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Crítica
7 de Novembro de 2010   Filosofia

Ilusões conceptuais

Vítor Guerreiro

Um exemplo simples de ilusão perceptiva é quando ao longe confundimos um arbusto com uma pessoa. Um exemplo simples de ilusão conceptual é pensar que existir contingentemente é incompatível com ter propriedades essenciais. Ambas são exemplos de ilusão cognitiva. A diferença é que no primeiro temos experiência de um arbusto parecer ao longe uma pessoa, enquanto no segundo não temos experiência de um objecto contingente parecer não ter propriedades essenciais. Quando nos parece que um objecto contingente não pode ter propriedades essenciais o que fizemos foi inferir isso a partir da nossa compreensão dos termos “contingente” e “essência”, e de outras crenças nossas. Mas o mecanismo do erro é semelhante ao de uma ilusão perceptiva. Numa ilusão perceptiva há discrepância entre o conteúdo representacional da nossa experiência e as propriedades daquilo que é representado. Uma ilusão conceptual resulta tipicamente do uso vago de conceitos, cujos contornos nem a pessoa que os usa discerne com clareza. É o que sucede quando, por exemplo, se diz de uma classe de objectos que são “indivíduos históricos”, sem se saber ao certo o que queremos que esta caracterização faça.

A ideia da incompatibilidade entre ter propriedades essenciais e existir contingentemente é mais comummente expressa do seguinte modo: as coisas não podem ter essências porque existem historicamente; assim, por exemplo, há quem considere que a teoria da evolução de Darwin terá mostrado que os organismos vivos não têm “essências”, são “indivíduos históricos”. A ideia implícita é a de que se um organismo é o resultado de um processo evolutivo então não pode ter uma essência, porque o resultado de tal processo é contingente — mudando as circunstâncias o resultado poderia mudar — e isto tornaria redundante a ideia de essência. A ilusão consiste em pensar que a essência é um género de molde no qual se verte a matéria que constitui o organismo, ou seja, que uma essência é uma entidade exterior ao organismo e que interfere causalmente na sua existência.

A distinção entre ilusões perceptivas e conceptuais não parece muito precisa, porque aquilo que permite distinguir uma ilusão perceptiva, em que pensamos ver uma pessoa quando na verdade vemos um arbusto, de uma “percepção verídica”, em que pensamos ver um arbusto e vemos de facto um arbusto, é a crença, no primeiro caso, de que vemos uma pessoa. Mas o que efectivamente percepcionamos, nos dois casos, é o mesmo: um arbusto. Pelo que não é a percepção em si, o acontecimento mental, que distingue os dois casos. Mas se o que distingue a ilusão perceptiva da percepção verídica é a verdade ou falsidade daquilo que consideramos que a nossa experiência representa, parece não haver distinção entre ilusão perceptiva e ilusão conceptual, uma vez que também as ilusões conceptuais envolvem representações falsas, embora nem todas as representações falsas sejam ilusórias.

Consideramos que as nossas experiências representam o mundo de uma certa maneira. Mas podemos enganar-nos acerca do que é representado nas nossas experiências. Por exemplo, ao observar um gato branco sob uma luz rosa, sem saber que a luz rosa está presente, podemos pensar que a nossa experiência representa o mundo como algo que contém gatos cor-de-rosa, quando na verdade a experiência nos mostra o mundo como algo que contém gatos brancos que parecem cor-de-rosa sob uma luz rosa. Aquilo que vemos numa percepção ilusória deste género é exactamente o mesmo que veríamos numa percepção verídica. Parece que para haver ilusão tem de haver aplicação errónea de um conceito. O que distingue então os dois géneros de ilusão?

Uma caracterização das ilusões conceptuais vem de Kant. Trata-se da “ilusão transcendental”, que surge da tentativa de aplicar os conceitos do entendimento fora do domínio da experiência, tendo como resultado as chamadas “antinomias da razão”, pares de argumentos aparentemente sólidos a favor de conclusões opostas. Além de confiar excessivamente na igual força de cada argumento que constitui uma antinomia, o erro de Kant, creio, foi considerar que todo o uso “transcendente” dos conceitos conduz inevitavelmente a este género de impasse (convém notar que para rejeitar as antinomias kantianas não temos de rejeitar a ideia de que há impasses argumentativos). Para Kant toda a metafísica que não se restrinja à análise dos nossos “esquemas conceptuais”, e procure descrever a estrutura fundamental da realidade, é irremediavelmente ilusória. Contudo, podemos rejeitar esta ideia e usar a noção de aplicação errónea de um conceito fora do domínio da experiência para caracterizar pelo menos algumas ilusões cognitivas. Mas embora nem todas as ilusões cognitivas possam ser resolvidas por recurso à experiência, muitas são-no. Dois exemplos são a ilusão de que os objectos mais pesados caem mais depressa, e a falácia da afirmação da consequente, cujo carácter falacioso podemos confirmar empiricamente: se estou no Porto, estou em Portugal; mas sendo verdade que estou em Portugal posso constatar que estou, por exemplo, em Braga.

