1 de Novembro de 2016   Dicionário Escolar de Filosofia

Dicionário escolar de filosofia

Organização de Aires Almeida

I

idealismo

Vulgarmente diz-se que uma pessoa é idealista quando se bate por ideais e orienta as suas acções em função deles. Mas o significado filosófico do termo é substancialmente diferente. Em filosofia chama-se “idealista” a qualquer doutrina que afirme que a natureza última da realidade é mental, opondo-se ao realismo. Isto tanto pode querer dizer que os objectos físicos não existem a não ser como objectos para uma mente, ou que são apenas conteúdos mentais, ou que são algo intrínseca e essencialmente mental. O fundador do idealismo foi o filósofo irlandês George Berkeley para quem só existem dois tipos de coisas: mentes e ideias. Os chamados “objectos físicos” não passam, de acordo com Berkeley, de impressões do sujeito capaz de sentir. Assim, a maçã que temos diante de nós é apenas o conjunto das sensações de cor, sabor, odor, forma, textura, etc., que estão perante a nossa mente quando a percepcionamos. Daí a célebre afirmação de Berkeley de que o seu esse (existência) é percipi (ser percepcionada), o que equivale a dizer que só as sensações são reais. Mas as sensações nada mais são, segundo Berkeley, do que conteúdos mentais ou ideias. Daí o nome “idealismo” e a conclusão de que os objectos não existem fora de alguma mente que os percepcione. O idealismo de Berkeley tem um cariz marcadamente ontológico (ver ontologia), na medida em que defende que toda a realidade é mental. Outra forma de idealismo, de pendor mais epistemológico (ver epistemologia), é o chamado “idealismo transcendental” de Kant. Kant admite a existência de uma realidade independente da mente, mas afirma que dela nada podemos saber. É idealista na medida em que defende que o mundo tal como o conhecemos é o produto das leis que o sujeito impõe aos objectos quando os percepciona. Os objectos da experiência não são, assim, entidades independentes. Essas leis fazem parte do que Kant designa como “estrutura transcendental” do sujeito. Daí o nome por que é conhecido este tipo de idealismo. Há ainda um terceiro tipo de idealismo, o idealismo absoluto, defendido por Fichte (1762–1814), e sobretudo por Hegel. Para Hegel toda a realidade é expressão do Espírito Absoluto, que toma consciência de si exteriorizando-se e manifestando-se nos objectos físicos. Aquilo a que chamamos “realidade exterior” é a expressão concreta de uma entidade espiritual única e universal. (Aires Almeida)

ideia

O termo tanto pode, como em Platão, designar realidades objectivas, inteligíveis (ver inteligível), eternas, imutáveis e transcendentes (ver transcendente), que são modelos e causas do mundo sensível, como, sobretudo a partir do séc. XVII com Descartes, Locke, Berkeley e Hume, designar quaisquer conteúdos mentais subjectivos (percepções, recordações, sonhos, pensamentos), que são vistos frequentemente como representações (ver representação) dos objectos do mundo exterior. Isto origina vários problemas interessantes, como o de saber se as ideias são representações adequadas da realidade ou se conhecemos alguma coisa para além das ideias. (Álvaro Nunes)

ideias inatas

Conteúdos mentais anteriores a qualquer experiência e que dela são independentes. Trata-se de ideias com as quais já nascemos e que, portanto, não são adquiridas. Descartes deu o exemplo das ideias de Deus, de infinito, de imortalidade e de perfeição, as quais defendia que nada de empiricamente observável pode ter originado. Estas ideias constituem, alegadamente, um tipo de conhecimento que veio a chamar-se conhecimento a priori. A existência ou não de ideias inatas esteve no centro das disputas entre o racionalismo e o empirismo. Empiristas como Locke e Hume opõem-se à afirmação de que há ideias inatas ou conhecimentos a priori. Kant defende que há noções a priori, mas que tais noções são apenas formais, não podendo, só por si, ser consideradas conhecimento. Mas hoje em dia a discussão entre empiristas e racionalistas não se foca em torno desse aspecto, mas em torno do a priori. O conhecimento a priori é diferente do conhecimento inato: o primeiro é aquele que adquirimos pelo pensamento apenas, o segundo não é adquirido, nascemos com ele. (Aires Almeida)

