A palavra “eutanásia” é composta de duas palavras gregas — eu e thanatos — e significa, literalmente, “uma boa morte”. Na actualidade, entende-se geralmente que “eutanásia” significa provocar uma boa morte — “morte misericordiosa”, em que uma pessoa, A, acaba com a vida de outra pessoa, B, para benefício de B. Este entendimento da palavra realça duas importantes características dos actos de eutanásia. Primeiro, que a eutanásia implica tirar deliberadamente a vida a uma pessoa; e, em segundo lugar, que a vida é tirada para benefício da pessoa a quem essa vida pertence — normalmente porque ela ou ele sofre de uma doença terminal ou incurável. Isto distingue a eutanásia da maior parte das outras formas de retirar a vida.
Todas as sociedades que conhecemos aceitam algum princípio ou princípios que proíbem que se tire a vida. Mas há grandes variações entre as tradições culturais sobre quando é considerado incorrecto tirar a vida. Se nos voltarmos para as raízes da nossa tradição ocidental, verificamos que no tempo dos gregos e dos romanos, práticas como o infanticídio, o suicídio e a eutanásia eram largamente aceites. A maior parte dos historiadores da moral ocidental estão de acordo em que o judaísmo e a ascensão do cristianismo contribuíram enormemente para o sentimento geral de que a vida humana tem santidade e não deve ser deliberadamente tirada. Tirar uma vida humana inocente é, nestas tradições, usurpar o direito de Deus de dar e tirar a vida. Escritores cristãos influentes viram-no também como uma violação da lei natural. Este ponto de vista da absoluta inviolabilidade da vida humana inocente permaneceu praticamente imutável até ao século XVI quando Thomas More publicou a sua Utopia. Neste livro, More retrata a eutanásia para os que estão desesperadamente doentes como uma das instituições importantes de uma comunidade ideal imaginária. Nos séculos seguintes, os filósofos britânicos (em particular David Hume, Jeremy Bentham e John Stuart Mill) puseram em questão a base religiosa da moralidade e a proibição absoluta do suicídio, da eutanásia e do infanticídio. O grande filósofo alemão do século XVIII Immanuel Kant, por outro lado, embora acreditasse que as verdades morais se fundam na razão e não na religião, pensava não obstante que “o homem não pode ter poder para dispor da sua vida” (Kant, 1986, p. 148).
Aqueles que defenderam a admissibilidade moral da eutanásia apresentaram como principais razões a seu favor a misericórdia para com pacientes que sofrem de doenças para as quais não há esperança e que provocam grande sofrimento e, no caso da eutanásia voluntária, o respeito pela autonomia. Actualmente, certas formas de eutanásia gozam de um largo apoio popular e muitos filósofos contemporâneos têm sustentado que a eutanásia é moralmente defensável. A oposição religiosa oficial (por exemplo, da Igreja Católica Romana), no entanto, manteve-se inalterada, e a eutanásia activa continua a ser um crime em todas as nações com excepção da Holanda. Aí, a partir de 1973, um conjunto de casos jurídicos estabeleceram as condições que permitem que os médicos, e apenas os médicos, possam praticar a eutanásia: a decisão de morrer tem de ser a decisão voluntária e reflectida de um paciente informado; tem de existir sofrimento físico ou mental considerado insuportável por aquele que sofre; é precisoq ue não exista outra solução razoável (i.e. aceitável pelo paciente) para melhorar a situação; e o médico tem de consultar outros profissionais superiores.
Antes de vermos melhor os argumentos a favor e contra a eutanásia é necessário estabelecer algumas distinções. A eutanásia pode ter três formas: voluntária, não-voluntária e involuntária.
O caso seguinte é um exemplo de eutanásia voluntária:
Mary F. estava a morrer devido a uma doença progressivamente debilitante. Tinha atingido o estádio em que estava quase totalmente paralisada e, periodicamente, precisava de um respirador para se manter viva. Sofria também de grandes dores. Sabendo que não havia qualquer esperança e que as coisas iriam piorar, Mary F. queria morrer. Pediu ao seu médico que lhe desse uma injecção letal para acabar com a sua vida. Depois de ter consultado a família e membros da equipa de cuidados de saúde, o Dr. H. administrou a injecção letal pedida e Mary F. morreu.
