A ética do incremento, seja ele reprodutivo ou não, é o assunto deste artigo. O debate tem uma estrutura que se espera simples. Em primeiro lugar, serão apresentados e discutidos os argumentos a favor do incremento; em seguida, será a vez de submeter à avaliação crítica os argumentos contra o incremento. A finalidade do debate é apresentar imparcialmente estas duas posições substantivas. Caberá depois a cada um fazer um juízo eticamente informado sobre o problema.
Foi dito que será debatida a ética do incremento, seja ele reprodutivo ou não. É por isso útil esclarecer desde já cada um destes tipos de incremento. O recurso a exemplos talvez seja a melhor maneira de o fazer. Um exemplo de incremento reprodutivo é a selecção de embriões na reprodução assistida; e um exemplo de incremento que não é reprodutivo é a instrução musical de uma criança para que as suas capacidades matemáticas e espácio-temporais melhorem, se de facto for verdade que há uma relação entre as duas coisas; ou o consumo de esteróides anabolizantes para melhorar desempenhos que exigem força e resistência; ou ainda o consumo de inibidores da reabsorção de serotonina, como o Prozac, que melhora a sociabilidade. Quanto a incrementos não reprodutivos, há então aqueles que envolvem sobretudo esforço pessoal e aqueles que induzem melhores desempenhos de forma mais automática.
O princípio da beneficência determina a obrigação moral de impedir o dano e promover benefícios sempre que isso é possível. É nele que se apoia a defesa do incremento. Admitir que o princípio da beneficência fornece razões morais para incrementar não implica a obrigação de usar uma estratégia específica de incremento. Uma coisa é ter razões morais para incrementar; outra é ter a obrigação de adoptar uma certa estratégia de incremento. É por isso que o debate acerca da ética do incremento não pode apelar apenas ao princípio da beneficência. Ter isto em conta é muito importante quando se delibera sobre casos particulares.
A incapacidade é uma condição em que há dano para a pessoa, que pode ser de natureza física ou mental. Uma incapacidade é uma desvantagem. Mas, como se poderia pensar, não é uma desvantagem em relação às condições do ser humano típico — é antes uma desvantagem em relação a qualquer alternativa relevante. Esta é assim uma noção lata, e não estrita, de incapacidade. Segundo esta noção, as condições típicas da nossa espécie podem converter-se em incapacidades. Isso sucede, por exemplo, quando há mudanças relevantes nos factores ambientais ou se descobre a causa de uma doença. O dano impede as pessoas de terem experiências valiosas, reduz as suas oportunidades, implica riscos ou prejudica a qualidade do que fazem. As suas causas são diversas: médicas, cognitivas, genéticas, ambientais ou sociais. É por isso errada uma concepção social de incapacidade. Mesmo a sociedade mais inclusiva e livre de preconceitos que se possa imaginar não remove muitas características que geram incapacidade.
De uma noção lata de incapacidade segue-se uma noção igualmente lata de dano. Há dano quando o bem-estar individual é significativamente afectado. Isso sucede sempre que há um entrave dos interesses e preferências por certos estados de coisas agradáveis. Um deficiente motor sofre dano se vive numa cidade sem rampas de acesso a passeios ou edifícios. O seu interesse em circular com autonomia fica sujeito a um entrave que afecta significativamente o seu bem-estar. Uma mulher sofre também dano pelo simples facto de nascer em países que entravam o seu interesse em educar-se ou participar na vida pública. Se certas condições causam dano, há razões morais para as impedir ou reduzir os seus efeitos negativos. É isso o que determina o princípio moral da beneficência. Mas dessas razões morais, como é óbvio, não se segue a escolha de uma estratégia ou método que promova a redução do dano. Essa é uma escolha que pode depender de uma análise cuidadosa da relação custo-benefício, da força das razões morais naquele contexto particular, ou do grau de dano. Este último factor, por exemplo, pesa frequentemente, e é razoável que assim seja: a força da obrigação moral depende do grau de incapacidade. Num caso em que é provável apenas uma incapacidade ligeira, poderá não haver qualquer obrigação moral de impedir o dano ou de reduzir os seus efeitos.