identidade

Uma afirmação como “Sócrates é Platão” exprime uma identidade — falsa, neste caso. Uma identidade com a forma lógica “m = n” só é verdadeira caso os nomes simbolizados por m e n denotem o mesmo particular: “Véspero é Vénus” exprime uma identidade verdadeira porque os dois nomes denotam o mesmo particular. Chama-se “numérica” a esta identidade, que só ocorre entre um particular e ele próprio. Assim, qualquer frase com a forma “n = n” é logicamente verdadeira. Chama-se por vezes “princípio ou lei da identidade” a esta verdade lógica.

Distingue-se a identidade numérica da identidade qualitativa, que diz respeito à completa partilha de propriedades. Por exemplo, quando alguém diz que o António é igual ao Miguel, não está a dizer que eles são a mesma pessoa, mas que têm muitas características (ou propriedades) em comum. É um problema filosófico em aberto saber se dois objectos numericamente distintos podem todavia ser qualitativamente idênticos, isto é, se podem ter exactamente as mesmas propriedades.

Não se deve pensar que todas as frases como “F é G” exprimem identidades, pois podem também exprimir predicações: “Platão é alto” não exprime a identidade entre Platão e ser alto, mas antes a ideia de que Platão tem a propriedade de ser alto. Ver também ser. (Desidério Murcho)

identidade pessoal

As pessoas persistem no tempo: existem em muitos momentos diferentes. Por exemplo, é comum considerar-se que eu sou hoje a mesma pessoa que era quando tinha apenas dois anos de idade. Esta identidade aparente levanta contudo problemas filosóficos óbvios, pois não tenho hoje quase nenhuma das propriedades mais salientes que tinha aos dois meses. O que faz cada um de nós ser a mesma pessoa ao longo do tempo, apesar das mudanças físicas e psicológicas que se vão acumulando? Uma possibilidade é que a nossa identidade ao longo do tempo se deva essencialmente à continuidade corporal: ao facto de termos o mesmo corpo ao longo de toda a vida. Outra possibilidade é a identidade pessoal consistir apenas na continuidade psicológica: no facto de termos estados mentais (como memórias, intenções, crenças e planos) que se mantêm ao longo do tempo ou que se relacionam causalmente entre si. O que aconteceria, por exemplo, se o nosso corpo fosse destruído mas transplantassem o nosso cérebro para um novo corpo? Quem defende o critério da continuidade corporal dirá que morremos com a destruição do corpo. Quem defende o critério da continuidade psicológica afirma, pelo contrário, que poderíamos viver num novo corpo ou, talvez, até num suporte não biológico. Todas as teorias tradicionais enfrentam problemas espinhosos. No caso da continuidade psicológica, temos o chamado “problema da bifurcação”: a possibilidade teórica de criar réplicas co-ocorrentes da mesma pessoa, ambas em continuidade psicológica com o indivíduo original, o que levanta a pergunta, “Qual delas é o “verdadeiro" indivíduo?”. A teoria da continuidade do corpo enfrenta a objecção óbvia de que sobrevivemos a transformações qualitativas radicais nos nossos corpos. Ver identidade, tempo. (Pedro Galvão)

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Dúvidas?