O caso de Mary F. É um caso claro de eutanásia voluntária; isto é, eutanásia executada por A a pedido de B, para benefício de B. Há uma relação íntima entre a eutanásia voluntária e o suicídio assistido, em que uma pessoa ajuda outra a acabar com a sua vida — por exemplo, quando A obtém os medicamentos que irão permitir a B que se suicide.
Mesmo que a pessoa já não esteja em condições de afirmar o seu desejo de morrer quando a sua vida acabou, a eutanásia pode ser voluntária. Podes desejar que a tua vida acabe, no caso de te veres numa situação em que, embora sofrendo de um estado incurável e doloroso, a doença ou um acidente te tenham tirado todas as faculdades racionais e já não sejas capaz de decidir entre a vida e a morte. Se, enquanto ainda estás capaz, tiveres expresso o desejo reflectido de morrer aquando de uma situação como esta, então a pessoa que, nas circunstâncias apropriadas, te tira a tua vida actua com base no teu pedido e realiza um acto de eutanásia voluntária.
A eutanásia é não-voluntária quando a pessoa a quem se retira a vida não pode escolher entre a vida e a morte para si — porque é, por exemplo, um recém-nascido irremediavelmente doente ou incapacitado, ou porque a doença ou um acidente tornaram incapaz uma pessoa anteriormente capaz, sem que essa pessoa tenha previamente indicado se sob certas circunstâncias quereria ou não praticar a eutanásia.
A eutanásia é involuntária quando é realizada numa pessoa que poderia ter consentido ou recusado a sua própria morte, mas não o fez — seja porque não lhe perguntaram, seja porque lhe perguntaram mas não deu consentimento, querendo continuar a viver. Embora os casos claros de eutanásia involuntária possam ser relativamente raros (por exemplo, em que A mata B sem o consentimento de B para o impedir de cair nas mãos de um carrasco sádico), houve quem defendesse que algumas práticas médicas largamente aceites (como as de administrar doses cada vez maiores de medicamentos contra a dor que eventualmente causarão a morte do doente, ou a suspensão não-consentida — para retirar a vida — do tratamento) equivalem a eutanásia involuntária.
Até agora, definimos “eutanásia” de forma vaga como “morte misericordiosa”, em que A provoca a morte de B, para benefício de B. Há, contudo, duas formas diferentes de A provocar a morte de B: A pode matar B, digamos, administrando-lhe uma injecção letal; ou A pode permitir que B morra negando-lhe ou retirando-lhe o tratamento de suporte à vida. Casos do primeiro género são vulgarmente referidos como eutanásia “activa” ou “positiva”, enquanto casos do segundo género são frequentemente referidos como eutanásia “passiva” ou “negativa”. Quaisquer dos três géneros de eutanásia indicados anteriormente — eutanásia voluntária, não-voluntária e involuntária — podem ser quer passivos quer activos.
Se alterarmos ligeiramente o caso referido de Mary F., torna-se um caso de eutanásia voluntária passiva:
Mary F. estava a morrer devido a uma doença progressivamente debilitante. Tinha atingido o estádio em que estava quase totalmente paralisada e, periodicamente, precisava de um respirador para se manter viva. Sofria também de grandes dores. Sabendo que não havia qualquer esperança e que as coisas iriam piorar, Mary F. queria morrer. Pediu ao seu médico que lhe assegurasse que não seria colocada num respirador da próxima vez que a sua respiração falhasse. O médico concordou com os desejos de Mary, deu instruções ao pessoal de enfermagem de acordo com isto, e Mary morreu oito horas mais tarde, devido a uma falha respiratória.