O erro consiste em pensar que porque uma dada ilusão não pode ser resolvida empiricamente não pode ser resolvida de todo. Daqui resulta a ideia errónea de que cada argumento em qualquer antinomia tem de ter exactamente a mesma força.

Nenhuma ilusão é puramente perceptiva na medida em que na ausência de trabalho conceptual nenhuma experiência tem conteúdo representacional. Neste sentido, todas as ilusões perceptivas são ilusões cognitivas. Mas nem todas as ilusões cognitivas são ilusões perceptivas, ou seja, nem todas as ilusões cognitivas dependem fortemente da percepção.

Um exemplo comum de ilusão conceptual, como referi, é a oposição entre “essencial” e “contingente”, que não são realmente opostos. “Essencial” opõe-se a “acidental” e “contingente” opõe-se a “necessário”. Uma propriedade essencial é uma propriedade que algo tem em todas as circunstâncias possíveis em que existe, mas a própria coisa pode não existir em todas as circunstâncias possíveis. Eu existo contingentemente (há circunstâncias possíveis nas quais nunca chego a existir) mas tenho o meu ADN em todas as circunstâncias possíveis nas quais existo; o meu ADN é uma propriedade essencial minha (ainda que não me individue, pois pode haver seres distintos com o mesmo ADN — eis outra potencial confusão: pensar que todas as propriedades essenciais são individuadoras).

Formulada assim claramente, esta distinção parece trivial, mas se dissermos que “a ideia de que as coisas têm essências é uma ideia ahistórica”, manifestamos uma ilusão profunda. A historicidade de algo é apenas a sua flexibilidade temporal, isto é, começar a existir num dado momento, sofrer alterações nas suas propriedades intrínsecas, e deixar de existir num dado momento. Mas sofrer alterações nas propriedades intrínsecas não é mudar essencialmente. Uma pessoa pode perder cabelo, ganhar peso, mudar de crenças, sem deixar de ser a mesma pessoa; mas não pode mudar de ADN. Um pedaço de metal pode variar imenso nas suas propriedades superficiais sem deixar de ser o que é, mas se o elemento metálico predominante (no caso de uma liga) mudasse de número atómico, simplesmente não teríamos a mesma liga metálica, nem o mesmo objecto.

Algo pode ser temporalmente flexível e, ao mesmo tempo, modalmente inflexível, ou seja, pode não haver circunstâncias contrafactuais em que esse algo sofra modificações intrínsecas diferentes das que sofreu efectivamente; por outras palavras, a coisa em questão não poderia ter mais do que um “percurso histórico”. Isto mostra algo aparentemente surpreendente: a historicidade de algo é compatível com esse algo ter todas as suas propriedades essencialmente.

Se por “historicidade” entendermos a flexibilidade temporal mais a flexibilidade modal, isto continua a ser compatível com algo ter algumas das suas propriedades essencialmente, isto é, propriedades que esse algo tem em todas as circunstâncias possíveis em que existe, mesmo sofrendo modificações intrínsecas ao longo do tempo e mesmo havendo circunstâncias possíveis nas quais sofre modificações intrínsecas diferentes. De tudo isto resulta que a historicidade é uma propriedade bastante trivial. Nenhuma destas considerações permite concluir que há alguma relação interessante entre a verdade e a historicidade, além da ideia trivial de que o contexto em que uma ideia é formulada é relevante para a compreensão dessa ideia. Mas daqui não se segue que a verdade seja temporalmente flexível, ou que a verdade de uma afirmação seja relativa ao contexto histórico em que é formulada. É a afirmação que é relativa ao seu contexto (o contexto determina o conteúdo da afirmação), e não a verdade dessa afirmação. Afirmar que a verdade é “histórica”, ou seja, que muda ao longo do tempo, é confundir a verdade de uma proposição com as diferentes verdades de outras proposições, expressas pela mesma frases-tipo em diferentes circunstâncias.

Uma característica das ilusões conceptuais tratadas pela filosofia é a sua persistência. As ilusões perceptivas podem ser resolvidas com mais informação sensorial. Ouvindo com mais atenção podemos perceber que o instrumento musical que ouvimos não é o que pensávamos ouvir. Observando melhor podemos constatar que aquilo que pensávamos ser uma pessoa é de facto um arbusto. São as ilusões perceptivas que tornam a percepção filosoficamente interessante, e levantam problemas que por sua vez não podem ser resolvidos empiricamente, como o problema de saber se a percepção pode justificar as nossas crenças ou se há crenças apropriadamente básicas.

Em contraste, as ilusões conceptuais não podem ser resolvidas empiricamente. O seu esclarecimento tem de ser a priori, o que pode exigir esforço e mostrar-se mais difícil do que eliminar a ilusão de que os objectos mais pesados caem mais depressa. Este é um dos aspectos das nossas vidas em que a filosofia desempenha um papel bastante valioso.

Vítor Guerreiro

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ISSN 1749-8457