uma casa) ou tenham a vontade para agir com base nesse conhecimento (o doente esquizofrénico que não sai da cama).
Outra forma de lidar com o problema é defender que às vezes o que queremos e escolhemos num dado momento — digamos, no calor da paixão, como no caso 4, acima — não é o que realmente queremos fazer; pensa no arrependimento que se segue a tê-lo feito. Deste ponto de vista, a intensidade relativa dos nossos vários desejos ao longo de um grande período de tempo determina os nossos verdadeiros desejos num dado momento. Desta forma, as acções compelidas têm origem quando os nossos desejos mais fortes num dado momento entram em conflito com os nossos desejos mais fortes a longo prazo. Um exemplo disto é o desejo de tomar a droga que, num dado momento, um toxicómano tem, mesmo que, em geral, o seu desejo mais forte seja o de perder o hábito.
O objectivo da investigação filosófica é ver como as coisas nos parecem depois de termos ouvido os argumentos, especialmente os da outra parte.
Depois de ouvir os argumentos a favor do determinismo moderado, os libertistas, em particular, ainda acham errado considerar as pessoas responsáveis pelas suas acções se essas acções forem causadas por leis naturais sobre as quais os seres humanos não têm qualquer domínio. Também não lhes serve de consolo ouvir que as pessoas escolhem fazer a maior parte do que fazem, ou que as suas acções resultam dos seus desejos ou motivos, se esses desejos, motivos e, deste modo, todas as escolhas, forem determinadas por leis naturais. Considerar as pessoas responsáveis em tais circunstâncias parece-lhes que é como considerar robôs responsáveis pelas suas acções.
E talvez este seja o ponto principal. Há alguma razão para tratar os seres humanos de forma diferente das mesas, cadeiras, televisores ou computadores? Há alguma coisa nas relações humanas ou na nossa natureza social que constitua uma razão para olhar os seres humanos como responsáveis pelo que fazem, e os televisores e computadores não? Parece adequado censurar os amigos quando nos decepcionam, mas não um computador (limitamo-nos a mandar arranjá-lo). A forma como nos sentimos a propósito de pessoas é substancialmente diferente da forma como nos sentimos a propósito de máquinas inanimadas, e esse sentimento diferente é a justificação — se houver alguma — para considerar as pessoas e não as máquinas responsáveis pelas suas acções (não-compelidas).
Por que, então, continuam a existir discordâncias sobre este tema? Em parte, talvez, devido a uma falta de atenção aos argumentos dos outros lados da questão. Mas, em parte, devem-se também a diferenças a propósito de outras questões filosóficas que estão com ele relacionadas, talvez mesmo a diferenças acerca da natureza do próprio trabalho filosófico. Por exemplo, alguém cujas convicções religiosas exigem que as pessoas sejam consideradas responsáveis por algumas das suas acções não pode consistentemente apoiar a posição do determinismo radical acerca da questão do livre-arbítrio. Embora não seja prático lidar com todas as questões relacionadas ao mesmo tempo, o que eventualmente dissermos a seu propósito ajuda a determinar que respostas à questão do livre-arbítrio e do determinismo podemos aceitar.
Até há pouco tempo, os cientistas sociais e os biólogos que estudam a natureza humana não tiveram tanto sucesso quanto os seus colegas das ciências físicas. Mas a tendência recente, em particular na biologia, tem sido para um sucesso maior, pelo que há muitas razões para pensar que irá acelerar e só o pensamento ilusório poderá levar alguém a acreditar que se inverterá. (Por exemplo, provas recentes sugerem fortemente que a depressão mental está associada a um desequilíbrio num dos vários químicos do cérebro.)
À giza de analogia, vemos a água na panela evaporar e sentimos o calor da chama, mas não vemos o calor causar a água ferver. Se pudéssemos ter experiência das causas, os cientistas não teriam de se dar ao trabalho de construir teorias acerca de ligações causais; limitar-se-iam a vê-las, a ouvi-las ou a saboreá-las.
Ou então têm de dizer que podemos escolher livremente os nossos próprios motivos, desejos e objectivos, uma opção que discutiremos em breve.