Muitas pessoas rejeitam o incremento; ou, se não rejeitam, têm sobre ele muitas dúvidas. E têm igualmente a intuição de que há razões morais para impedir danos gerados por incapacidades dos filhos. Mas, se têm esta intuição, não terão também de reconhecer que há razões morais para incrementar? Ora, aceitar que se deve impedir o dano e rejeitar que se deve promover o incremento, é negar que há um continuum entre danos e benefícios. Reconhece-se amplamente, porém, que há razões morais para melhorar as condições em que os outros se encontram, seja no caso em que geram incapacidades ou não. Isto não implica simplesmente que há razões para não causar dano e, sempre que isso é possível, razões para promover benefícios; implica também que essas razões são contínuas. Logo, não há, por um lado, razões para impedir o dano e, por outro, razões para promover o incremento. Estas são antes razões morais para melhorar as condições em que os outros se encontram
O continuum dano-benefício é apoiado pela analogia intuitiva entre incapacidade e incremento: em relação a alternativas relevantes, se a primeira é uma desvantagem, a segunda é uma vantagem. Dada esta analogia, se temos razões morais para impedir ou reduzir desvantagens, elas estendem-se à promoção de vantagens. Há ainda casos em que seria ilusório separar a redução de desvantagens da promoção de vantagens. Um deles é o dos pacientes que sofrem de privação do sono. Esta incapacidade gera danos emocionais e cognitivos — as pessoas ficam mais lentas a processar a linguagem e a resolver problemas matemáticos e estão mais sujeitas a acidentes de viação. As anfetaminas usadas para reduzir estes efeitos melhoram igualmente competências cognitivas, como a atenção, a concentração e as capacidades de memorizar e planear. Não é assim possível separar a redução de desvantagens da promoção de vantagens. Segue-se, portanto, que melhorar um desempenho, ainda que não contrarie desvantagens, não é errado. Nem poderia ser, uma vez que as razões para reduzir desvantagens são contínuas em relação às razões para promover vantagens. Isso levaria a que, em certos casos, fosse também errado impedir danos. A intuição que nega o continuum dano-benefício não parece então resistir ao teste da argumentação racional. Todavia, negar este continuum não é a única objecção ao incremento. Também se afirma que passar num exame depois de se ter usado substâncias químicas tem menos valor do que alcançar esse objectivo apenas através do esforço pessoal. Os incrementos químicos e genéticos podem ainda ter uma consequência mais séria do que simplesmente diminuir o mérito das realizações individuais. Eliminando a necessidade de esforço para obter sucesso, ou reduzindo-o significativamente, pode alterar aspectos fundamentais da nossa identidade. Uma crítica diferente defende que a distribuição injusta das vantagens do incremento afectará de maneira relevante uma sociedade que não soube ainda resolver muitas das suas injustiças.
No caso em que um teste pré-natal revela que a futura criança terá uma incapacidade séria, é de supor que os pais tomem medidas para impedir ou reduzir os seus efeitos na criança, o que poderá implicar estratégias de incremento reprodutivo. Além disso, é também de supor que se empenhem na melhoria das condições da sociedade em que vivem, se isso permitir que a criança tenha mais qualidade de vida. Isto mostra que não vêem como mutuamente exclusivas estratégias de incremento e mudanças sociais. A alternativa com que se deparam é antes outra: continuarem a gravidez ou terminá-la. Não há assim razões morais para pensar que a adopção de estratégias de incremento não é o melhor curso de acção porque impediria, ou reduziria, o esforço de mudança social. Essas estratégias são compatíveis com o empenhamento na melhoria das condições da sociedade. Mas este argumento não é suficiente para responder a uma objecção mais séria. A compatibilidade entre diferentes estratégias não é necessariamente a melhor maneira de incrementar as capacidades mentais e físicas. Sabe-se que o exercício físico e mental, uma dieta equilibrada e um ambiente estimulante são uma base sólida para a melhoria dessas capacidades. Não serão também a base mais sólida de uma vida que tem mais qualidade global?
