O propósito deste capítulo é apresentar um argumento a favor da hipótese de que as obras de arte são tipos de acções (HTA). Será útil, porém, começarmos por examinar algumas teorias alternativas correntes na bibliografia e mostrar que são imperfeitas em diversos aspectos. Esta discussão permitir-nos-á formular uma série de restrições a uma ontologia da arte. Verificar-se-á então que a HTA satisfaz estas restrições. Assim, não fazemos mais do que montar uma defesa provisória da HTA. Pode haver outras teorias que satisfazem igualmente bem as restrições. Pode haver outras restrições não consideradas aqui que a HTA não satisfaz. O meu propósito é apenas fazer a HTA parecer uma hipótese plausível.
Dado que o empirista pensa que as qualidades estéticas da obra dependem essencialmente apenas da sua aparência, ou de como soa, ou de que sequência de palavras contém, parece natural o empirista afirmar simplesmente que a própria obra é um determinado padrão de linhas e cores, uma estrutura de sons, ou uma sequência de palavras. Assim, uma pintura é um padrão visual, algo que um objecto físico particular pode instanciar quando se pinta esse padrão na sua superfície; uma obra musical é uma determinada estrutura de sons, algo que uma certa interpretação pode instanciar quando os músicos produzem espécimes desses sons da maneira apropriada; e uma obra literária é uma sequência de palavras (isto é, um género de estrutura), algo que um determinado objecto físico (por exemplo, um amontoado de páginas) pode instanciar quando nele se inscreve espécimes dessas palavras. Qualquer outra perspectiva sobre o que a obra é seria ontologicamente inflacionária do ponto de vista do empirista, uma vez que invocaria uma estrutura redundante, e os empiristas são conhecidos pelo seu horror ao excesso ontológico. A hipótese de que a obra é um padrão ou estrutura do género que acabo de descrever identifica a obra com aquilo que contém exactamente a estrutura suficiente para determinar as propriedades estéticas da obra e não mais do que isso. Quando nos confrontamos com o padrão ou estrutura entramos em contacto com tudo aquilo de que precisamos para apreciar a obra; logo a obra é simplesmente esse padrão ou estrutura. Chamemos “estruturalismo” a esta perspectiva. O estruturalismo, tal como o defino, é a ontologia natural do empirista estético.
Temos de decidir se é ou não possível sustentar simultaneamente que uma obra é um padrão ou estrutura no sentido do parágrafo anterior, e que tem propriedades estéticas não determinadas por essa estrutura (que não são sobrevenientes a ela). Doravante, concentrar-me-ei nas obras musicais e literárias, deixando de lado as artes visuais até ao fim. Na verdade, os meus exemplos serão maioritariamente musicais.
Entre os que procuram uma combinação de perspectivas como a que acabo de descrever encontra-se Richard Wollheim.1 Este trata as obras literárias e musicais como tipos. Wollheim não nos dá muita informação acerca do que considera que um tipo seja. Mas presumivelmente a sua ideia é que, tal como uma palavra-tipo é uma sequência de letras-tipo, uma obra literária é uma sequência de palavras-tipo e, portanto, em última análise, uma sequência de letras-tipo (entre as quais incluímos espaços e sinais de pontuação). Assim, ao passo que as instâncias da obra são sequências de palavras-espécime, a obra consiste em sequências correspondentes de palavras-tipo. A extensão natural disto ao caso musical seria afirmar que a obra é uma sequência de sons-tipo, sendo estes sons-tipo descritíveis por expressões como “Si bemol acima do Dó central / semicolcheia”. (Quando a obra envolve mais do que uma “voz” temos de a tratar como uma sequência de sequências. O termo “estrutura” é portanto muitíssimo apropriado para obras musicais.) Assim, os tipos são estruturas no nosso sentido, e um espécime da obra é simplesmente uma sequência correspondente de sons-espécime; a obra e as suas instâncias são estruturalmente o mesmo. Uma perspectiva semelhante (algo complicada pelo seu nominalismo) é a de Nelson Goodman: “Uma obra literária […] é […] o próprio texto ou guião” (1968, p. 209). Assim, quer Goodman quer Wollheim consideram que a obra literária é identificada puramente em termos da sua sequência de palavras.
Nenhum destes autores tem grande simpatia pelo empirista estético, e Wollheim certamente não considera que as propriedades estéticas da obra são sobrevenientes apenas à sua estrutura. Nenhum dos autores enfrenta a questão levantada aqui, embora Goodman observe a dada altura que ao caracterizar a própria obra não precisamos de nos preocupar por não estarmos a caracterizar todas as suas propriedades (1968, pp. 209-210). Esta observação sugere o seguinte tratamento do problema: em cada mundo possível, identificamos a obra em termos da sua estrutura, pois a obra simplesmente é essa estrutura; em diferentes mundos, a obra terá histórias de produção diferentes, geradas pelas actividades diversas do seu compositor (ou autor) e por diferenças no contexto histórico-artístico envolvente. Assim, distinguimos entre propriedades que a obra tem essencialmente (propriedades que tem em todos os mundos possíveis em que existe) e propriedades que tem não essencialmente (propriedades que tem em alguns mundos possíveis mas não noutros). A estrutura da obra será uma propriedade essencial, ao passo que a sua história será inessencial. Correspondentemente, quaisquer propriedades estéticas da obra que sejam (pelo menos em parte) uma função da história da obra serão propriedades que a obra tem inessencialmente. Assim, embora esta perspectiva reconheça, contra o empirista, que as propriedades estéticas da obra são em parte uma função da sua história, mantém uma visão de inclinação empirista acerca da estrutura pura; a estrutura é essencial, a história acidental. Se há quaisquer propriedades estéticas determinadas apenas pela estrutura (penso que não há), serão propriedades essenciais da obra. As que envolvem também a história são acidentais. Consistentemente com esta perspectiva pode-se afirmar que é uma propriedade essencial de uma obra o ter uma história relevante para a determinação das suas propriedades estéticas. Mas a história que tem varia de mundo para mundo.
A nossa tarefa agora é ver se este modo de ter uma ontologia empirista sem uma estética empirista é sustentável. Argumentarei que não o é, e procurarei mostrar que a posição é vulnerável a uma objecção apresentada por Jerrold Levinson.2 Levinson tem na verdade duas objecções, uma menos importante nas suas consequências do que a outra, mas vale a pena enunciar ambas. Começo pela menos importante.
Levinson defende que a perspectiva das obras musicais como puras estruturas sonoras não pode ser correcta porque desse modo seriam completamente deixadas de lado considerações sobre os meios de execução. Se alguém produz, por meios puramente electrónicos, um padrão de sons que se conforma às notas indicadas na partitura da Sonata Hammerklavier de Beethoven, será que desse modo produziu uma instância da obra? As intuições aqui podem diferir, mas o que é seguramente muito mais claro é que não produziu uma instância correcta da obra. Faz parte da obra o ser para interpretar apenas de determinadas maneiras. Uma interpretação que viola as instruções do compositor acerca de como os sons devem ser produzidos não é uma interpretação correcta da obra. Mas se as obras são puras estruturas sonoras então tudo o que seja uma instância dessa estrutura tem de ser também sem dúvida uma instância da obra. A perspectiva puramente estrutural pode ser resgatada desta objecção ao ser modificada do seguinte modo. Não consideramos mais a obra como uma estrutura de sons-tipo puros, cujos elementos se encontram especificados exclusivamente em termos das suas propriedades sónicas, mas uma estrutura de sons-enquanto-produzidos-por-determinados-instrumentos. Assim os espécimes do tipo Dó-central-enquanto-produzido-por-um-violino são todos notas produzidas por violinos. Esta versão da teoria da obra-enquanto-tipo tem em consideração o facto de os meios de interpretação fazerem parte da obra. Chamemos “estruturas aplicadas” às estruturas de sons-enquanto-produzidos-em-determinados-instrumentos. A perspectiva estrutural que consideraremos a partir de agora é a de que as obras são essas estruturas aplicadas.
Contudo, há uma objecção mais significativa a apresentar contra a teoria estrutural. Suponhamos que sucede dois compositores, trabalhando independentemente, produzirem partituras idênticas. Será que produziram a mesma obra ou obras distintas? Segundo a perspectiva estrutural, os compositores apresentaram-nos receitas para realizar espécimes do mesmo tipo; compuseram a mesma obra.
Levinson considera objectável esta consequência por duas razões. Considera-a objectável, em primeiro lugar, porque torna a identificação das obras independente das suas histórias; e em segundo lugar por não reconhecer que as obras são criadas, em vez de descobertas, pelos seus compositores. Penso que a primeira objecção de Levinson é correcta; a segunda não. Consideremo-las uma de cada vez.
Levinson dá uma série de exemplos de situações imaginárias em que há obras que têm a mesma estrutura sonora ou são correctamente interpretadas do mesmo modo, mas em que parece que somos confrontados com obras diferentes porque têm diferentes histórias de produção. Eis um dos exemplos que Levinson apresenta:
“A Sonata para Piano de Brahms, Opus 2 (1852), uma obra de juventude, é fortemente influenciada por Liszt, como qualquer ouvinte atento pode discernir. Todavia, uma obra que lhe fosse idêntica em estrutura sonora, mas escrita por Beethoven, dificilmente poderia ter a propriedade de ser influenciada por Liszt. E teria uma qualidade visionária que a peça de Brahms não tem”. (1980, p. 12, itálicos no original)
Assim, a imaginária sonata de Beethoven e a sonata de Brahms são obras distintas, apesar de serem a mesma segundo a perspectiva estrutural.
Pode-se rejeitar rapidamente uma objecção a este exemplo. A objecção é a de que casos como este não dizem respeito a propriedades de obras, mas antes a propriedades da actividade do compositor ao produzir a obra. Nesse caso, são exemplos de compositores que chegam de maneiras diferentes à mesma obra. Ser influenciado por Liszt não é, segundo esta perspectiva, uma propriedade da obra, mas antes uma propriedade da actividade composicional de Brahms. Afirmar isto vai, sem dúvida, contra a prática da crítica esclarecida nas artes, que dá ênfase a características da obra como a originalidade da invenção temática ou de orquestração. E os críticos consideram claramente que a compreensão dessas características é importante para compreender a própria obra. Isto torna-se mais óbvio se consideramos um caso mais extremo ainda do que o de Levinson. Suponhamos, por exemplo, que Brahms tinha meramente produzido uma ligeira variação de uma obra de Liszt. A obra resultante seria muito insignificante. Mas se Beethoven, não influenciado por Liszt, tivesse produzido uma obra com a mesma estrutura sonora teria sem dúvida produzido uma obra muito mais importante.
