Menu
Crítica
5 de Junho de 2022   Epistemologia

Uma solução para o problema da indução

Eduardo Castro

O problema de indução que vou abordar neste texto é o problema de justificar a inferência: todos os F observados têm sido G; logo, todos os F são G. Este tipo de inferências é corrente no dia-a-dia. Por exemplo, todos os corvos observados têm sido negros, logo, todos os corvos são negros; todos os cisnes observados têm sido brancos, logo, todos os cisnes são brancos; todos os electrões observados têm-se repelido, logo, todos os electrões se repelem.

A estrutura do argumento é uma estrutura indutiva. A partir da existência de um conjunto de casos particulares, pretende-se inferir uma generalização — uma quantificação universal. A conclusão amplia a premissa.

1.

Todos os F observados têm sido G.
Logo, todos os F são G.

Apoie a Crítica com um donativo mensal
Sugestão: 1 euro ou 5 reais

Euros
MB Way: +55 31 99797-7790
IBAN: PT50003300000009836207505
NIB: 003300000009836207505

Reais
PIX: desiderio.murcho@icloud.com
Código QR
Mercado Pago

Dúvidas?

A estrutura indutiva de um raciocínio contrasta com a estrutura dedutiva. Na estrutura dedutiva argumentativa, a conclusão de alguma forma estabelece-se a partir de informação já contida nas premissas, mas por um processo que não consiste numa generalização. Por exemplo, das duas premissas 1) se chove, as ruas ficam molhadas e 2) está a chover, podemos extrair a conclusão de que as ruas estão molhadas. A informação da conclusão, as ruas estão molhadas, é uma informação que está contida na consequente da primeira premissa.

Os argumentos dedutivos podem ser válidos (correctos/incorrectos) ou inválidos; e os argumentos indutivos podem ser fortes (convincentes/não convincentes) ou fracos. Não estou aqui preocupado em esclarecer o significado destas caracterizações. Uma consulta num livro de introdução à lógica esclarecerá o leitor do significado destas caracterizações. Vou-me concentrar na estrutura acima e apresentar uma tentativa para a sua solução.

A solução que vou apresentar foi particularmente desenvolvida por David Armstrong (1983). Ele defende que poderemos justificar a conclusão do argumento se inserirmos uma premissa adicional no argumento — uma inferência para a melhor explicação —, a respeito da primeira premissa, e invocarmos leis da natureza explicativas do fenómeno observado.

  1. Todos os F observados têm sido G.
  2. A melhor explicação para 1 é de que existe uma lei da natureza de que todos os F são G.
    Logo, todos os F são G.

Para aceitarmos esta solução temos de começar por aceitar como válido o raciocínio de inferência para a melhor explicação. Ora, a inferência para a melhor explicação é um raciocínio corrente. Serve, por exemplo, para suportar decisões judiciais. Se dois inimigos entrarem numa sala vazia, e um deles for posteriormente encontrado morto com múltiplas facadas no corpo, os juízes poderão condenar a outra pessoa por intermédio de uma inferência para a melhor explicação. Apesar de ninguém ter testemunhado o que ocorreu no interior da sala, pode-se inferir que a melhor explicação para o ocorrido é de que um dos indivíduos apunhalou o outro, sendo o responsável da sua morte.

Pode-se replicar que há aqui uma petição de princípio escondida. O raciocínio de inferência para a melhor explicação é ele próprio indutivo e, por isso, pretende-se justificar a indução recorrendo à própria indução. Ou seja, há uma circularidade no argumento.

No exemplo acima, a respeito do presumível homicídio, não estou a efectuar qualquer generalização. O argumento não é do género: observa-se que sempre que duas pessoas inimigas entram numa sala, uma mata a outra; logo, sempre que duas pessoas inimigas entram numa sala, uma mata a outra. A primeira premissa nem sequer descreve bem a situação pois, na verdade, ninguém observou o presumível homicídio. Esta premissa até será falsa. Pode haver casos em que duas pessoas inimigas entram numa sala e saem ambas vivas e amigas! No caso em apreço, observa-se que duas pessoas inimigas entram numa sala e, decorridos alguns instantes, uma delas sai viva e a outra encontra-se morta no seu interior. Ninguém observou o que efectivamente ocorreu no interior da sala. Na inferência para a melhor explicação pretende-se explicar um acontecimento particular e, para tal, em geral, não é necessário invocar qualquer generalização para o explicar.