ignoratio elenchi

Expressão latina por que também é conhecida a falácia da conclusão irrelevante. Trata-se de um argumento em que se prova uma coisa diferente do que está em causa. Veja-se o argumento: “É através dos impostos que o governo arranja dinheiro para ajudar os cidadãos mais carenciados; mas, dado que ainda há muitas pessoas com carências, o governo deve aumentar os impostos”. Este argumento não prova o que pretende, ou seja, que as carências dos cidadãos se resolvam com a subida de impostos. Pode ser até que o aumento de impostos coloque em situação de carência algumas pessoas que não estavam nessa situação. (Aires Almeida)

igualdade

Na filosofia política, atribuir a máxima importância à igualdade é defender o igualitarismo — a perspectiva segundo a qual os bens sociais devem ser distribuídos tão equitativamente quanto possível (ver justiça). Advogar a igualdade de oportunidades é pensar que a posição que as pessoas ocupam na sociedade deve resultar de uma competição justa entre indivíduos. Em ética, usa-se frequentemente a noção de igualdade para exprimir a ideia de que todas as pessoas têm a mesma importância ou estatuto moral — na ética deontológica de Kant, sustenta-se que todos nós devemos ser tratados como fins em si (ver imperativo categórico), e os utilitaristas, como Hare ou Singer, afirmam que os interesses de qualquer pessoa (ou animal capaz de sofrer) merecem uma igual consideração. Nenhuma destas teorias morais implica o igualitarismo político. Ver Rawls, utilitarismo. (Pedro Galvão)

iluminismo

Movimento cultural que floresceu na Europa do séc. XVIII. A confiança resoluta na racionalidade humana é o traço mais saliente dos pensadores deste movimento. Os iluministas insurgiram-se contra o pensamento supersticioso associado à religião, advogaram a difusão do conhecimento científico e esforçaram-se por promover o progresso humano não só em questões teóricas, mas também em questões políticas e morais. Hume e Kant contam-se entre os filósofos iluministas mais influentes. (Pedro Galvão)

imanente

1. O que faz parte da própria natureza de uma coisa ou pessoa, como sua característica interna ou intrínseca. Opõe-se a transcendente, isto é, o que é exterior ou ultrapassa essa coisa ou pessoa.

2. O panteísmo concebe Deus como um ser imanente, pois identifica-o com o próprio mundo ou natureza. Pelo contrário, para o teísmo Deus é transcendente, pois é exterior ao mundo por si criado.

3. Diz-se que a crítica a uma teoria é imanente quando se apoia nas afirmações da própria teoria criticada. (Aires Almeida)

imediatez/mediação

São conceitos indispensáveis para a compreensão do pensamento de Hegel. A imediatez é a potencialidade, o estado do que ainda não se desenvolveu e actualizou. A mediação é a condição de actualização, aquilo sem o que uma coisa não se pode realizar. O mediato é o que está entre a apresentação imediata e incompleta de uma coisa e o momento da sua actualização completa. Na transição, ou devir, a negação desempenha um papel importante. A semente é a maçã sob a sua forma imediata (abstracta). Irá superar a sua imediatez transformando-se em flor e fruto, isto é, negando-se como semente. A maçã é resultado de um processo que nega mas conserva como necessários os momentos ultrapassados (a semente, a flor). (Luís Rodrigues)

imperativo categórico

Na ética deontológica de Kant, o imperativo categórico é o princípio ou lei moral fundamental. Tal princípio é categórico, por oposição a hipotético, porque se nos apresenta como uma obrigação absoluta ou incondicional. Kant pensava que, como conhecemos este princípio a priori (ver a priori/a posteriori), temos de o aceitar sejam quais forem os nossos desejos ou interesses particulares. Há várias maneiras de formular o imperativo categórico. Uma das fórmulas capta uma exigência de universalidade: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. Segundo esta fórmula, é errado agir segundo máximas que não possamos querer universalizar — se não podemos querer que todas as pessoas procedam de acordo com uma certa máxima, então nós próprios não a podemos adoptar. É errado, por exemplo, agir segundo a máxima “Faz promessas com a intenção de não as cumprires”, pois não podemos querer que todos adoptem esta máxima, já que se todos fizessem promessas com a intenção de as não cumprirem ninguém confiaria em ninguém e a própria prática de fazer promessas desapareceria. Outra fórmula do imperativo categórico exprime uma exigência de respeito: “Age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. Isto significa que é sempre errado tratar uma pessoa como se esta fosse um instrumento ao serviço dos nossos objectivos. Podemos dizer, utilizando o mesmo exemplo, que é errado fazer promessas com a intenção de as não cumprir porque quem procede assim trata os outros como simples meios para alcançar os seus objectivos. Ver dever, Hare, vontade boa. (Pedro Galvão)