Embora o exemplo de Levinson seja, segundo creio, um contra-exemplo à perspectiva puramente estrutural como a interpretámos (isto é, considerando que envolve uma distinção entre estrutura essencial e história inessencial) temos de resolver uma ambiguidade que se esconde na descrição deste exemplo e de exemplos semelhantes dados por Levinson. Estará Levinson a apresentar-nos uma situação contrafactual (um mundo possível) em que é Beethoven em vez de Brahms que compõe a Sonata para Piano Opus 2, ou uma situação possível em que Beethoven compõe uma obra com a mesma estrutura sonora que a obra posterior de Brahms, que Brahms (e, convém dizer, toda a gente) ignorava na altura em que chegou a compor a sua obra? A diferença que aponto é a diferença entre um mundo em que algo acontece em lugar do que efectivamente acontece, e um mundo em que algo acontece além do que efectivamente acontece. Se interpretamos Levinson do primeiro modo, temos de tratar o seu exemplo do ponto de vista da comparação intermundial das obras; se o interpretamos do segundo modo, é um exemplo que podemos tratar do ponto de vista da comparação intramundial entre obras. (As palavras de Levinson, aqui e noutras passagens, sugerem a primeira interpretação, mas não é esta a ideia importante. O importante é que os exemplos podem ser interpretados destes dois modos diferentes.3)
Suponha-se que interpretamos os exemplos de Levinson do primeiro modo. É claro que o estruturalista pode responder afirmando que a história tal como a contámos é consistente com a ideia de que lidamos com a mesma obra em mundos possíveis distintos. Pode afirmar que tudo o que Levinson mostrou com um exemplo destes é que as obras não têm as suas propriedades estéticas essencialmente; ou seja, não têm as mesmas propriedades estéticas em todos os mundos possíveis em que existem. E isso já o estruturalista concedeu. Levinson mostrou-nos que, embora a Sonata para Piano Opus 2 de Brahms tenha efectivamente a qualidade estética de ser influenciada por Liszt, há mundos possíveis em que não tem essa qualidade, e em alguns destes mundos a obra tem uma qualidade visionária que não tem no mundo efectivo. Assim, Levinson deu-nos um contra-exemplo à afirmação de que as qualidades estéticas de uma obra estão (todas) entre as suas propriedades essenciais; não nos deu um contra-exemplo à afirmação de que a identidade da obra é independente da sua história de produção.
Esta resposta, quaisquer que sejam os seus méritos, não teria força contra o exemplo se fosse interpretada do segundo modo. Na segunda interpretação, temos de pensar num mundo em que Beethoven compõe uma obra (não influenciada, obviamente, por Liszt); mais tarde, Brahms compõe uma obra com a mesma estrutura sonora, sob a influência de Liszt (mas nada sabendo acerca desta obra em particular por Beethoven). Se concordamos que propriedades como ser visionário, e ser influenciado pela obra de Liszt são propriedades da obra, em vez de serem apenas propriedades da actividade composicional do compositor — e o argumento apresentado atrás certamente sugere que o são — temos indubitavelmente um caso de composição de obras distintas. Uma e a mesma obra não pode simultaneamente ser visionária e não visionária no mesmo mundo, pois nada pode ter uma propriedade e a negação dessa propriedade num dado mundo. Pelo que é melhor pressupor que o exemplo de Levinson deve ser interpretado deste modo, o segundo.
Temos agora um contra-exemplo à perspectiva estruturalista da identidade da obra. Pois, nesta perspectiva, dois compositores ou autores que produzem independentemente a mesma estrutura produziram a mesma obra. Mas vimos que há casos possíveis em que queremos afirmar que actos composicionais distintos resultam em obras distintas com a mesma estrutura. E fizemo-lo, além disso, sem ter de pressupor que uma obra tem as suas propriedades estéticas essencialmente. (Regressaremos à questão das propriedades essenciais na secção 17.)
Antes de passar à nossa construção de uma alternativa positiva à perspectiva estruturalista, quero considerar uma outra versão do estruturalismo, porque ao fazê-lo faremos uma distinção que será importante para nós. Continuaremos a desenvolver o argumento na secção 7.
Nicholas Wolterstorff apresentou uma explicação da natureza das obras que partilha semelhanças com a de Wollheim e a de Goodman.4 O melhor modo de compreender a teoria de Wolterstorff é como resposta ao seguinte problema: será que toda a instância de uma obra tem de ser uma instância correcta dessa mesma obra? Concentremo-nos aqui nos casos da literatura e da música. Uma instância correcta de um romance é uma cópia ortograficamente correcta; uma interpretação correcta de uma sonata é uma interpretação que se conforma a todas as exigências explícitas na partitura. Será que podemos afirmar que algo é uma instância de um romance se não for ortograficamente correcto? Poderá algo ser uma instância de uma sonata se não for correctamente interpretado? A perspectiva radical que encoraja uma resposta negativa dificilmente pode estar certa. Considere-se o manuscrito original de Emma, de Jane Austen. Suponhamos, como é seguramente possível, que este contém um erro, no sentido de que contém uma palavra que não foi escrita segundo as normas ortográficas em vigor na época em que a obra foi escrita. Ora, há dois modos de interpretar a tese de que toda a instância de uma obra tem de ser ortograficamente correcta. Numa interpretação, ser ortograficamente correcta significa ter exactamente a mesma grafia do original. Segundo essa interpretação, todas as instâncias de Emma têm de conter exactamente o mesmo erro ortográfico que o original — uma perspectiva dificilmente plausível. De acordo com a outra interpretação, ser ortograficamente correcto significa ser exactamente conforme às regras ortográficas em vigor na época e lugar em que a obra foi escrita. Nesse caso o manuscrito de Austen não seria ele próprio uma instância da obra. Mais uma vez, isto é muitíssimo implausível. Concluo que precisamos de uma distinção entre instâncias e instâncias correctas de uma obra (sendo as últimas uma subclasse das primeiras). Admito, contudo, que não vejo modo de tornar mais precisa a propriedade ser uma instância de. Uma cópia tão ortograficamente incorrecta a ponto de ser ininteligível presumivelmente não contaria como uma instância da obra da qual se pretendia que fosse uma instância. Mas não podemos afirmar “se o texto tem n ou mais desvios ortográficos não pode ser uma instância da obra”, quanto mais não seja pela razão de que os erros têm de ser ponderados no contexto. Alguns erros ortográficos são mais graves e confusos do que outros. Ser uma instância de é um conceito inevitavelmente vago, mas também muitos outros conceitos dos quais teríamos dificuldade em abdicar o são.
O que afirmámos acerca da ortografia de uma obra literária tem uma analogia óbvia no caso da música. Uma instância de uma obra musical — uma interpretação da mesma — é correcta se for executada de acordo com a partitura, sem desvios de altura tonal, intensidade ou meios de execução relativamente ao que a partitura permite. Mas queremos evidentemente afirmar que há instâncias genuínas da obra, ainda que com algum grau de incorrecção.
Nelson Goodman é um enérgico defensor da perspectiva de que a estrita conformidade ortográfica (ou, no caso da música, a estrita conformidade com a partitura) é uma condição necessária para algo ser uma instância da obra (Goodman pensa também que é uma condição suficiente).5 Goodman reconhece, na verdade, que isto dificilmente se conforma ao modo como normalmente falamos acerca de instâncias de obras. Defende esta discrepância afirmando que
“as exigências que ditam o nosso discurso técnico não têm de reger o nosso discurso quotidiano. Não estou a aconselhar que no discurso quotidiano nos recusemos a dizer que um pianista que errou uma nota interpretou uma Polonesa de Chopin, tal como não aconselho que nos recusemos chamar “peixe” a uma baleia, “esférica” à Terra ou “branco” a um ser humano cor-de-rosa acinzentado”. (1968, p. 187)
A analogia é enganadora. Todos podemos aceitar que embora seja útil para determinados propósitos, ou apropriado em determinadas circunstâncias conversacionais, afirmar que a Terra é esférica, esta não é realmente esférica. Mas considere-se novamente o caso em que o manuscrito de Emma contém um erro ortográfico. Queremos afirmar que embora para determinados fins se possa descrever o manuscrito de Austen como uma instância de Emma, não o é realmente? Ou, considerando o modo alternativo de lidar com o caso, disponível a um partidário de Goodman, será que queremos afirmar que embora a minha cópia de Emma, que não contém o mesmo erro ortográfico, possa, para alguns fins, ser descrita como uma instância de Emma, não o é realmente? Nenhuma das alternativas é agradável. Enquanto ser esférico é um conceito susceptível de definição precisa que podemos por vezes aplicar de um modo lato, o conceito de ser uma instância de, tal como se aplica a obras de arte como romances e sonatas, tem uma vagueza que só pode ser eliminada exercendo violência sobre o próprio conceito. (Isto não se aplica, evidentemente, ao conceito de ser uma instância correcta de, que é um conceito preciso.)
Uma explicação das obras que pretende acomodar a possibilidade de instâncias incorrectas de uma obra é a análise que Nicholas Wolterstorff faz das obras como tipos normativos. Wolterstorff pede-nos que reconheçamos uma categoria de coisas que são tipos. Para cada propriedade da forma ser um F há um tipo F a que pertencem as coisas que têm essa propriedade. Ora, alguns tipos são normativos no sentido de que podem ter instâncias correctas e incorrectas. Para algo ser um tigre tem de ter todas as propriedades essenciais da tigridade, mas pode não ter alguma propriedade necessária para ser um tigre bem formado; suponhamos, por exemplo, que tem apenas três patas. Tigre é um tipo (natural) normativo e a Sonata Hammerklavier é um tipo (não natural) normativo. Concebidas como tipos normativos, as obras não têm as propriedades que o nosso discurso habitual lhes atribui. Assim, podemos afirmar que o Primeiro Quarteto de Cordas de Bartók é uma obra que tem um Sol sustenido no sétimo compasso. Mas, na perspectiva de Wolterstorff, esta não é uma propriedade da obra, embora possa ser uma propriedade de qualquer instância correcta da mesma. Quando afirmamos que uma obra tem um Sol sustenido no sétimo compasso queremos dizer, segundo Wolterstorff, que tem a seguinte propriedade; ser tal que algo não pode ser uma sua instância correcta sem ter um Sol sustenido no sétimo compasso. Assim, o que a versão de estruturalismo da obra-enquanto-tipo explica como uma ambiguidade tipo-espécime, a teoria da obra-enquanto-tipo-normativo explica como a supressão sistemática de um operador: “ser tal que algo não pode ser uma instância correcta da obra sem ter a propriedade P”.6
Isto é uma explicação mínima da teoria de Wolterstorff. Mas não temos de examinar em profundidade os recursos da teoria para descobrir a sua imperfeição fundamental; a mesma imperfeição, aliás, que descobrimos na versão obra-enquanto-tipo do estruturalismo. Suponhamos que dois compositores seleccionam independentemente o mesmo tipo normativo tornando normativas as mesmas propriedades no tipo. Na perspectiva de Wolterstorff, ambos seleccionaram a mesma obra musical. Uma vez que saibamos como se há-de executar apropriadamente uma obra, sabemos tudo o que há para saber acerca da identidade da própria obra. De igual modo, segundo a perspectiva de que as obras são tipos, dois compositores que seleccionam a mesma estrutura sonora terão seleccionado a mesma obra. Não há lugar para a ideia de obras distintas com a mesma estrutura sonora. Na secção 4 chamou-se a atenção para como esta consequência é uma imperfeição numa explicação das obras.