Há um amplo acordo em que tanto as omissões como as acções podem constituir eutanásia. A Igreja Católica Romana, na sua Declaração sobre a Eutanásia, por exemplo, define eutanásia como “uma acção ou omissão que por si própria ou por intenção causa a morte” (1980, p. 6). A discordância filosófica tem por origem a questão de saber quais as acções e omissões constituem casos de eutanásia. Assim, às vezes nega-se que um médico, que se recusa a ressuscitar um recém-nascido gravemente incapacitado, esteja a praticar eutanásia (não-voluntária passiva), ou que um médico, que administra doses cada vez maiores de um medicamento para as dores que sabe que acabará por resultar na morte do doente, esteja a praticar algum género de eutanásia. Outros autores defendem que sempre que um agente pratica uma acção ou omissão que deliberada e intencionalmente resulta na morte prevista do doente, realizou eutanásia activa ou passiva.
Apesar da grande diversidade de pontos de vista sobre este assunto, os debates sobre a eutanásia têm-se centrado sobretudo em certos temas:
O que se segue é um breve esboço destes debates.
Disparar sobre alguém é uma acção: não conseguir ajudar a vítima de um tiroteio é uma omissão. Se A dispara sobre B e B morre, A matou B. Se C não age para salvar a vida a B, C deixa B morrer. Mas nem todas as acções ou omissões que resultam na morte de uma pessoa são de interesse central no debate da eutanásia. O debate da eutanásia diz respeito a acções e omissões intencionais — isto é, com mortes deliberada e intencionalmente provocadas numa situação em que o agente poderia ter agido de outro modo — isto é, em que A poderia ter evitado matar B, e em que C poderia ter salvo a vida a B.
Há alguns problemas em distinguir entre matar e deixar morrer, ou entre eutanásia activa e passiva. Se a distinção entre matar e deixar morrer se apoiasse meramente na distinção entre acções e omissões, então o agente que, digamos, desliga a máquina que suporta a vida de B, mata B, enquanto o agente que se recusa à partida a colocar C numa máquina de suporte à vida, permite somente que C morra. Muitos autores não consideraram esta distinção entre matar e deixar morrer plausível e foram feitas várias tentativas de a traçar de outro modo. Uma sugestão plausível é que vejamos matar como dando início a um curso de acontecimentos que levam à morte; e permitir morrer como não intervindo num curso de acontecimentos que levam à morte. Segundo este esquema, a administração de uma injecção letal seria matar; enquanto que não pôr um paciente num respirador, ou tirá-lo, seria deixar morrer. No primeiro caso, o paciente morre devido a acontecimentos postos em acção pelo agente. No segundo caso, o paciente morre porque o agente não intervém num curso de acontecimentos (e.g. uma doença que é perigosa) já a decorrer e que não é produzido por ele.
É a distinção entre matar e deixar morrer, ou entre eutanásia activa e passiva, moralmente significativa? Matar uma pessoa é sempre moralmente pior do que deixá-la morrer? Foram propostas várias razões para que seja assim. Uma das mais plausíveis é que um agente que mata causa a morte, enquanto um agente que deixa morrer permite apenas que a natureza siga o seu curso. Houve também quem defendesse que esta distinção entre “fazer acontecer” e “deixar acontecer”, é moralmente importante na medida em que põe limites aos deveres e responsabilidades que um agente tem de salvar vidas. Embora evitar matar alguém exija pouco ou nenhum esforço, normalmente salvar alguém exige esforço. Se matar e deixar morrer estivessem moralmente ao mesmo nível, assim continua o argumento, seríamos tão responsáveis pela morte daqueles que não conseguimos salvar como somos pela morte daqueles que matamos — e ser incapaz de ajudar os africanos que morrem de fome seria o equivalente moral de mandar-lhes comida envenenada. (Veja-se Foot, 1980, p. 161–162.) Isto, continua o argumento, é absurdo: somos mais responsáveis, ou somo-lo diferentemente, pela morte daqueles que matamos do que pelas mortes daqueles que não conseguimos salvar. Assim, matar uma pessoa é, nas mesmas circunstâncias, pior do que deixar uma pessoa morrer.