implicação

Um conjunto C (possivelmente singular) de afirmações implica outra afirmação Q se Q for verdadeira em todas as circunstâncias em que as afirmações de C forem verdadeiras. Dá-se a esta relação muitas vezes também o nome de implicação lógica. Por exemplo, em qualquer circunstância em que as afirmações “Os tiranos corrompem” e “João é tirano” sejam verdadeiras, a afirmação “João corrompe” será também verdadeira, de modo que esta última é implicada pelas duas primeiras. A relação da implicação com a validade de um argumento (e portanto com a lógica) é directa: dada a definição acima, se as afirmações de C implicam Q, então existe um argumento válido com as afirmações de C como premissas e Q como conclusão (no exemplo, as duas primeiras afirmações seriam as premissas e a terceira a conclusão). A noção clássica de implicação (e portanto de validade lógica) tem sido contestada por alguns autores, que exigem que as afirmações se relacionem quanto ao seu conteúdo para que se possa dizer que estamos perante uma relação de implicação. Algo equivocamente, o termo “implicação” é, algumas vezes, utilizado como equivalente a “condicional”. Nesta acepção, usa-se muitas vezes a definição de condicional da lógica clássica para dizer que uma afirmação P implica outra Q se não é o caso de P ser verdadeira e Q falsa. A este tipo de implicação (mais fraca do que a implicação lógica) dá-se normalmente o nome de “implicação material”. (Pedro Santos)

implícita, definição

Ver definição implícita.

inatas, ideias

Ver ideias inatas.

incomensurabilidade

Propriedade de duas ou mais coisas não serem comparáveis. Na sua filosofia da ciência, Kuhn defende que os paradigmas são incomensuráveis. Para Kuhn, a história de qualquer disciplina cientificamente amadurecida consiste numa sucessão de paradigmas separados por revoluções científicas. Por exemplo, na física o paradigma aristotélico deu lugar ao paradigma newtoniano. Afirmar que estes paradigmas são incomensuráveis é dizer que não podemos comparar a física de Aristóteles com a física de Newton e concluir que, objectivamente, a segunda é melhor ou está mais próxima da verdade do que a primeira. Cada paradigma proporciona uma maneira de ver um mundo e, quando os cientistas mudam de paradigma, de certo modo mudam também de mundo. Nestas circunstâncias, não podemos avaliar os paradigmas à luz de padrões ou critérios que estejam acima de qualquer paradigma. Ver relativismo. (Pedro Galvão)

indeterminismo

Teoria que abrange várias concepções do mundo incompatíveis com o determinismo. Numa versão mais fraca do indeterminismo, salienta-se que algumas ocorrências no mundo, como aquelas que são estudadas pela física quântica, não são determinadas por estados anteriores. Numa versão mais forte, defende-se que nenhum estado do mundo é determinado por estados anteriores, sendo a causalidade uma mera ilusão. Se isto for verdade, levanta-se o problema da atribuição de responsabilidade aos agentes, dado que as suas acções serão aleatórias.