Levinson oferece como alternativa à perspectiva estrutural a sua própria explicação da natureza da obra, uma explicação que teremos razões para rejeitar. Antes de descrever a sua teoria apresentarei uma motivação suplementar que Levinson dá a seu favor, visto que será importante para nós na secção 9.
Levinson tem outra objecção à perspectiva estruturalista, baseada na sua insistência de que compor (e como presumivelmente diria, escrever e pintar) é criar. O artista a quem associamos uma obra é a pessoa que, em virtude das suas actividades composicionais, faz existir a obra. Mas se identificamos a obra com uma estrutura de sons, temos de afirmar que a obra é algo que existe eternamente.7 Não me é claro que esta seja a única opção aberta a quem identifica a obra com uma estrutura sonora. Quem afirmasse que determinadas entidades abstractas como estruturas sonoras são criadas, provocaria uma discussão algo complexa. Mas não temos de resolver essa questão complexa aqui, pois ela reduz-se a algo muito mais simples. Se a perspectiva do leitor é a de que a composição é criação (ou que pelo menos envolve criação) terá de adoptar a perspectiva de que a mesma obra não pode ser composta em duas ocasiões diferentes (no mesmo mundo possível). Pois criar é fazer existir, e não se pode fazer existir o que já existe. Evidentemente, pode-se argumentar que uma obra pode ser composta em ocasiões distintas se, a dado momento entre essas ocasiões, a obra é destruída; nesse caso faz-se existir algo, esse algo é destruído, e mais tarde fazemo-lo existir novamente. Não estou certo de que faça sentido a ideia que aqui usamos de o mesmo objecto, numericamente, ser destruído e recriado, mas suponhamos que faz sentido. De modo a descobrir que perspectivas acerca da ontologia da arte são inconsistentes com a hipótese de que a composição é criação, temos de descobrir que perspectivas permitem que uma obra seja composta em ocasiões distintas sem destruição intercalar.
Evidentemente, a teoria estruturalista permite isto. Dois compositores podem independentemente apresentar partituras que especificam a mesma estrutura de tipos sonoros (relativizada a instrumentos). Isto seria a múltipla composição da mesma obra. E a teoria de Wolterstorff permite também que compositores distintos especifiquem independentemente o mesmo tipo normativo: especificar as mesmas propriedades como normativas na obra. Tais coisas seriam possíveis mesmo que nada acontecesse entre a primeira composição e a segunda de modo a provocar a destruição da obra. Basta que o segundo compositor trabalhe na ignorância relativamente ao outro. Segundo perspectivas como estas, portanto, compor uma obra não é necessariamente criá-la. Regressaremos à questão da criação na secção 9.
Levinson desenvolve uma explicação das obras que integra a história de uma obra nas suas condições de identidade, e faz que a composição seja criação. Na sua perspectiva, uma obra não é meramente uma estrutura sonora aplicada, mas antes uma estrutura-enquanto-indicada-por-C-em-t, em que C é o compositor e t é o momento da composição.8 Admite-se que a própria estrutura é uma entidade que existe eternamente. O compositor “indica” esta estrutura S quando compõe. Mas por meio do acto de indicação, o compositor faz que algo mais exista, nomeadamente, S-enquanto-indicada-por-C-em-t. Antes de t, nenhuma relação havia entre C e S; a composição estabelece uma relação de indicação entre ambos. Em resultado do acto composicional o mundo contém uma entidade nova, S-enquanto-indicada-por-C-em-t. Esta teoria tem a dupla vantagem, afirma Levinson, de garantir que uma obra é criada em vez de descoberta, e que as obras com a mesma estrutura sonora compostas em situações diferentes por pessoas diferentes serão obras diferentes.9
Em alguns aspectos, penso que a proposta de Levinson está no bom caminho. Tem seguramente razão em pensar que a obra não é simplesmente uma estrutura de elementos abstractos; de algum modo, há que integrar na obra a sua dimensão histórica. Mas a proposta, tal como está, é inaceitável. Note-se primeiro que, na explicação de Levinson, há duas coisas distintas feitas pelo compositor. Este descobre uma determinada estrutura sonora preexistente, e ao mesmo tempo compõe — ou seja, cria — uma obra musical. O que descobre é S, o que compõe é S-enquanto-indicada-por-C-em-t; chamemos-lhe S'. Mas o que é ao certo S'? Isto é metafisicamente obscuro, no mínimo. Colombo descobriu a América (suponhamos). Ao fazê-lo, será que fez existir uma nova entidade, a América-enquanto-descoberta-por-Colombo? Fleming descobriu a penicilina; ao fazê-lo será que fez existir a penicilina-enquanto-descoberta-por- Fleming? Que género de entidade seria essa, se não é simplesmente idêntica à penicilina? Se os argumentos de Levinson estabelecem a existência de estruturas indicadas nas artes, parecem estabelecer a sua existência numa série de outras áreas em que elas não são desejadas. E de nenhum modo compreendemos o que estas entidades poderão ser. É difícil resistir à conclusão de que Levinson simplesmente postulou um tipo de entidade para resolver o seu problema, sem ser capaz de nos dizer seja o que for de informativo acerca da natureza dessa entidade.
Contudo, pode-se afirmar que esta objecção se concentra num elemento inessencial da teoria de Levinson. Pois pode-se considerar que o conteúdo real da teoria é uma afirmação acerca das condições de identidade das obras. Podemos nesse caso entender que Levinson nos diz não o que as obras são mas quando as obras são idênticas. E como Frege esclareceu no caso dos números, dizer-nos quando as coisas são idênticas não equivale a dizer-nos o que são.10 Pelo que podemos deixar temporariamente na obscuridade a questão do que as obras são e concentrarmo-nos na afirmação de Levinson acerca das suas condições de identidade. Sobre esta questão podemos considerar que Levinson propõe que as estruturas indicadas envolvem três componentes essenciais; uma estrutura, uma pessoa (compositor) e um momento no tempo (da composição). As estruturas indicadas são a mesma se estes três elementos forem os mesmos. Dado isto, podemos supor-nos capazes de gerar um contra-exemplo directo à teoria de Levinson do seguinte modo. Considere-se um caso muito semelhante ao citado anteriormente a partir de Levinson: imagine-se que, por volta de 1852, Liszt não escrevera música alguma para piano, ou qualquer música de todo. Nesse caso, a Opus 2 de Brahms para piano, de 1852, não seria influenciada por Liszt. Seria uma obra mais original do que efectivamente é.
Neste caso, imaginámos um mundo possível em que a obra mantém a sua estrutura, compositor e momento de composição (e logo a sua identidade) mas no qual tem uma propriedade estética que não tem no mundo efectivo. Mas claro que isto não é um contra-exemplo à proposta de Levinson, desde que ele esteja disposto a conceder que as obras não têm (todas) as suas propriedades estéticas essencialmente; que têm em alguns mundos propriedades estéticas que não têm noutros. Mas agora podemos ver que é muito mais difícil encontrar um contra-exemplo directo à perspectiva estruturalista. Porquanto não podemos alterar o exemplo de tal modo que imaginamos a mesma obra sendo apresentada duas vezes em circunstâncias diferentes no mesmo mundo. Levinson exclui isto integrando na obra o tempo e a autoria da composição; dois compositores a trabalhar independentemente que produzem a mesma partitura não compõem a mesma obra, na perspectiva de Levinson. Talvez se trabalhássemos o suficiente na ideia de um compositor ambidextro, com o cérebro bissectado, que escreveu a mesma partitura simultaneamente com ambas as mãos, cada metade do seu cérebro apoiando-se em ideias musicais distintas, pudéssemos gerar um contra-exemplo, mas muito provavelmente seria um exemplo muito fraco. Não procurarei construir semelhante exemplo.
Todavia, penso que podemos ainda apresentar alguns argumentos contra Levinson (além do argumento já dado acerca da obscuridade metafísica). Vejamos quão bem a sua teoria da identificação se ajusta às nossas intuições. Imagine-se dois mundos, m1 e m2, que diferem do mundo efectivo dos seguintes modos. Em m1 Beethoven compõe uma obra que tem exactamente a mesma estrutura sonora que a sua Sonata Hammerklavier, excepto que num dado ponto há uma nota a ser tocada de modo algo diferente (preencha o exemplo de tal modo que a diferença seja tão insignificante quanto possível). De contrário, m1 não difere do mundo efectivo de qualquer modo histórico-musical significativo. Em m2, contudo, há divergências bastante maiores com o mundo efectivo. Em m2 Beethoven compõe em 1817 uma obra idêntica na estrutura sonora à Sonata Hammerklavier. Mas fá-lo num contexto histórico-musicológico sobremaneira empobrecido. Suponhamos aliás que esta composição é a primeira a ser escrita desde o tempo de Purcell, tendo-se de algum modo perdido a arte da composição. Isto seria sem dúvida um feito impressionante. Agora parece-me que, de um ponto de vista intuitivo, estamos tão inclinados a considerar que a obra em m1 é distinta da Sonata Hammerklavier, como a considerar que a obra em m2 é idêntica a esta. Mas as condições de identidade para obras, de Levinson, obrigam-nos a afirmar que em m1 a obra não é a Sonata Hammerklavier, e que em m2 é. Além disso, parece claramente errado tornar constitutivo da obra o momento da composição. Sem dúvida que pelo menos algumas obras podiam ter sido compostas alguns dias (horas, minutos?) mais tarde ou mais cedo do que efectivamente foram. A teoria de Levinson torna isto impossível. E está longe de ser claro que a identidade do compositor faça parte da obra; imagine-se um mundo possível em que Beethoven e Schubert permutam as suas biografias musicais. Tudo o que foi musicalmente feito por Beethoven no mundo efectivo é feito por Schubert nesse mundo, e vice-versa. Assim, nesse mundo, todos os feitos de Beethoven pertencem a Schubert, e vice-versa. Mas seguramente queremos afirmar de tal caso que Beethoven compôs todas as obras de Schubert e Schubert todas as de Beethoven. Mais uma vez, a teoria de Levinson impede-nos de afirmar isto.
Uma tentativa de recuperar algo da ideia de Levinson foi levada a cabo por James Anderson.11 Anderson concorda que é contra-intuitivo afirmar que o compositor e o momento da composição fazem parte da identidade da obra, mas quer seguir Levinson ao excluir a possibilidade de diferentes compositores comporem independentemente a mesma obra em diferentes circunstâncias histórico-musicais. A solução que encontra é definir uma obra de tal modo que, embora não se especifique a identidade do seu compositor e o momento da composição, estipula-se que nenhuma obra pode ser composta mais do que uma vez num dado mundo. A sua definição assemelha-se ao seguinte:
OM = S/MP tal como indicada por não mais do que um P por mundo possível em exactamente um t por mundo possível.
Aqui, OM é a obra musical, S/MP é uma “estrutura de som/meios performativos” (uma estrutura aplicada no nosso sentido), e P e t são variáveis de pessoa e tempo, respectivamente.