Mas mesmo que às vezes se possa traçar uma distinção moralmente relevante entre matar e deixar morrer, é claro que isso não significa que a distinção se aplique sempre. Pelo menos às vezes somos tão responsáveis pelas nossas omissões quanto pelas nossas acções. Uma mãe que não alimente o seu filho, ou um médico que não ministre insulina a um diabético que não tem outras complicações médicas, não será absolvido da responsabilidade moral chamando meramente a atenção para que a pessoa a seu cargo morreu como consequência do que omitiu fazer.
Além disso, quando o argumento acerca do significado moral da distinção entre matar e deixar morrer é apresentado no contexto do debate da eutanásia, tem que se considerar um facto adicional. Matar alguém, ou deixar deliberadamente alguém morrer, é geralmente uma coisa má porque priva essa pessoa da sua vida. Em circunstâncias normais as pessoas valorizam as suas vidas, e continuar a viver é do seu interesse. Quando se trata de questões de eutanásia é diferente. Em casos de eutanásia, a morte — uma vida não continuada — é do interesse da pessoa. Isto significa que um agente que mata, ou um agente que deixa morrer, não está a fazer mal mas a beneficiar a pessoa a quem a vida pertence. Isto levou autores desta área a sugerir que se somos, de facto, mais responsáveis pelas nossas acções do que pelas nossas omissões, então A que mata C no contexto da eutanásia estará, se tudo o resto for igual, agindo moralmente melhor do que B que deixa C morrer — uma vez que A beneficia positivamente C, enquanto B apenas deixa que esses benefícios sucedam a C.
Tecnologias médicas poderosas permitem aos médicos manter a vida de muitos pacientes que, apenas há uma década ou duas, teriam morrido porque os meios para impedir a morte não existiam. Devido a isto, coloca-se ainda com mais urgência uma velha questão: devem os médicos fazer sempre tudo o que é possível para tentar salvar a vida de um doente? Devem eles fazer esforços “heróicos” para acrescentar mais umas quantas semanas, dias, ou horas à vida de um doente terminal sofrendo de cancro? Deve o tratamento activo de bebés que nasceram com tantas deficiências que a sua curta vida será preenchida com pouco mais do que sofrimento contínuo ser sempre instigado?
A maior parte dos autores da área concordam em que há alturas em que o tratamento de suporte à vida deve ser retirado e se deve permitir que um doente morra. Este ponto de vista é partilhado mesmo por aqueles que vêem a eutanásia ou o termo intencional da vida sempre como incorrecto. Isto levanta a necessidade premente de um critério que distinga entre omissões admissíveis e não-admissíveis dos meios de suporte à vida.
Tradicionalmente, esta distinção foi traçada em termos dos chamados meios normais e extraordinários de tratamento. A distinção tem uma longa história e foi empregue pela Igreja Católica Romana para lidar com o problema da cirurgia antes do desenvolvimento de anti-sépticos e anestésicos. Se um paciente recusava os meios normais — por exemplo, a comida — essa recusa era vista como suicídio, ou termo intencional da vida. A recusa de meios extraordinários (por exemplo, uma cirurgia dolorosa ou de risco), por outro lado, não era vista como o termo intencional da vida.
Actualmente, a distinção entre meios de suporte à vida que são vistos como normais e obrigatórios e meios que não o são é a maior parte das vezes expressa em termos de meios de tratamento “proporcionais” e “desproporcionais”. Um meio é “proporcional” se oferece uma esperança razoável de benefício para o doente; é “desproporcional” se não o faz. (Veja-se A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 1980, pp. 9–10.)
Entendida desta forma, é claro que a distinção entre meios proporcionais e desproporcionais tem significado moral. Mas é óbvio que não se trata apenas de uma distinção entre meios de tratamento considerados meramente como meios de tratamento. É antes uma distinção entre os benefícios proporcionais ou desproporcionais que diferentes pacientes esperam conseguir de um tratamento particular. O mesmo tratamento pode assim ser proporcional ou desproporcional, dependendo da condição médica do paciente e da qualidade e quantidade de vida que o paciente espera adquirir por seu intermédio. Uma operação dolorosa e profunda, por exemplo, se realizada numa pessoa de vinte anos em tudo o resto saudável que espera ganhar tempo de vida, pode ser um meio “normal” ou “proporcional”; e se realizada num paciente mais velho, que também sofre de outras doenças debilitantes graves pode muito bem ser considerada “extraordinária” ou “desproporcional”. Mesmo algo tão simples como um tratamento com antibióticos ou de fisioterapia é às vezes considerado extraordinário e não obrigatório. (Veja-se Linacre Centre Working Party, 1982, pp. 46-8.)