Será o indeterminismo compatível (ver compatibilismo/incompatibilismo) com o livre-arbítrio? Negando que qualquer acontecimento do mundo, incluindo as acções, seja causalmente determinado, não tem sentido dizer que a versão mais forte do indeterminismo é compatibilista, pois assume que o determinismo é falso. Mas a versão mais fraca do indeterminismo admite que alguns acontecimentos do mundo são determinados por causas. Assim, a teoria poderia ser considerada compatibilista se os indeterministas radicais incluíssem as acções no conjunto dos acontecimentos que são determinados por causas e argumentassem a favor da sua compatibilidade com o livre-arbítrio. Ver acção, agente, causa/efeito, relação causal, dilema de Hume. (António Paulo Costa)

indexical

Um termo cuja referência depende inteiramente do contexto de uso. Por exemplo: “amanhã”, “eu”, “aqui”, etc. A palavra “amanhã” refere o dia 22 de Julho, se for proferida no dia 21 de Julho; mas refere o dia 2 de Setembro, se for proferida no dia 1 de Setembro. Cada indexical tem uma regra de uso. Por exemplo, a regra do indexical “eu” é a seguinte: o termo “eu” numa frase e num dado contexto refere o locutor ou autor dessa frase nesse contexto; o termo “hoje” numa frase e num dado contexto refere o dia em que o locutor ou autor dessa frase e nesse contexto proferiu ou escreveu a frase. (Desidério Murcho)

indução

Geralmente usa-se este termo para falar de dois tipos diferentes de argumentos: as generalizações e as previsões. Uma generalização é um argumento quantificacional (ver quantificador) não dedutivo cujas premissas são menos gerais do que a conclusão. Este tipo de argumentos apresenta a seguinte forma lógica, ou outras formas lógicas análogas: “Alguns F são G. Logo, todos os F são G”. Por exemplo: “Alguns corvos são pretos; logo, todos os corvos são pretos”. Uma previsão é um argumento quantificacional não dedutivo cujas premissas se baseiam no passado e cuja conclusão é um caso particular. Por exemplo: “Todos os corvos observados até hoje são pretos; logo, o corvo do João é preto”. É defensável que qualquer argumento não dedutivo se baseia na indução, nomeadamente qualquer argumento de autoridade e argumento por analogia. Ver problema da indução. (Desidério Murcho)

inefável

Aquilo que não pode ser dito ou comunicado. (Célia Teixeira)

inferência

O processo de concluir uma afirmação a partir de outras afirmações. Por exemplo, com base nas afirmações “Deus existe” e “Se Deus existe, a felicidade eterna é possível”, pode-se inferir “A felicidade eterna é possível”. Um argumento é uma inferência, usada para efeitos de persuasão racional. (Desidério Murcho)

infinita, regressão

Ver regressão infinita.

infinitude

Ver finitude/infinitude.

informal, lógica

Ver lógica informal.

inimputabilidade

Conceito jurídico aplicado nos casos em que, tendo tido lugar uma acção que infringe a lei, se entende que o sujeito dessa acção não deve ser responsabilizado e, consequentemente, não deve ser penalizado por ela. As circunstâncias que determinam a inimputabilidade de alguém são, vulgarmente, duas: 1) a acção infractora não foi genuinamente livre, tendo o sujeito agido sob coerção; 2) a infracção não foi resultado de coerção, mas o sujeito não poderia ter consciência do que estava a fazer ou dos resultados do seu acto. O caso de alguém que seja obrigado por um terrorista a matar um inocente exemplifica a primeira circunstância; os crimes cometidos por doentes mentais ou por crianças imaturas exemplificam a segunda circunstância. Ver responsabilidade. (António Paulo Costa)

inspector de circunstâncias

Um inspector de circunstâncias é um método usado em lógica para testar a validade de alguns tipos de argumentos (ou raciocínios). Trata-se de uma sequência encadeada de tabelas de verdade em que se analisam todas as combinações possíveis (circunstâncias) de verdade e falsidade das premissas e da conclusão, de modo a verificar-se se existe alguma circunstância em que, sendo todas as premissas verdadeiras, a conclusão seja falsa — se existir, o argumento é inválido. Pelo contrário, se em todas as circunstâncias em que as premissas são verdadeiras a conclusão também é verdadeira, então o argumento é válido. Eis um exemplo: seja o raciocínio “Chove e está frio. Logo, está frio”, no qual existe apenas uma premissa (“Chove e está frio”). Se representarmos “chove” por “P”, “está frio” por “Q”, “e” por “∧” e “logo” por “⊨”, obtemos o seguinte inspector de circunstâncias:

P Q P ∧ Q Q
V V V V
V F F F
F V F V
F F F F

Nas coluna mais à esquerda são apresentadas as quatro combinações possíveis dos valores de verdade de P e de Q. Na coluna mais à direita, são apresentados, por um lado, os valores de verdade da premissa (P ∧ Q), em função dos valores de verdade atribuídos a P e a Q em cada circunstância, e, por outro, os valores de verdade da conclusão (Q). Verificamos então que, em todas as circunstâncias (neste caso, apenas uma) em que a premissa é verdadeira, a conclusão é verdadeira. Portanto, o raciocínio é válido. Ver argumento, premissa, conclusão, valor de verdade, verdadeiro/falso. (António Paulo Costa)

inteligível

Aquilo que é susceptível de ser compreendido. (Célia Teixeira)

intenção

Na filosofia da mente e na filosofia da linguagem, a intenção é definida como a propriedade de um estado mental ser acerca de algo. A crença e o desejo são frequentemente apontados como estados mentais intencionais: pode acreditar-se que a Terra é redonda, ou pode desejar-se lavar os dentes — no primeiro caso, temos em mente uma crença que é acerca da Terra; no segundo, um desejo acerca de lavar os dentes. Na filosofia da acção, a intenção é encarada como aquilo que distingue uma acção de um acontecimento não intencional associado a um agente: por exemplo, se ao cair bato com os lábios na face de uma pessoa, trata-se de um acontecimento acidental, e não da acção de beijar essa pessoa. Além disso, a intenção é um meio de racionalização das acções: por exemplo, se leio este dicionário com a intenção de me preparar para um teste, a intenção de me preparar para um teste justifica a acção de ler este dicionário. Ver vontade, deliberação e responsabilidade. (António Paulo Costa)

intencionalidade

A propriedade ou poder que alguns estados mentais têm de apontarem, se dirigem, representarem ou serem acerca de objectos, propriedades ou estados das coisas no mundo. Crenças, desejos, esperanças, ambições, intenções, amar e odiar são propriedades e estados mentais que exibem intencionalidade. Por exemplo, cremos que vai chover amanhã, desejamos e esperamos que não chova amanhã, formamos a intenção de, caso não chova, ir à praia com a Rita, amamos a Rita e odiamos a chuva, etc. Em todos estes casos há dois elementos: 1) uma certa atitude mental (medo, esperança, etc.) e 2) uma representação do mundo (da chuva, da Rita, etc.), a que em filosofia se chama conteúdo. Alguns filósofos defendem a tese, geralmente atribuída a Franz Brentano de que todos os fenómenos mentais, e só eles, exibem intencionalidade. Esta tese afirma que a intencionalidade é a marca do mental e insere-se num debate vigoroso sobre a natureza do mental que pelo menos outros tantos filósofos rejeitam, dado pensarem que não se consegue explicar a consciência fenomenal (ver consciência, qualia). Para estes filósofos, certos estados mentais, como ter dores de dentes, podem não ter intencionalidade. Este debate coloca a intencionalidade, juntamente com a consciência, no centro do debate sobre o que é ter uma mente. Não devemos confundir intencionalidade quer com intenção, quer com intensão. (Miguel Amen)

intensão

A intensão de um termo é o princípio ou a condição segundo a qual os objectos a que esse termo se refere são identificados. Por exemplo, a intensão do predicado “ser português” é a condição de ter nacionalidade portuguesa (e não a de ter nascido em Portugal, visto que há portugueses nascidos noutros países e pessoas nascidas em Portugal que não são portuguesas). Ver também compreensão, extensão, sentido. (Pedro Santos)