Mas esta sugestão rapidamente cai em dificuldades. Pois tem a consequência de que em qualquer mundo onde haja compositores que chegam independentemente à mesma estrutura sonora, nenhum deles compôs uma obra. Para algo ser uma obra, tem de ser indicada apenas uma vez num dado mundo. Isto seria violado em tal exemplo. Assim, ao invés de esta proposta sustentar a intuição de que compositores distintos que chegam independentemente à mesma estrutura sonora em contextos histórico-musicais diferentes apresentam obras diferentes, segundo tal proposta não apresentam de todo quaisquer obras. Se alguém desconhecedor da história da música amanhã cogitasse a estrutura sonora da Sonata Hammerklavier, tornar-se-ia então subitamente verdade que Beethoven não compôs de todo essa obra. Mas o facto de Beethoven ter ou não composto essa obra seguramente não pode depender do que acontece depois. Esta proposta não constitui evidentemente qualquer progresso sobre a de Levinson.
A identificação que Levinson faz entre as obras e as estruturas indicadas é motivada, como vimos, por um desejo de sustentar a perspectiva de que uma obra é criada pelo artista associado a ela. Esta motivação é sem dúvida reconhecida amplamente; mas será correcta? Argumentarei que as obras de arte não são criadas. Não argumentarei, contudo, a favor da perspectiva de que são descobertas. A relação entre artista e obra é diferente tanto da descoberta como da criação. Veremos porquê na secção 14.
Concordámos que, com reservas acerca da destruição, uma obra não pode ser criada e criada novamente mais tarde (isto é, no mesmo mundo). De modo a mostrar que a composição não é criação, apresentarei um exemplo em que parece intuitivamente claro que temos um tal caso de composição múltipla.
O nosso problema é encontrar um caso em que uma obra é composta em duas ocasiões diferentes. Ora, dado o que afirmei acerca da dependência da identidade da obra relativamente à sua história de produção, parece que será muito difícil encontrar um exemplo em que obras produzidas independentemente têm exactamente a mesma história de produção. Sem dúvida que dois artistas a trabalhar independentemente estarão sempre situados em contextos histórico-musicais que diferem num ou noutro aspecto. Como diz Levinson, “mesmo pequenas diferenças no contexto histórico-musical […] parecem indubitavelmente provocar alguma mudança de género ou grau numa qualquer qualidade estética ou artística, por muito difícil que possa ser explicitar verbalmente esta mudança” (1980, p. 13). Assim o desafio de Levinson é construir um exemplo em que artistas distintos trabalhando independentemente um do outro estão exactamente na mesma situação histórico-musical.
Ora, o discurso sobre a mesmidade de contexto ou situação está sujeito a uma ambiguidade tipo-espécime. Duas pessoas podem estar no mesmo tipo de situação mas não literalmente na mesma situação (espécime). Sugiro que tudo o que precisamos aqui é de um caso em que temos o mesmo tipo de situação, desde que a mesmidade seja garantida de um modo muito preciso. Precisamos da ideia da “Terra Gémea”, de Hilary Putnam.12
Imagine-se que há algures no universo uma Terra Gémea; um planeta que é em todos os aspectos qualitativos exactamente como o nosso, excepto, evidentemente, que é habitado por pessoas diferentes de nós. Por “o mesmo qualitativamente” entendo que não se pode distinguir estes planetas olhando para o que se passa neles. Cada um de nós tem no outro planeta um doppelgänger que é fisicamente indistinguível de nós, realiza as mesmas acções (tipo) que realizamos, pensa todos os pensamentos que pensamos, tem experiência das mesmas sensações. Os nossos ambientes cultural e físico são os mesmos, excepto pela identidade dos objectos.13 Todas as acções e feitos realizados na Terra são duplicados na Terra Gémea; em particular, Beethoven tem um gémeo na Terra Gémea. Tudo o que diríamos acerca do que Beethoven realiza ao compor a Sonata Hammerklavier diríamos acerca do que o Beethoven Gémeo realiza ao produzir uma obra com a mesma estrutura sonora. Beethoven e o Beethoven Gémeo resolvem os mesmos problemas musicais do mesmo modo, sob as mesmas influências e com o mesmo grau de originalidade, ao conceber aquela estrutura sonora. Não há característica estética de uma que não seja uma característica estética da outra. Todos os juízos que faríamos acerca de uma, qua obra de arte, faríamos acerca da outra. Logo, afirmo, cada um produziu independentemente a mesma obra.
Imagine-se também, para tornar o exemplo um pouco mais persuasivo, que embora a sociedade na Terra Gémea se desenvolva exactamente do mesmo modo que a sociedade na Terra (e independentemente), desenvolve-se um pouco mais tarde. Nesse caso penso que devemos afirmar que toda a obra de arte composta na Terra é composta um pouco mais tarde na Terra Gémea. E no tempo que decorre entre a ocorrência da composição na Terra e a ocorrência da composição na Terra Gémea suponhamos que nenhuma obra é destruída. Nesse caso, temos um contra-exemplo à afirmação de que a composição é criação. Pois temos um exemplo em que as obras são compostas na Terra e mais tarde na Terra Gémea.
Ora, alguém que identifica a composição com a criação — chamemos-lhe “criacionista” — poderá responder que o exemplo pode ser descrito de modo a ser consistente com a sua perspectiva. Na situação que descrevi, a Sonata Hammerklavier de Beethoven é antes de mais criada na Terra por Beethoven, e depois descoberta na Terra Gémea pelo Beethoven Gémeo. As obras sem dúvida são criadas, mas uma vez criadas tornam-se parte da mobília do universo e estão disponíveis para serem descobertas. Na situação que acabo de descrever, pareceria então aos habitantes da Terra Gémea que o Beethoven Gémeo tinha composto a obra, mas na verdade não o teria feito. Teria meramente descoberto algo que já fora trazido à existência.
Mas esta resposta não é satisfatória. Imagine-se uma variação da nossa história. Tudo o que acontece na Terra Gémea acontece ligeiramente mais cedo do que os acontecimentos correspondentes na Terra. Nesse caso, não seria Beethoven quem criou a Sonata Hammerklavier e sim o Beethoven Gémeo. Mas claro que esta situação possível podia concebivelmente ser a situação efectiva; pode haver uma Terra Gémea algures no espaço profundo. Nesse caso, o criacionista não pode afirmar definitivamente que Beethoven compôs aquela obra; na sua própria perspectiva, a história da nossa cultura é consistente com a possibilidade de que Beethoven a descobriu, caso em que não a teria composto. Mas seria algo muito estranho afirmar isto sobre uma situação em que Beethoven chegou à estrutura sonora daquela sonata independentemente de quem quer que seja. Se chegou de facto àquela estrutura sonora independentemente, então seguramente que no sentido comum de “compor”, Beethoven compôs realmente a obra. Afirmar que podia não ter composto a obra naquela situação é estipular um sentido novo, técnico, para “composição”, e não explicar o seu sentido comum. Não pode fazer parte do conceito de composição que os compositores criam as suas obras.
Claro que o criacionista podia objectar ao exemplo baseando-se na ideia de que, dado estarem envolvidos compositores distintos, têm também de estar envolvidas obras distintas. Mas isto é apenas insistir no ponto de que a identidade do compositor faz parte da identidade da obra, não é argumentar a seu favor. Por outro lado, a posição que defendo aqui parece bem adequada a uma estética baseada na ideia de realização artística. Apreciar a obra é apreciar a realização do artista; se dois artistas realizam a mesma coisa, por que deveríamos contar as suas obras como distintas?
Neste ponto, o criacionista podia lançar um desafio de sua própria lavra. Se as obras não são, de facto, criadas, como é que todos pensamos irreflectidamente nelas como criadas? Na verdade, seria razoável argumentar do seguinte modo: a esmagadora maioria de nós pensa que as obras são criadas; a melhor explicação desta convergência de opinião é que as obras são criadas e que estamos cientes desse facto.
Argumentos como este merecem ser levados a sério, e gostaria de poder responder a este oferecendo uma melhor explicação da convergência do que aquela que acabámos de considerar. Infelizmente não posso. Todavia, esta falha, por deplorável que seja, não afecta a dialéctica da presente disputa. Embora admita não ter uma boa explicação para as pessoas estarem tão dispostas a acreditar em algo que considero errado, o género de criacionista contra o qual argumento aqui está exactamente na mesma posição. Vejamos porquê.
Nesta fase da discussão, abandonámos a perspectiva de que as obras são estruturas (puras ou aplicadas). Esta perspectiva dá simplesmente os resultados errados acerca da identidade e diversidade das obras. E as restantes partes em disputa concordam que pode haver casos de composição múltipla de obras com a mesma estrutura sonora. Assim, há acordo acerca de o compositor não criar a estrutura sonora da sua obra. Os que pensam que ele cria a sua obra pensam que cria algo distinto dessa estrutura sonora (ainda que possivelmente a envolva). Pelo que o tipo de criacionista que considero aqui concorda comigo em como, por exemplo, Beethoven não criou a estrutura sonora da Sonata Hammerklavier. Mas isso é exactamente o que é negado pela opinião pré-filosófica, que identifica a obra com a estrutura sonora associada. Maioritariamente, as pessoas diriam, creio, que Beethoven criou essa mesma estrutura sonora. (A minha própria sondagem de opiniões sugere isto.) Nesse caso, o criacionista está exactamente na mesma situação que eu a respeito da opinião ingénua, e não pode ganhar vantagem alguma em chamar a atenção para o facto de eu me desviar dela.
O propósito da discussão anterior foi em parte revelar as imperfeições das teorias correntes acerca da natureza das obras de arte, e em parte estabelecer os fundamentos de uma teoria melhor, sugerindo uma série de restrições que uma teoria aceitável tem de satisfazer. Estamos agora em condições de especificar que restrições são essas:
Outra restrição pode ser derivada a partir dos argumentos de capítulos anteriores. Observámos na secção 1 que uma ontologia das obras de arte deve combinar-se com a nossa teoria preferida acerca da natureza da apreciação. Sustento que a apreciação de uma obra é a apreciação da realização do artista. Pelo que temos:
Há uma questão complementar que uma ontologia das obras de arte tem de decidir, embora as considerações em jogo aqui não imponham à nossa teoria uma restrição persuasiva num ou noutro sentido. A nossa primeira restrição diz-nos que o padrão ou estrutura de uma obra lhe é intrínseco. Não demos ainda uma formulação muito precisa a esta ideia. Fá-lo-emos na secção seguinte. E temos de decidir se este carácter intrínseco da estrutura é consistente com uma intuição a que apelei na secção 8: que faz sentido considerar que a estrutura de uma obra está sujeita a variação (talvez de um género mínimo) em diferentes mundos possíveis. Queremos afirmar, por exemplo, “A Sonata Hammerklavier podia ter tido uma estrutura sonora diferente da que efectivamente tem”. Procurarei reconciliar o carácter intrínseco da estrutura com a possibilidade de variação transmundial da estrutura. O resultado será apresentado na secção 17.
A hipótese que mais plausivelmente satisfaz as nossas restrições é, sugiro, a seguinte: uma obra de arte é um tipo de acção. Chegamos por fim à HTP. Para compreender esta proposta termos de fazer um breve excurso pela teoria da acção.