Este entendimento dos meios normais e extraordinários sugere que um agente que se recuse a usar meios extraordinários de tratamento pratica eutanásia passiva: A nega tratamento que pode suportar a vida de B, para benefício de B.
Contudo, nem toda a gente concorda que a interrupção do tratamento extraordinário ou desproporcional é um caso de eutanásia passiva. É frequente defender-se que a “eutanásia” implica o termo intencional da vida. Administrar uma injecção letal ou retirar os meios normais de suporte à vida, são casos de termo intencional da vida; retirar os meios extraordinários e permitir que o paciente morra, não. A questão torna-se então na de saber o que deve o médico “fazer” quando retira a B os meios desproporcionais de suporte à vida, prevendo que como consequência B morrerá? E como pode este modo de provocar a morte do paciente (ou de permitir que a morte do paciente ocorra) distinguir-se, em termos de intenção do agente, de, por um lado, retirar os cuidados normais e, por outro, da administração de uma injecção letal?
Isto conduz-nos ao terceiro tema principal em que o debate acerca da eutanásia se concentrou: a distinção entre mortes que são directamente desejadas e mortes que são apenas previstas.
Se A administra uma injecção letal a B para acabar com o sofrimento de B, A acabou intencionalmente com a vida de B. Este caso não é controverso. Mas A também terminou intencionalmente com a vida de B se procurou aliviar a dor de B ministrando doses cada vez maiores de medicamentos (“pirâmide analgésica”) que sabe que irão mais tarde ou mais cedo provocar a morte de B? E A acabou intencionalmente com a vida de B quando desliga o respirador que a sustenta, sabendo que como consequência B morrerá? Aqueles que querem sustentar que o primeiro é um caso de eutanásia ou de fim intencional da vida mas o segundo e o terceiro não o são procuraram traçar uma distinção entre estes casos em termos de resultados directamente desejados e de consequências previstas mas não-desejadas. Ao reflectir sobre a administração de doses cada vez maiores e potencialmente letais de medicamentos de combate à dor, a Declaração sobre a Eutanásia do Vaticano diz-nos que a “pirâmide analgésica” é aceitável porque, neste caso, “a morte não é de modo algum desejada ou procurada, mesmo se o risco disso acontecer é razoavelmente considerado” (p. 9). Por outras palavras, mesmo que A preveja que B irá morrer em consequência dos actos de A, a morte de B é apenas prevista e não directamente desejada. A intenção directa é acabar com a dor, e não com o paciente.
Esta distinção entre resultados desejados e consequências ulteriores previstas mas não-desejadas é formalizada no Princípio do Duplo Efeito (PDE). O PDE enumera um conjunto de condições em que um agente pode “admitir” ou “permitir” que uma consequência (como a morte da pessoa) ocorra, embora essa consequência não seja desejada pelo agente. São Tomás de Aquino, a quem é atribuída a origem do PDE, aplicou esta distinção entre consequências directamente desejadas e meramente previstas às acções de autodefesa. Se uma pessoa é atacada e mata o atacante, a sua intenção é defender-se a si mesma, não matar o atacante (Summa Theologiae, II, ii).
Levantaram-se duas questões principais acerca da distinção entre intenção e previsão:
— É possível traçar sempre uma distinção clara entre as consequências que um agente deseja directamente e as que meramente prevê?
— A distinção é, até onde pode ser traçada, em si mesma relevante?
Considere-se o primeiro aspecto à luz do seguinte exemplo frequentemente citado:
Um grupo de exploradores fica encurralado numa caverna, em cuja estreita abertura um membro bastante gordo está preso e o nível das águas está a subir. Se um membro do grupo faz explodir uma carga de dinamite junto ao homem gordo, deveremos dizer que ele desejou a morte do homem gordo ou que ele apenas a previu como uma consequência de libertar o grupo, tirando o homem gordo da abertura, ou de mandá-lo pelos ares?