interpretação

A atribuição de significado a objectos, acontecimentos, textos ou discursos. Interpretar a frase “A neve é branca”, por exemplo, é atribuir um significado à frase. Compreender como se interpreta o que as pessoas dizem, e saber se podemos garantir que essa interpretação é correcta, tornou-se um problema filosófico a partir de Wittgenstein e Quine. Alguns filósofos, como Hans-Georg Gadamer (1900–2002), defenderam que a interpretação é o método próprio das ciências humanas, opondo-se ao método experimental das ciências da natureza. Por esse motivo, há quem defenda ser a “interpretação de textos” a tarefa central da filosofia. Contudo, trata-se de uma confusão, dado que mesmo os filósofos que defenderam a interpretação como método privilegiado nas ciências sociais não defenderam que interpretar textos é o objectivo do estudo da filosofia. E a maior parte dos filósofos defendem que o âmago do trabalho filosófico não é a interpretação, mas a discussão e avaliação racional dos problemas, teorias e argumentos da filosofia. Ver hermenêutica. (Desidério Murcho)

intuição

Por um lado, o conhecimento directo e autoevidente de um conceito, proposição ou entidade, por outro, a capacidade que permite obter este tipo de conhecimentos que não podem ser obtidos ou inferidos (ver inferência) por intermédio da experiência ou da razão. O conhecimento, por exemplo, de conceitos da ética, como o de bem, da estética, como o de belo, de verdades necessárias, como os princípios (ver princípio) da lógica e da matemática, ou de entidades, como Deus, é por vezes explicado assim. É habitual chamar-se “intuicionistas" às teorias que defendem o conhecimento de tais conceitos apenas através da intuição. Noutra acepção mais fraca, fala-se das intuições como as crenças que, tudo o resto sendo igual, não temos razões independentes para pensar que estão erradas. (Álvaro Nunes)

intuicionismo estético

Tipo especial de objectivismo estético que defende que as propriedades estéticas existem nos próprios objectos, embora não possam ser aprendidas pelos sentidos nem pela razão, exigindo antes uma faculdade especial a que se dá o nome de “intuição". A intuição é uma forma de conhecimento directo e é nela que encontramos, segundo o intuicionista, justificação para os nossos juízos estéticos. (Aires Almeida)

ironia

Estratégia utilizada por Sócrates, tal como é retratado nos diálogos de juventude de Platão, como parte do seu método de refutação (elenchus), em que finge ignorância e elogia a habilidade dos interlocutores para, desse modo, revelar a sua ignorância. Ver Platão, A República, (trad. 2001, Gulbenkian), 336e-337a. (Álvaro Nunes)

irracionalismo

Posição que rejeita quaisquer métodos racionais de prova. Pode defender-se o irracionalismo em várias áreas. Mas uma posição irracionalista extrema é filosoficamente insustentável. Se rejeitamos inteiramente os métodos racionais de prova, então não é possível uma defesa racional do irracionalismo. Mas se não é possível uma defesa racional do irracionalismo, então não temos quaisquer razões para o aceitar. Por outras palavras, não é possível defender uma posição irracionalista extrema pois isso implica a rejeição do próprio irracionalismo.

Em geral, as posições irracionalistas não rejeitam por completo a razão, rejeitam-na apenas em relação a uma área específica. Um exemplo é o fideísmo. Segundo esta posição, as questões religiosas são primariamente questões de fé. Neste caso, os irracionalistas podem, sem contradição, defender que a fé é superior à razão em questões religiosas. O problema muitas vezes apontado é que no interior da área em que a discussão racional é excluída, tudo vale, pois é tão legítimo acreditar, por exemplo, na existência de Deus como na do Pai Natal, o que torna as nossas posições arbitrárias. (Célia Teixeira)

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