A distinção tipo-espécime aplica-se a acções e outros acontecimentos (trato as acções como uma subclasse dos acontecimentos.) Há um sentido em que o mesmo acontecimento pode ocorrer mais do que uma vez. O que temos nesse caso são muitos acontecimentos-espécime do mesmo acontecimento-tipo. Para tornar a nossa discussão mais delimitada vou adoptar o enquadramento de uma teoria dos acontecimentos em particular, clara e útil; a que devemos a Jaegwon Kim.14 Penso que a teoria de Kim é boa, mas tem certamente problemas que não desejo discutir aqui. Espero que as coisas que vou dizer acerca das obras de arte no contexto da teoria de Kim se possam traduzir para o enquadramento de uma teoria melhor dos acontecimentos, se houver tal coisa.
Kim considera que um acontecimento-espécime do género mais simples tem três elementos constitutivos: um indivíduo, uma propriedade e um momento do tempo. Assinalemos expressões que designam acontecimentos colocando um * em cada extremidade. Assim *John a cantar no momento t* é um acontecimento que tem como seu indivíduo constitutivo John, como propriedade constitutiva x está a cantar, e como momento constitutivo t. Um acontecimento pode ser algo que ocorre ao longo de um intervalo de tempo, e.g. *John canta entre t1 e t2*. Nesse caso, o momento constitutivo é um intervalo em vez de um instante. (No que se segue não distinguirei entre instantes e intervalos. Para simplificar mais a discussão, por vezes omitirei de todo a referência ao tempo.)
Os acontecimentos podem também ser relacionais. *Greg vence Alan no xadrez no momento t* é um acontecimento com dois objectos constitutivos, Greg e Alan, e uma relação constitutiva (uma propriedade diádica), x vence y no xadrez. Ora suponhamos que uso uma certa estratégia S para vencer Alan. Então *Greg vence Alan no xadrez usando a estratégia S no momento t* é um acontecimento que podemos considerar que tem quatro elementos constitutivos, Greg, Alan e a estratégia S, e uma relação triádica x vence y no xadrez usando a estratégia z.
Passando para um caso mais relevante, consideremos o acontecimento que é a composição da Sonata Hammerklavier por Beethoven. Parte do que este acontecimento envolve consiste em Beethoven descobrir uma determinada estrutura sonora. Ora, presumivelmente, há uma história que podemos contar acerca das circunstâncias relevantes da descoberta de Beethoven. Contar essa história informa-nos acerca da natureza do que Beethoven realizou. Se reuniu as ideias musicais recorrendo a actos de plágio descarado a partir de diversos outros compositores, o que realizou não teve grande importância. Se usou a originalidade da invenção melódica e a audácia na harmonização, realizou algo considerável. Introduzamos neste ponto a ideia de uma via heurística.
Aqui, apoio-me na semelhança entre a avaliação de uma obra de arte e a apreciação de uma teoria científica. Sugiro que ambos os géneros de apreciação são contextualmente relativos. As teorias que são empiricamente equivalentes no sentido de terem as mesmas consequências observacionais podem ainda ser diferentemente sustentadas pelos factos, devido aos modos como estas teorias são geradas. Para explicar esta ideia, alguns filósofos da ciência acharam útil introduzir a ideia de uma heurística: um conjunto de pressupostos e directivas acerca de como construir uma teoria. As teorias científicas não são — pelo menos não habitualmente — concebidas pelo súbito fulgurar de uma ideia sagaz. São frequentemente desenvolvidas a custo a partir de imagens mais simples e menos realistas do mundo que podem ter pouco conteúdo empírico, ou de teorias empíricas anteriores que enfrentam anomalias de um ou outro género. Uma heurística ajuda a orientar o progresso do cientista quanto à sua teoria, fornecendo-lhe um conjunto de pressupostos; pressupostos acerca de a que restrições metafísicas a nova teoria tem de se conformar, a que género de modelos analógicos se pode apelar, que técnicas matemáticas são apropriadas. Guiado por uma heurística forte, o cientista pode avançar na construção da sua teoria em relativa independência dos factos empíricos. Quanto menos factos forem usados na construção da teoria (e.g., no fixar de parâmetros), mais os factos contarão como potencial confirmação da teoria quando se testar as suas consequências empíricas. Nesta perspectiva, uma teoria não é apenas um conjunto de postulados juntamente com as suas consequências. É o fechamento dedutivo dos postulados juntamente com a heurística. É esta estrutura dual que é corroborada pelos indícios, e teorias dedutivamente equivalentes podem ser diferentemente confirmadas, consoante as suas heurísticas diferirem.15
Ao falar de uma “via heurística” de um cientista para uma teoria, refiro-me ao processo pelo qual se chegou à teoria; os factos, métodos e pressupostos usados, incluindo modelos analógicos, técnicas matemáticas e ideias metafísicas. Não pretendo afirmar, evidentemente, que há um método uniforme de gerar teorias. E não nego que qualquer desses métodos tem de a dada altura se apoiar na pura inspiração ou invenção da parte do cientista. A construção de teorias não é de modo algum um procedimento mecânico. Mas é um processo pelo menos até certo ponto racional e racionalmente reconstituível.
Desejo adoptar o espírito desta ideia para a nossa análise das obras de arte, embora venha a sofrer modificações durante o processo. Pois a nossa discussão anterior tornou claro que a apreciação de uma obra de arte não é meramente a apreciação de um produto final — um padrão visual, uma sequência de palavras ou sons — mas a apreciação da consecução do artista quando alcança o padrão ou estrutura. A tarefa do crítico ao ajudar-nos a apreciar a obra é em parte ajudar-nos a ver ou ter experiência de coisas no padrão ou sequência em que de outro modo poderíamos não reparar. Mas é mais do que isto. É ajudar-nos a compreender, por meio de investigação histórica e biográfica, o modo como o artista chegou ao produto final. Tem de nos mostrar de que modos o artista se apoiou em obras existentes para se inspirar e até que ponto aquele produto foi o resultado de uma concepção original. Tem de mostrar-nos que problemas o artista teve de resolver para alcançar o seu resultado final, e como os resolveu. O trabalho do crítico, por outras palavras, é fazer remontar, tão exactamente quanto lhe for possível, a via heurística do artista até ao produto final.
Quando especificamos uma via heurística de um compositor até uma estrutura sonora, especificamos os factos esteticamente relevantes acerca das suas acções ao chegar àquela estrutura sonora. Assim, ao especificar a via heurística de Brahms para a Sonata para Piano Opus 2 especificaremos, entre outras coisas, a influência da composição de Liszt sobre Brahms. Esta ideia aplica-se claramente a outras formas de arte. Assim, ao especificar uma via heurística de um autor para a sequência de palavras que é o seu texto, especificaremos as influências que sofreu, as fontes das suas ideias, as convenções de género a que se conformou.16
Claramente, a tarefa de especificar a via heurística do artista para uma determinada estrutura é uma questão de reconstruir racionalmente a história detalhada do seu pensamento criativo, na medida em que a informação disponível nos permitir fazê-lo. Parte da dificuldade em apreciar obras de culturas estranhas ou perdidas está na quase total ausência de material sobre o qual basear semelhante reconstrução. E mesmo nos casos mais favoráveis o trabalho de reconstrução dificilmente pode ser feito com garantia de completude. Mas o que parece claro é que os críticos consideram-no uma parte essencial da sua tarefa de compreender, tão completamente quanto conseguem, a história da produção de uma obra, e dela destilar uma explicação dos problemas artísticos enfrentados pelo artista e os métodos que usou para os superar; em suma, a via heurística do artista. E isto não é meramente um acréscimo útil à actividade crítica, mas uma parte fundamental da mesma. A via heurística é constitutiva da própria obra.
Ora, pode-se considerar que *a composição por Beethoven da Sonata Hammerklavier* tem entre os seus elementos constitutivos três coisas: Beethoven, a estrutura sonora da obra, e a via heurística de Beethoven para essa estrutura sonora. Acrescentando a estas três coisas a relação triádica x descobre y pela via heurística z, e o momento de composição t, temos o suficiente para especificar o acontecimento em causa. Introduzamos agora alguma notação mais útil.
Seguindo Kim, façamos “[A, P, t]” denotar o acontecimento que é o objecto A ter a propriedade P no momento t (propriedades e relações serão denotadas por letras em negrito). Um acontecimento relacional pode ser expresso como “[A, B, R, t]”; o acontecimento *A na relação R com B no momento t*. Podemos então representar o acontecimento que é *a composição por Beethoven da Sonata Hammerklavier* como [B, S, H, D, t] em que B é Beethoven, S a estrutura sonora da obra, H a via heurística de Beethoven para S, D a relação (triádica) x descobre y pela via heurística z, e t o momento da composição.
Agora podemos introduzir a distinção entre tipos e espécimes do seguinte modo. Suponhamos que John canta no momento t1 e Fred canta no momento t2. Temos dois espécimes do mesmo acontecimento-tipo, representáveis respectivamente como [J, S, t1] e [F, S, t2]. O que estes dois acontecimentos têm em comum depois de subtrairmos as identidades dos objectos constitutivos e dos momentos de ocorrência é o tipo de que ambos estes acontecimentos são espécimes. Denotemos assim tal acontecimento-tipo do seguinte modo: [χ, S, τ], em que χ e τ são variáveis que estão em lugar, respectivamente, de objectos e momentos determinados. (Reservemos o uso de τ como variável temporal.)
Se temos um acontecimento relacional como *Greg vence Alan no xadrez em t*, que podemos representar como [G, A, B, t], podemos abstrair dele o acontecimento-tipo, vitórias no xadrez, das quais pode haver muitos espécimes. Representamos esse tipo como “[χ, y, B, τ]”. Ora, o mesmo acontecimento-espécime pode ser um espécime de muitos tipos distintos. *Greg vence Alan no xadrez* é também um espécime do tipo vitórias no xadrez por Greg, que podemos representar como [G, y, B, τ], e um espécime do tipo derrotas no xadrez por Alan, que podemos representar como [χ, A, B, τ]. Estes dois últimos acontecimentos-tipo têm dois elementos constitutivos. São ambos parcialmente constituídos pela relação x vence y no xadrez (B); e um é parcialmente constituído pelo objecto Greg, o outro pelo objecto Alan.
Consideremos agora o acontecimento musical [B, S, H, D, t]. Este é um acontecimento-espécime do qual podemos derivar, pelo nosso processo de abstracção, diversos acontecimentos-tipo distintos. Considere-se o tipo que representaríamos como [χ, S, H, D, τ]. Trata-se do acontecimento-tipo, descoberta de S pela via heurística H. Pode haver muitas instâncias deste acontecimento-tipo, uma para cada par de escolhas de substituição para χ e τ. Uma instância do mesmo é o acto de descoberta realizado pelo próprio Beethoven; este é um acontecimento que efectivamente ocorreu. Outra instância é a descoberta pelo Beethoven Gémeo na Terra Gémea. Este acontecimento-espécime não ocorreu efectivamente, suponho, porque a Terra Gémea não existe.