É conhecida a preocupação com a segurança dos procedimentos envolvidos no incremento. Mas é ainda maior a preocupação suscitada por um caso particular de incremento — a manipulação genética. O conhecimento das consequências deste método de incremento é, na verdade, muito limitado. As modificações genéticas, dada a sua natureza, têm implicações muito sérias. A avaliação que exigem é especialmente complexa. Pode suceder que não melhorem realmente a qualidade de vida das pessoas. Em todo o caso, alguns pensam que a manipulação genética de embriões é uma condição necessária para incrementar o desempenho de uma capacidade. Mas não deixa de haver uma razão muito forte para duvidar que produza uma descendência globalmente melhor. Há estudos que apoiam as preocupações geradas por esta dúvida. É o caso de um estudo sobre os efeitos da manipulação genética em ratos para melhorar a memória de curto prazo e a aprendizagem destes animais, um estudo conduzido pela universidade da Pensilvânia. Os resultados não foram animadores. Os ratos revelaram uma invulgar sensibilidade à dor. Este efeito, que não foi previsto, mostra que a qualidade de vida dos ratos não melhorou, embora as competências cognitivas em questão tenham sido incrementadas.
As preocupações de segurança devem então ser tidas em conta. É provável que uma análise cuidadosa da relação riscos-benefícios não recomende certas estratégias de incremento de funções cognitivas complexas. Todavia, esta prudência é irrelevante para defender que estes incrementos são, em si mesmos, eticamente incorrectos. Um incremento cognitivo é incorrecto apenas na circunstância em que a saúde e a qualidade de vida das pessoas estão sujeitas a riscos. E, ainda assim, não a um risco qualquer, mas a um risco que não é suplantado pelo valor do que se pretende alcançar através do incremento. A análise dos riscos e benefícios é outro problema. Os aspectos que inclui não são de natureza moral. Trata-se então de saber como obter informação isenta, calcular o rácio riscos-benefícios ou decidir quem fará essa ponderação; ou de saber que percepção do risco têm as pessoas envolvidas e que valor dão aos benefícios que os incrementos permitem. Há quem prefira não correr qualquer risco, e há quem se disponha a sujeitar-se a todas as consequências do incremento, incluindo as indesejáveis. Desde que contribua para realizações valiosas, como ganhar uma competição olímpica, pode até haver quem sacrifique uns quantos anos de vida. Alguns atletas, de resto, já o confessaram.
Algumas estratégias de incremento poderão ser muito dispendiosas. É esse o caso da manipulação genética. É muito provável que apenas as classes favorecidas estarão em condições de usufruir delas. É de admitir, portanto, que essas estratégias de incremento serão injustamente distribuídas. Uma nova desigualdade será estabelecida — a desigualdade entre pessoas geneticamente incrementadas e pessoas que o não são. Parece justificado o receio de que esta importante desigualdade aumente os já acentuados desníveis da sociedade actual. E se, pelo menos até agora, estes desníveis da sociedade actual não têm sido corrigidos, essa é uma razão muito forte para que não sejam permissíveis os incrementos dispendiosos.
Os defensores do incremento genético dizem que esta razão, ao invés de forte, é claramente fraca. Admitindo que o problema do incremento genético está na sua distribuição, reconhece tacitamente que esse tipo de incremento é bom em si. Logo, o argumento da distribuição injusta não é uma objecção ética ao incremento genético. Levanta antes um problema de distribuição, sem dúvida urgente, mas não específico do incremento cognitivo, seja genético ou outro igualmente dispendioso. Muitos outros recursos benéficos, como a educação, os alimentos ou as terapias, estão também injustamente distribuídos. Não há nisso, porém, uma razão para defender que o uso desses recursos é moralmente impermissível. E seria obviamente absurdo que houvesse. Uma coisa é o problema ético do incremento, outra bem diferente é o problema ético da distribuição. Que fazer perante o problema ético da distribuição dos incrementos dispendiosos? Supondo que a sociedade ganharia com os benefícios produzidos pelos incrementos cognitivos, talvez a regulação do mercado e o acesso subsidiado pelo estado para os mais desfavorecidos fossem a solução mais razoável. Mas este é outro debate.