Se se pretender sustentar que a morte do homem gordo foi claramente desejada, de que forma, então, este caso é diferente daquele em que um médico pode administrar doses cada vez maiores de medicamentos para a dor que irão previsivelmente provocar a morte do paciente, sem que se diga que o médico desejava a morte do paciente?
Há problemas filosóficos importantes em qualquer aplicação sistemática da distinção entre desejo e previsão, e a bibliografia está cheia de críticas e refutações. Nancy Davis discute alguma desta bibliografia no contexto da ética deontológica (onde a distinção é crucial) no artigo 17, “Deontologia Contemporânea”. Presumindo que as dificuldades podem ser ultrapassadas, a questão seguinte é esta: a distinção entre resultados directamente desejados e meramente previstos é em si moralmente relevante? Faz alguma diferença, se um médico quando administra o que julga ser uma droga letal deseja apenas aliviar a dor do paciente, ou se deseja directamente acabar com a vida do paciente?
Às vezes traça-se aqui uma distinção entre a bondade e maldade dos agentes: que a marca de um bom agente é não desejar directamente a morte de outra pessoa. Mas mesmo que se possa às vezes traçar desta forma uma distinção entre a bondade e a maldade dos agentes, não é obviamente claro que possa ser aplicada aos casos de eutanásia. Em todos os casos de eutanásia, A procura beneficiar B, actuando assim como um bom agente faria. Apenas se se pressupor que existe uma regra que diz que “Um bom agente nunca deve desejar directamente a morte de um inocente”, a tentativa de traçar a distinção faz sentido; nesse caso, contudo, essa regra não tem base racional.
As distinções acima representam diferenças profundamente sentidas. Se estas diferenças são ou não moralmente relevantes, e em que termos, continua a ser objecto de debate.
Contudo, há outro aspecto do debate da eutanásia em que ainda não tocámos. As pessoas admitem frequentemente que pode não haver diferença moral intrínseca entre eutanásia activa e passiva, entre meios normais e extraordinários, e entre mortes que são directamente desejadas e mortes que são apenas previstas. No entanto, defende-se às vezes que distinções como estas, representam, no que respeita à política pública, linhas importantes de demarcação. A política pública exige que se tracem linhas, e as que são traçadas com o objectivo de nos salvaguardar contra as mortes injustificadas estão entre as mais universais. Embora estas linhas possam parecer arbitrárias e filosoficamente perturbantes, são apesar disso necessárias para proteger os membros vulneráveis da sociedade contra o abuso. A questão é, claro, se este género de raciocínio tem uma base sólida: se sociedades que, em certas circunstâncias, admitem abertamente o fim intencional da vida irão inevitavelmente mover-se em direcção a um “declive ardiloso” perigoso que as levará de práticas justificadas a práticas injustificadas.
Na sua versão lógica, o argumento do “declive ardiloso” não é convincente. Não há fundamento lógico para que as razões que justificam a eutanásia — piedade e respeito pela autonomia — também justifiquem logicamente mortes que não são nem piedosas nem mostram respeito pela autonomia. Na sua versão empírica, o argumento do declive ardiloso afirma que as mortes justificadas irão, de certeza, conduzir a mortes injustificadas. Há poucos indícios empíricos que suportem esta alegação. Embora o programa nazi de “eutanásia” seja frequentemente citado como um exemplo do que pode acontecer quando uma sociedade reconhece que algumas vidas não são merecedoras de serem vividas, a motivação por detrás destas mortes não eram nem a piedade nem o respeito pela autonomia; era antes o preconceito racial e a crença de que a pureza racial do Volk exigia a eliminação de certos indivíduos e grupos. Como já referimos, na Holanda está a decorrer uma “experiência social” com eutanásia voluntária activa. Até agora não há quaisquer indícios de que isto tenha conduzido a sociedade holandesa por um declive ardiloso.