A minha proposta é agora identificar a Sonata Hammerklavier de Beethoven com o acontecimento-tipo [χ, S, H, D, τ]. Em geral, uma obra de arte será uma acção-tipo com dois “lugares vagos” (um para uma pessoa, outro para um momento do tempo) e terá três elementos constitutivos: uma estrutura, uma via heurística e a relação x descobre y por meio de z. Esta última, D, é um elemento constante em todas as obras de arte. São os outros dois elementos que servem para distinguir as obras de arte entre si. Consequentemente, são estas duas coisas de que falarei como constitutivas da obra, esquecendo D. Chamemos a estas os “elementos identificadores” da obra.
Certifiquemo-nos de que esta proposta satisfaz todas as nossas restrições. Antes de mais, na identificação proposta mostra-se a verdade de que a obra tem dois elementos identificadores, uma estrutura e uma heurística. Altere-se uma ou outra destas coisas e altera-se a identidade da própria obra. O tipo contém toda a informação necessária para apreciar a obra. A proposta satisfaz assim as nossas primeiras duas restrições.
Em segundo lugar, a proposta garante a verdade de que a mesma obra pode ser composta mais do que uma vez no mesmo mundo possível. A obra é composta por quem quer que realize uma acção que instancia o acontecimento-tipo [χ, S, H, D, τ], como sucede no nosso exemplo hipotético da Terra Gémea. Mas não é, nesta perspectiva, composta por qualquer pessoa simplesmente em virtude de ter descoberto a estrutura sonora S; haverá muitas descobertas semelhantes que não contam como composições dessa obra, porque a descoberta não foi feita pela via heurística H. Assim, garantimos a possibilidade de uma obra ter múltiplas composições, mas não somos excessivamente liberais naquilo que contaremos como uma composição da mesma obra. Assim, a proposta satisfaz a terceira restrição. A proposta satisfaz a nossa quarta restrição, porque a obra é identificada com um tipo que se abstrai da identidade do compositor e do momento da composição. Estas coisas não são constitutivas da obra.
Finalmente, a nossa proposta satisfaz a quinta restrição, porque torna claro exactamente em que sentido é verdade que a apreciação de uma obra de arte é uma apreciação da acção do artista. Isto mostra-se literalmente verdadeiro. A obra é a acção-tipo que o artista realiza. Ao apreciar a obra estamos desse modo a apreciar a acção do artista.
Jerrold Levinson (numa comunicação pessoal) levanta o seguinte problema à minha abordagem. De acordo comigo, a heurística da obra é determinada por aqueles factores que influenciam o artista na sua selecção da estrutura da obra. Mas isto deixa de fora condições artístico-culturais importantes que afectam as qualidades estéticas da obra ainda que o artista não esteja ciente delas. Assim, que a música para piano de Brahms tenha determinadas semelhanças com a de Liszt é um facto esteticamente relevante, tivesse ou não Brahms sido influenciado por Liszt. A mera proximidade cultural é suficiente; não tem de ser também proximidade causal. Ao introduzir a ideia de uma heurística da obra, falei seguramente das “influências” sobre o artista; a questão levantada por Levinson é que posso precisar de uma concepção de heurística mais ampla do que a presente. Na verdade, não procurei apresentar condições necessárias e suficientes a favor do juízo segundo o qual dois artistas seguiram a mesma via heurística. Não fiz mais que dar o exemplo dos casos da Terra Gémea; casos como este são certamente casos de artistas que aplicam a mesma heurística. A Terra e a Terra Gémea são idênticas em todos os aspectos qualitativos. A fortiori, são semelhantes no que respeita às influências sobre os artistas, e também no que respeita às proximidades culturais acerca das quais o artista nada sabe. Assim, mesmo que siga Levinson, ampliando o conceito de heurística para incluir factores desconhecidos ao artista, deverei poder ainda apelar aos mesmos casos de identidade heurística. Pelo que o meu argumento pode certamente suportar uma concepção mais liberal de heurística.
Permanece a questão quanto a devermos ou não incluir na heurística de uma obra factores de que o artista não estava ciente. Penso que devemos. O princípio sobre o qual baseei o argumento deste livro é o de que a apreciação das obras de arte é apreciação de um certo tipo de realização. Ora, é relevante, como afirmei, ao descobrir em que consiste aquilo que alguém realizou, saber o que outros fizeram. Assim — para considerar um exemplo de outra área de esforço humano — a nossa percepção da realização de Copérnico ao propor o sistema heliocêntrico do mundo é afectada pelo conhecimento de que os astrónomos árabes tinham apresentado um sistema similar em alguns dos seus detalhes dois ou três séculos antes.17 E este facto é relevante independentemente de Copérnico ter ou não tido conhecimento das concepções árabes (isto é objecto de disputa), embora se pudesse dizer que é menos relevante no caso de ele não ter tido conhecimento delas do que se o teve.
Isto sugere, portanto, que devemos estar preparados, ao descrever a heurística de uma obra, para incluir factos que o artista desconhece, se se considerar que esses factos são relevantes para a apreciação do que o artista realizou. A heurística diz-nos como essa realização veio a ocorrer, e em que circunstâncias relevantes. Não quero ser mais específico do que isto na minha caracterização geral da noção de uma heurística. Pois há muito trabalho a fazer em decidir exactamente que géneros de factos são relevantes para uma apreciação da realização do artista. Acerca disto haverá desacordo, e os que discordarem a este respeito discordarão quanto ao modo como se deve caracterizar a heurística de obras particulares. Digo apenas o seguinte: o que quer que considere relevante deste modo, tem de considerar como intrínseco à própria obra.
Pode-se afirmar que se tomarmos em consideração factos que o artista desconhece, o domínio de coisas que podem ser tomadas em consideração na heurística da obra expandir-se-á intoleravelmente. Como podemos excluir factos acerca das culturas dos planetas distantes? E quanto aos acontecimentos do futuro? Uma obra pode ter grande influência nas obras do futuro, ou pode não ter influência alguma. Descrever a heurística da obra começa a assemelhar-se a escrever a história do universo. Mas penso que temos uma razão para ignorar estes factos acerca do contexto mais lato da obra. São factos acerca dos quais o artista não podia ter tido conhecimento. A razão por que pode ser relevante afirmar que uma obra de Brahms é semelhante a uma de Liszt é que Brahms poderia ter tido conhecimento dela, mesmo que não o tenha tido de facto (tal como Copérnico poderia ter tido conhecimento do trabalho dos seus predecessores árabes). Mas não estamos em contacto com os planetas distantes, e nenhum artista pode saber de antemão que influência a sua obra terá. É a informação que em princípio está disponível ao artista que é relevante para avaliar a sua realização. “Em princípio” aqui é, evidentemente, vago. Mas penso que haverá amplo acordo acerca de como se há-de aplicar a ideia a casos particulares.
As obras de arte por vezes têm aquilo a que podemos chamar “propriedades referenciais”. O retrato do Duque de Wellington por Goya representa o Duque. O Martírio de São Pedro, de Caravaggio, representa a crucifixão de São Pedro. Em Guerra e Paz de Tolstoi, Napoleão é referido pelo nome. A Abertura 1812 de Tchaikovsky faz referência à derrota de Napoleão na Rússia. Os modos como a pintura, a literatura, e a música referem pessoas e acontecimentos reais diferem muito; não temos qualquer teoria bem desenvolvida que explique as diferenças e semelhanças entre estes modos. Não obstante, parece intuitivamente claro que obras de todos estes géneros (entre outros) têm de facto relações importantes com coisas no mundo real.
A ideia de que têm pode suscitar uma objecção à teoria aqui proposta. Pois quaisquer que sejam as semelhanças entre a obra de Tolstoi e a obra do seu gémeo na Terra Gémea, estas obras não podem ter as mesmas propriedades referenciais. Tolstoi refere-se a Napoleão, mas o Tolstoi Gémeo não se lhe refere; refere-se antes a um habitante da Terra Gémea a quem os habitantes da Terra Gémea chamam “Napoleão” (os terrestres e os gémeo-terrestres não usam o mesmo nome quando dizem “Napoleão”; usam dois nomes distintos mas homofónicos). Pelo que as suas obras têm diferentes propriedades referenciais. Não podem, portanto, ser a mesma obra. Assim se podia argumentar.
Ora, podemos concordar que as propriedades referenciais são propriedades da própria obra, ou podemos discordar. Suponha-se que concordamos. Então para obras que têm propriedades referenciais não seremos capazes de apontar para casos da Terra Gémea como casos da múltipla composição dessas obras. Mas isto nada faz para excluir os casos da Terra Gémea como casos de composição múltipla de obras que não têm propriedades referenciais — e algumas obras seguramente não fazem referência a seja o que for de real (e.g., histórias acerca de sociedades imaginárias em galáxias sem localização específica, pinturas abstractas e música não programática). Se estes fossem os únicos casos a que podia apelar, ainda assim sustentariam a minha posição. Pois afirmo apenas que a múltipla composição da mesma obra não é excluída por considerações gerais acerca da natureza das obras de arte. Além disso, os casos da Terra Gémea são apenas um género vívido de exemplo de composição múltipla. Se não nos estão disponíveis em ligação com obras que têm propriedades referenciais, pode haver outro género de exemplos que podíamos considerar — exemplos fantásticos, sem dúvida, mas não mais fantásticos do que os casos da Terra Gémea. Assim dois autores, trabalhando independentemente um do outro na mesma comunidade, podiam produzir obras lexicalmente idênticas, com o mesmo género de intenções artísticas, influenciados pela mesma tradição literária, fazendo as mesmas referências ao mundo real. Se tudo o que diríamos ao descrever a realização de um se pudesse afirmar do outro, defendo que estariam a produzir a mesma obra.
Podíamos, por outro lado, discordar de que as propriedades referenciais são propriedades da obra, afirmando ao invés que se trata de aspectos da composição da obra algo irrelevantes esteticamente. Na verdade, esta é a linha que me inclino a adoptar. Inclino-me a afirmar que não é uma característica esteticamente relevante de Guerra e Paz de Tolstoi que este refira a Napoleão usando o nome “Napoleão”; porém, concedo que é ou pode ser um facto esteticamente relevante acerca da obra o autor referir uma pessoa real cujas características reais têm certas relações com as actividades da personagem descrita no livro. Mas isso, evidentemente, não distingue entre a obra de Tolstoi e a do Tolstoi Gémeo; pois tudo o que de qualitativo um possa afirmar acerca das actividades de Napoleão, pode ser afirmado acerca das actividades do Napoleão Gémeo. Mas seria uma distracção da nossa preocupação presente argumentar aqui a favor disto. Se estou certo no que afirmei no parágrafo anterior, não importa para que lado pendemos.
Uma vantagem da teoria que propus está em ser ontologicamente conservadora. Não temos de acreditar em mais géneros de entidades em resultado de se aceitar os meus argumentos do que fazíamos antes de os aceitar. Coloco as obras numa categoria ontológica familiar: tipos de acção. Não postulo uma categoria de coisas nova e ontologicamente obscura, como “estruturas indicadas”, para resolver o problema do que são as obras de arte. Claro que a natureza das acções-tipo não é transparente, mas pelo menos são algo que temos já razão para sancionar. Há, evidentemente, diferentes modos de explicar as acções-tipo; platonistas, nominalistas, etc. Estas não são questões com que temos de nos preocupar aqui. Podemos passar as questões acerca da natureza última dos tipos de acção ao comité de filósofos que trabalha na teoria da acção e dos acontecimentos.