Há juízos que elogiam as realizações bem-sucedidas dos agentes e juízos que os culpam pelos seus fracassos. Num e noutro caso pressupõe-se que os agentes gozam de alguma liberdade de acção. Imagine-se um mundo em que o uso de estratégias de incremento, incluindo as genéticas, se generalizou. O esforço dos agentes é apenas marginalmente responsável pelas suas realizações físicas e intelectuais bem-sucedidas. Num mundo assim não haveria boas razões para admirar os agentes. As noções de agente e de responsabilidade seriam então significativamente revistas. Ainda que os seres humanos não deixassem de ser agentes responsáveis pelas suas acções, é provável que o fossem num grau bastante fraco. Estas noções fracas de agente e responsabilidade seriam acompanhadas pelas reacções psicológicas habituais a casos de fraude. Em grande medida, cada agente seria encarado como um atleta olímpico que ganhou a prova devido à ingestão de drogas ilícitas poderosas. Este cenário de um mundo sem agentes dignos de admiração é muito provável para os críticos do incremento. Se é bom que os agentes se encarem como responsáveis pelas suas acções num grau forte, então há uma razão moral bastante forte para não incrementar seres humanos.
Talvez o cenário apresentado não seja plausível. Afinal, se todos os atletas olímpicos fossem incrementados, os seus êxitos não seriam uma fraude, e a reacção psicológica de que se é enganado não teria lugar. As reacções psicológicas acabariam por se ajustar a um mundo de seres humanos incrementados. Não é então claro que os agentes deixariam de se sentir donos das suas acções. A consequência mais provável seria outra: a “fasquia seria aumentada”. Logo, a noção de mérito não seria enfraquecida. Os agentes mais bem-sucedidos, e com incrementos semelhantes, seriam responsáveis pelas suas realizações no mesmo grau em que agora o são. Todavia, o argumento do mundo sem agentes dignos de admiração capta um aspecto importante. No caso em que há duas estratégias para alcançar um objectivo, uma de incremento (o método fácil) e outra baseada no esforço pessoal, há de facto mais mérito se o êxito resulta desta última estratégia. O agente é, neste caso, mais digno de admiração. Isto implica, obviamente, que um ser humano não merece o mesmo elogio se o êxito obtido depende de capacidades incrementadas para esse efeito. Mas a conclusão que isto permite é modesta: apenas se pode afirmar que ser bem-sucedido pelo método fácil é menos digno de admiração. Não se segue, portanto, que é moralmente incorrecto adoptar o método fácil. Há, porém, uma subtileza a ter em conta. Uma estratégia de incremento pode ser menos digna de admiração e ser, apesar disso, a melhor opção. No caso em que a instrução musical de uma criança não tem uma resposta positiva, se o efeito pretendido apenas puder ser alcançado através de uma droga segura que incrementa a capacidade musical, essa é a melhor opção. Dessa capacidade incrementada resultam benefícios cognitivos e emocionais para a criança.
Esta é uma razão popular contra o incremento reprodutivo. Afirma-se que este tipo de incremento de capacidades cognitivas encoraja os pais a conceber os filhos como uma espécie de mercadoria. Caso assim seja, o incremento não é ético. Há roupas, carros ou telemóveis que servem para reflectir uma dada imagem da pessoa a que pertencem. Fazem-no porque exibem certas propriedades estéticas. Também as crianças podem servir para dar à sociedade uma certa imagem dos pais. Para isso, basta que exibam propriedades a que geralmente se reconhece valor. Inteligência, beleza e uma estrutura física atlética são exemplos dessas propriedades. Um pai que procede a um incremento reprodutivo seguro da inteligência do filho, para que este dê à sociedade a imagem que lhe garante o reconhecimento pretendido, está a tratá-lo como se fosse um telemóvel da moda. Em si mesma, a criança não tem valor — não tem, portanto, valor intrínseco; tem apenas valor como um meio para adquirir estatuto (valor instrumental).
É verdade que as motivações para conceber filhos têm relevância moral. Se um incremento reprodutivo tem como motivação contribuir para um certo estatuto dos pais, então é errado. Mas, neste caso, o problema não está no incremento — está na motivação para incrementar. Esta razão contra o incremento parece então deslocada. Não é, afinal, uma razão especificamente contra o incremento reprodutivo. Seja incrementada ou não, qualquer reprodução com motivações semelhantes será errada. Se uma certa motivação faz da criança a conceber mera mercadoria, ainda que os pais recusem uma estratégia de incremento reprodutivo, esse não deixa de ser um exemplo de como não se deve fazer as coisas.
Faustino Vaz