Podemos ver agora que, ao passo que o artista não cria a obra, tão-pouco a descobre. A obra é o tipo de acção que ele realiza ao descobrir a estrutura da obra. Pelo que em vez de criar ou descobrir a obra, o artista executa-a. Todavia, usarei a expressão “pôr em acto” para o que o artista faz; afirmar que o artista executa a obra, embora seja verdade, convida a uma confusão com o que, digamos, a orquestra faz quando produz uma instância da obra. Trata-se de duas coisas muito diferentes. A orquestra instancia o acontecimento-tipo tocar da estrutura sonora S; o compositor instancia o acontecimento-tipo descobrir S via H. Isto leva-nos a outro ponto importante.
Afirmei que é convencional pensar nas obras musicais e literárias como tipos de que pode haver muitos espécimes, sendo estes espécimes cópias ou execuções da obra. Mas agora vemos que esta perspectiva não pode estar correcta. Segundo a teoria aqui apresentada, as instâncias da obra não têm a relação adequada com a própria obra para contar como espécimes da mesma. Um espécime de um tipo tem de esgotar as características do tipo. Não pode haver características essenciais do tipo que não sejam exibidas por qualquer espécime correcto deste. Mas é patente que isto não sucede quando consideramos a relação da obra com as suas instâncias. A obra tem características importantes de que não se pode ter conhecimento simplesmente sendo exposto a uma cópia ou execução correcta da mesma. Para compreender a heurística que é parcialmente constitutiva da obra, o leitor tem de saber algo da história da arte. E a história de uma obra não sobressai numa inspecção, por muito rigorosa, de uma instância da obra.
Todavia, não é difícil ver por que as pessoas se têm inclinado tanto a assimilar a relação entre obra e instância com a relação entre tipo e espécime. Pois a obra é um tipo, e as suas instâncias são espécimes. Mas o tipo de que as instâncias são espécimes não é a própria obra; é o padrão ou estrutura da obra.
Uma objecção que se podia fazer a esta proposta é o facto de não se ajustar à nossa prática comum de apreciação. Afinal, dir-se-á, muitas pessoas apreciam as obras quando nada sabem acerca das suas histórias. Mas a apreciação não é um caso de tudo ou nada. Não se tem de conhecer todos os factos relevantes acerca da história de uma obra de modo a retirar alguma coisa que seja da obra. E no sentido em que falo na história de uma obra, todos nós normalmente sabemos algo da história da obra; sabemos que foi produzida por um ser humano em vez de por um marciano, por exemplo, e isto é sem dúvida conhecimento relevante — não menos relevante, em todo o caso, por ser tomado por garantido. Se em rigor nada soubéssemos acerca do pano de fundo histórico de uma obra, então penso que estaríamos numa situação em que seríamos completamente incapazes de a apreciar; mas essa sem dúvida não é a situação em que normalmente nos encontramos. E tal como as pessoas apreciam obras até certo ponto com base numa compreensão muito parcial da história da obra, também apreciam a obra com base numa percepção muito limitada da sua estrutura. O crítico experiente pode captar e reter detalhes da estrutura sonora de uma obra musical de um modo que ultrapassa em muito a capacidade do ouvinte comum, de quem se pode ainda afirmar que aprecia a obra até certo ponto. Pelo que penso haver, de facto, a assimetria entre a apreciação da estrutura e a apreciação da história pressuposta por esta objecção.
Neste ensaio, não procurei elaborar a teoria por referência a exemplos históricos detalhados. Mas, neste ponto, penso que é apropriado fazer uma observação histórica geral. Muito do que aconteceu no desenvolvimento da arte durante o século XX, particularmente nas artes visuais, pode ser descrito como uma revolta contra a estética tradicional. O desenvolvimento da arte inteiramente não representacional é um exemplo óbvio. Mas vemos também uma tentativa de reajustar a atenção estética, afastando-se das propriedades puramente visuais da obra, e dirigindo a atenção ao invés para a actividade do artista. Exemplos notórios disto são Fonte, de Duchamp, um urinol comprado e exibido pelo artista, e Desenho de De Kooning Apagado, de Rauschenberg, uma superfície da qual um desenho por De Kooning foi cuidadosamente apagado.18 Consideradas do ponto de vista das suas qualidades pictóricas, obras como estas parecem muito pobres. O seu interesse reside na actividade que leva a estes objectos serem apresentados.
Muitos consideram tais obras entediantes e egocêntricas. De um certo ponto de vista, são-no. Mas se levarmos a sério a hipótese deste capítulo, há um modo mais caridoso de as compreender. Podem ser vistas como tentativas de dirigir a nossa atenção para uma característica descurada mas importante da obra: a sua heurística. Nestas obras, a heurística é muito mais importante do que o padrão resultante. Dão ênfase ao facto de propriedades pictóricas das obras subdeterminarem radicalmente a heurística da obra. Apenas olhando para a Fonte não sabemos se foi cuidadosamente feita pelo artista ou meramente comprada numa loja de sanitários. E uma folha de papel em branco pode nunca ter tido algo desenhado na sua superfície. Talvez a lição que devemos retirar de obras como estas não seja a de as qualidades estéticas tradicionalmente valorizadas da beleza e forma não serem mais relevantes para a arte. Trata-se antes de essas qualidades não esgotarem o que é valioso na obra. Na verdade, qualidades como a beleza e a importância da forma não podem ser identificadas à parte de hipóteses acerca da natureza da actividade do artista. O que retiro destas obras é uma afirmação da perspectiva de que a própria obra é um tipo de actuação. E é a favor disso que estou a argumentar aqui.
Note-se que apresentámos uma condição necessária mas não suficiente para algo ser uma obra de arte. Alguém pode, por exemplo, chegar a uma certa sequência de palavras por meio de uma certa heurística e ao fazê-lo pôr em acto uma acção-tipo que não é uma obra de arte. Isto sucederá se, por exemplo, o texto em causa for o de um artigo de filosofia ou um manual de instruções de um computador. Podemos colocar a questão de um modo que mais uma vez relembra a discussão que Frege fez do conceito de número. Com base na HTA, podemos afirmar que as obras A e B são idênticas só se têm a mesma heurística e o mesmo padrão ou estrutura. Mas não podemos apelar a este critério para definir o conceito de obra de arte; não podemos afirmar que as obras de arte são simplesmente aquelas coisas que identificamos e distinguimos deste modo. Pois haverá acções-tipo que não são obras de arte, mas para as quais este mesmo critério de identidade é apropriado.
A nossa teoria é que uma obra de arte é um tipo de acção, com dois elementos identificadores: uma estrutura e uma heurística. Na literatura, a estrutura é uma sequência de palavras-tipo, na música, uma sequência de sons-tipo. Mas e quanto às artes visuais? Se há que considerar uma pintura como uma obra de arte que se presta à nossa análise temos de decidir quais são os seus elementos constitutivos. Não há dificuldade particular com a heurística; tal como qualquer outro tipo de artista, o pintor segue um certo caminho para o resultado final que produz. Seja esse caminho qual for, determinará a heurística da sua obra. Haverá algo análogo a uma estrutura que seja o resultado final das actividades do pintor? Podemos dizer que há; aquilo a que o pintor chega é um determinado padrão visual, algo que é instanciado pela tela que o pintor pinta. A estrutura do pintor é uma estrutura de formas coloridas, e neste sentido duas obras de arte visual podem ter a mesma estrutura sem serem a mesma obra (como no exemplo que Kendall Walton dá de Guernica e o seu símile imaginário (Walton 1970): estas são obras que diferem do ponto de vista da sua heurística).
Esta sugestão leva-nos a uma segunda hipótese: a Hipótese da Multiplicidade de Instâncias (HMI). Pois se consideramos que a obra é constituída por uma heurística e um padrão visual abstracto, então a tela do artista, com tinta distribuída na sua superfície, não pode ser constitutiva da obra. É meramente uma instância da mesma. E um momento de reflexão convencer-nos-á de que a tela do artista não podia ser constitutiva da obra. Pois se o fosse, Picasso e o Picasso Gémeo na Terra Gémea não podia pôr em acto a mesma obra, pois as suas acções usam telas diferentes. As telas de Picasso e de Picasso Gémeo são ambas instâncias da obra, pelo que na situação que imaginamos há duas instâncias dessa obra. As pinturas (e, pelo mesmo raciocínio, as esculturas) podem ter mais do que uma instância.
Alguém que considere a pintura e a escultura como artes singulares (artes em que a obra é idêntica a um objecto físico particular) poderá ter uma de duas reacções. Pode simplesmente rejeitar a HTA; e talvez se possa mostrar que há razões a favor disso. Por outro lado, poderá aceitar a HTA, afirmando que não entra em conflito com o que as pessoas por norma têm em mente quando dizem que a pintura é uma arte singular. Certo, dir-se-á talvez, que na situação bizarra em que a Terra Gémea existe, a Guernica de Picasso e a Guernica Gémea do Picasso Gémeo são instâncias da mesma obra; isso não mostra que as pinturas são reprodutíveis do mesmo modo que os romances o são. Pois a HTA não implica que alguém que produz uma cópia — mesmo uma cópia “perfeita” — de Guernica produziu outra instância da obra. É esta última afirmação que o dualista está realmente preocupado em negar, e há seguramente razões que parecem cogentes para o negar.
A decidirmos esta questão apropriadamente, penso que temos de examinar com cuidado os argumentos que se tem apresentado a favor de a pintura ser uma arte singular.
À luz dos argumentos aqui apresentados, o que devemos dizer acerca da sobreveniência das propriedades estéticas? Pode parecer natural afirmar que o valor estético é sobreveniente relativamente às propriedades pictóricas juntamente com a heurística (generalizando do modo óbvio para as artes não visuais).
Mas tal afirmação de sobreveniência reduz-se a uma trivialidade. Pois suponha-se que afirmamos que se duas obras têm as mesmas propriedades pictóricas e a mesma heurística então terão o mesmo valor estético (garantindo também aqui o género apropriado de necessitação). Então afirmámos simplesmente que se as obras são estritamente idênticas, terão o mesmo valor estético, e isso é obviamente verdade. Afirmei que as obras se identificam em termos da sua aparência visual e da sua heurística; não é possível que obras distintas sejam a mesma em ambos estes aspectos. Para ter interesse, uma tese de sobreveniência estética deve a) especificar condições cuja co-exemplificação garanta o mesmo valor estético, e b) especificar condições que obras numericamente distintas sejam capazes de satisfazer. Mas não conheço semelhante tese.
Ao dizer isto não pretendo, evidentemente, excluir a possibilidade de que, ocasionalmente, obras distintas possam ter o mesmo valor. O que afirmo é que não há modo de especificar de antemão uma condição suficiente para isto. Suspeito de que a questão da sobreveniência em estética possa vir a mostrar-se uma distracção.19
Quero regressar à questão levantada na secção 10 a respeito das propriedades essenciais das obras de arte. Poderia a Sonata Hammerklavier ter tido uma estrutura sonora diferente da estrutura sonora que efectivamente tem? Poderia Emma ter tido uma sequência de palavras distinta da sequência de palavras que efectivamente tem? Poderiam uma ou outra destas obras ter tido histórias distintas das suas histórias efectivas, na medida em que a heurística de cada uma destas obras poderia também ter sido diferente? Intuitivamente, queremos respostas positivas a todas estas perguntas. Pelo menos, sentimos que a estrutura ou história de uma obra poderiam ter sido ligeiramente diferentes do que na realidade são. Mas parece que não estou em condições de argumentar que esta intuição está correcta. Pelo contrário, é uma consequência da minha teoria que a estrutura e heurística de uma obra são os seus elementos identificadores; as coisas das quais retira a sua própria identidade; mude-se uma ou outra, ainda que do modo mais insignificante, e ter-se-á mudado a própria obra.
Todavia, argumentarei que há uma maneira de tornar razoável a nossa intuição no enquadramento da minha teoria. Para compreender como, precisamos de introduzir algumas ideias de lógica filosófica.
Seguindo Kripke, introduzamos a distinção entre designadores rígidos e não rígidos.20 Um designador é rígido se designa a mesma coisa em todos os mundos possíveis em que designa alguma coisa. De contrário, é um designador não rígido. Por exemplo, parece intuitivamente correcto afirmar que “Barack Obama” denota o mesmo indivíduo (Barack Obama) em todos os mundos possíveis em que denota alguma coisa, mas que “Presidente dos Estados Unidos” denota diferentes indivíduos em diferentes mundos (e em momentos diferentes no mesmo mundo). A primeira expressão é rígida, a segunda não é rígida. Agora faço a seguinte afirmação: os nomes de obras de arte, do modo como normalmente funcionam, não são rígidos. Uma expressão como “A Mona Lisa” não denota a mesma coisa em cada mundo possível. De igual modo para nomes de obras musicais e literárias. Como ocorre tal coisa é o que passo agora a explicar.
Argumentei que a heurística de uma obra de arte faz parte da identidade da própria obra. Ora, será imediatamente visível que ao especificar a heurística de uma obra precisamos de especificar, entre outras coisas, a influência de outras obras de arte sobre o artista. Assim a caracterização de muitas obras de arte envolverá a referência a outras obras, e não é claro que isto possa ser feito de um modo que evite a circularidade. (Suponhamos que dois artistas produzem simultaneamente duas telas distintas. O progresso de uma pode influenciar o progresso de outra, e vice-versa.) Todavia, se seguirmos uma sugestão de David Lewis, penso que se pode evitar a circularidade.21 Lewis notou um problema semelhante na teoria causal da mente: caracterizamos os estados mentais pelos seus papéis causais. Mas parte do papel causal de um dado estado mental podem ser as suas relações causais com outros estados mentais. Mais uma vez, a circularidade ameaça. De modo a resolver o problema (e porque, por outras razões, ele pensa que é correcto fazê-lo) Lewis introduziu um método geral para definir aquilo a que chama “termos teóricos”: termos introduzidos por meio de um vocabulário anteriormente compreendido. Lewis sugere que podemos definir termos teóricos do seguinte modo. Começamos com uma teoria, T, que contém uma série de termos como t1, …, tn. Permutando estes termos com variáveis x1, …, x2, e prefixando uma sequência de quantificadores existenciais à frente da fórmula resultante obtemos a “frase de Ramsey” de T:
∃x,..., ∃xnT[x1, …, xn].
Podemos então definir cada termo teórico do seguinte modo:
t1 = ιy1 ∃2, …, ∃yn ∀x, …, ∀xn(T[x1, …, xn] ≡ y1 = x1 & … & yn = xn).
E assim para cada ti.
Os termos teóricos referem assim aquelas coisas que formam a frase única que satisfaz T[x1, …, x2]. Em qualquer mundo em que essa fórmula seja exclusivamente satisfeita, os termos teóricos referem. Num mundo em que a fórmula não seja exclusivamente satisfeita porque não há sequência que a satisfaça, pode-se ainda entender que os termos t1, …, tn referem, desde que haja uma sequência única de coisas que se aproxime de satisfazer T[x1, …, xn]. Se nenhuma sequência se aproximar, então os termos não referem nesse mundo. Lewis aplica então este método à tarefa de definir termos que denotam estados mentais, desenvolvendo assim uma teoria causal da mente.22
Agora podemos aplicar estas ideias ao nosso problema presente do seguinte modo. Seja T a nossa teoria histórica global da arte; a teoria que nos fala acerca de todas as obras de arte que já existiram, quais são exactamente as suas estruturas, quais são exactamente as suas heurísticas. Esta é uma teoria que os historiadores da arte gostariam de ter. O que têm são aproximações rudimentares, mas suponhamos, em prol da simplicidade, que têm T. T contém nomes de obras de arte, como Guernica, Sonata Hammerklavier, Emma. Algumas expressões que usamos para referir obras, tais como “a Quinta Sinfonia de Beethoven”, parecem descrições em vez de nomes no sentido habitual. Mas pressuporei que expressões como a que acabo de mencionar são usadas para captar uma obra com uma determinada estrutura sonora e heurística, em vez de seja qual for a obra que surge em quinto lugar na lista cronológica das sinfonias de Beethoven. Se a todos estes nomes substituirmos variáveis ligadas por quantificadores existenciais iniciais obtemos uma afirmação que poderá dizer que há uma obra x, e uma obra y, e uma obra z, e x tem a estrutura sonora S e y tem a estrutura sonora R e z tem a estrutura sonora U e x influenciou y e y influenciou z. Esta é a frase de Ramsey de uma teoria histórico-musical imaginária (e grosseiramente ultra-simplificada). A frase de Ramsey diz que há uma série de coisas que ocupam uma série de papéis histórico-musicais. As coisas que são obras musicais são, portanto, as coisas que desempenham estes papéis.
Agora, a nossa hipótese, a HTA, pode ser interpretada como a afirmação de que as coisas que ocupam estes diversos papéis são todas acções-tipo. (Pensemos em T como algo que integra as nossas restrições — de 1 a 5). T especifica a história da arte do mundo efectivo; chamemos “classe de mundos T” à classe de mundos com a mesma história da arte que o mundo efectivo. (Os mundos T são os mundos em que T é verdadeira.) Ora, relativamente à classe de mundos T, uma expressão como “A Mona Lisa” será rígida; denotará a mesma acção-tipo em cada mundo T. Isto é fácil de ver. T especifica uma estrutura e uma heurística para cada obra. Em qualquer mundo em que T é verdadeira, “A Mona Lisa” denotará aquela acção-tipo com a estrutura e heurística especificada por T. Mas a classe de acções-tipo que podem ser obras de arte — acções-tipo com a forma [x, S, H, D, t] — são exclusivamente identificadas em termos de uma estrutura e uma heurística. Assim, “A Mona Lisa” denota a mesma coisa em cada mundo T. Haverá, por outro lado, mundos em que “A Mona Lisa” não denota coisa alguma, porque nesses mundos ou há dois pretendentes igualmente bons ao papel desempenhado pela Mona Lisa na nossa história da arte, ou porque nada há que se aproxime de desempenhar esse papel. Mas — e este é o ponto importante — haverá mundos em que “A Mona Lisa” denota algo além do que denota no mundo efectivo. Estes estão entre os mundos em que T se revela falsa, mas não tão irremediavelmente falsa que não possamos identificar nesse mundo uma sequência de objectos que se aproxime de desempenhar os papéis histórico-artísticos desempenhados¬ no mundo efectivo pelas obras de arte com que estamos familiarizados.
Assim, podemos afirmar que, embora os nomes de obras de arte não sejam rígidos, porque não denotam as mesmas coisas em cada mundo possível, são “quase rígidos”. Em cada mundo possível no qual as coisas correm sem sobressaltos (em que T é verdadeira) denotam a mesma acção-tipo.23 Em alguns outros mundos onde as coisas não correm tão suavemente, denotam diferentes acções-tipo. Assim há um mundo em que “A Mona Lisa” denota uma acção-tipo que tem uma estrutura ou heurística (ou ambas) que se desviam ligeiramente da estrutura ou heurística possuídas pela acção-tipo referida por aquela expressão no mundo efectivo. A quantidade de desvio possível é, a meu ver, globalmente determinada. Considere-se algo que parece um pouco diferente da Mona Lisa. Num mundo, m, esta coisa pode não ser o referente de “ A Mona Lisa”, porque há outros aspectos em que m se desvia demasiado do mundo efectivo para que possamos identificar uma sequência de acções-tipo capaz de desempenhar papéis que estão (em geral) próximos dos especificados na história da arte do mundo efectivo. Por outro lado, haverá um mundo u em que algo que se parece ainda menos com a Mona Lisa é o referente de “A Mona Lisa”, porque u é um mundo que, noutros aspectos, se aproxima muito de ser um mundo T.
Isto, segundo penso, é o resultado que queremos. Ou seja, os nossos juízos intuitivos sobre identidade transmundial para obras são sensíveis a características globais da situação contrafactual que consideramos. Seja m um mundo em que só uma obra de arte é alguma vez produzida; uma que se parece bastante com a Mona Lisa. Seria o referente de “A Mona Lisa”? Parece duvidoso. Mas se mudamos a nossa especificação de m para o tornarmos cada vez mais próximo dos mundos T, ficamos mais confiantes em afirmar que este objecto é o referente de “A Mona Lisa”.
Assim vemos que perguntas como “Podia a Mona Lisa ter uma aparência diferente da que efectivamente tem?” estão sujeitas a uma ambiguidade de re / de dicto. Se a pergunta é “Há um mundo possível em que a coisa que efectivamente ocupa o papel da Mona Lisa tem uma aparência diferente da que tem no mundo efectivo?”, temos uma interpretação de re. A resposta, então, é não: aquela coisa particular preserva as suas propriedades pictóricas em todos os mundos em que existe. Se a pergunta é, por outro lado, “Há um mundo possível em que a coisa que ocupa o papel de Mona Lisa nesse mundo tem uma aparência diferente da aparência da coisa que ocupa o papel de Mona Lisa no mundo efectivo?”, temos uma interpretação de dicto. A resposta então é sim: o papel de Mona Lisa é ocupado por coisas diferentes em mundos diferentes. Estas coisas não têm todas as mesmas propriedades pictóricas. (Mais apropriadamente, estas coisas (acções-tipo) não têm todas o mesmo padrão identificador.)
Resumindo, então, a teoria que proponho permite explicar a nossa intuição de que determinadas afirmações modais, como “A Mona Lisa poderia ter tido uma aparência um pouco diferente da que efectivamente tem”, são verdadeiras. Pois, segundo esta teoria, haverá mundos em que o referente de “A Mona Lisa” difere realmente um pouco, em aparência, da obra efectiva. E isto não porque as acções-tipo que identifico com as obras não tenham as suas estruturas essencialmente — têm-na — mas porque os nomes das obras de arte não são rígidos.
Isto é apenas uma breve digressão sobre a questão da semântica para termos que denotam obras de arte. Há problemas consideráveis no desenvolvimento detalhado desta teoria. Não seria apropriado tentar resolver todos esses problemas aqui.