Numa inferência para a melhor explicação há um conjunto de potenciais explicações concorrentes para um dado acontecimento. No caso acima, outras presumíveis potenciais explicações alternativas para o acontecimento são: 1) uma das pessoas esfaqueou-se a si própria ou 2) o homicídio foi uma espécie de “eutanásia” solicitada pela pessoa morta. Para rejeitarmos estas explicações teríamos de analisar com detalhe outros factores em volta do acontecimento, como a relação de inimizade entre ambos, a própria origem dessa inimizade e a história de vida de cada uma dessas pessoas. Ou seja, para um juiz inferir que houve um homicídio, ele tem de ponderar outras explicações possíveis e, efectivamente, verificar que a explicação-homicídio é a melhor entre todas as explicações concorrentes.

Ultrapassado o problema em volta da natureza da inferência para a melhor explicação, o problema seguinte é em volta da própria noção lei da natureza. O que é uma lei da natureza? Neste texto importa esclarecer de imediato que lei da natureza não tem o mesmo significado que lei científica. Neste texto entende-se que uma lei científica são as leis ou teorias que são formuladas pela ciência como as leis de Newton, a Teoria da Relatividade, a equação de Planck e tantas outras. A conexão entre as leis científicas ordinárias e as leis da natureza é a seguinte: as leis científicas ordinárias são verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, porque existem leis da natureza. Há coisas no mundo — em termos técnicos, chamados de estado de coisas — que asseguram a verdade ou a verdade aproximada das leis científicas ordinárias. As leis da natureza são assim entidades metafísicas.

Esta caracterização metafísica das leis da natureza pode fazer um pouco de confusão. O leitor pode simplesmente pensar: “ora, diga-me lá então um exemplo de uma lei da natureza que o senhor conheça?” A minha resposta é que, na verdade, talvez não conheça com absoluta certeza qualquer lei da natureza. Contudo, não quero deitar fora o bebé com a água do banho. Posso-me comprometer com a ideia de que as leis científicas ordinárias são verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, em virtude da existência destas leis da natureza. Por outras palavras, as leis científicas ordinárias “espelham” estas leis da natureza ou parte destas leis. Não é um mero acaso que a água afoga e que o pão alimenta. Há entidades no mundo actual que asseguram que isso é o caso e não é um acaso fortuito.

Não nos interessa aqui alcançar o conhecimento de uma lei científica particular. Isso é um trabalho para a ciência. Também não nos interessa aqui justificar o conhecimento científico que temos. Isso é um trabalho para a epistemologia e/ou filosofia da ciência. O que nos interessa aqui é caracterizar a natureza metafísica que uma lei da natureza deve ter, com vista a tentar solucionar o problema da indução. Em geral, isto tem sido um trabalho para a filosofia, em particular, um trabalho para a metafísica da ciência.

Pode-se argumentar que existe um princípio de parcimónia segundo o qual não devemos postular a existência de entidades supérfluas. À primeira vista, postular a existência de leis da natureza é uma postulação escusada e, via navalha de Ockham, devemos cortar tais alegadas entidades da nossa ontologia. Ora, como veremos mais à frente, se eliminarmos as leis da natureza da nossa ontologia, o problema da indução fica irresolúvel. Caímos no cepticismo indutivo. As leis científicas ordinárias passam a ser meros enunciados semânticos das regularidades do universo sem qualquer suporte metafísico extra.

Armstrong (e outros, como Dretske e Tooley) defende que as leis da natureza são nomicamente necessárias mas metafisicamente contingentes. Ou seja, no mundo actual as leis da natureza não se podem modificar, mas outros mundos possíveis podem ter leis da natureza diferentes das existentes no mundo actual. Por exemplo, se supusermos que no mundo actual é uma lei da natureza que todos os electrões se repelem, essa suposição é consistente com a ideia de haver outros mundos possíveis com uma lei diferente da lei do mundo actual, por exemplo, os electrões atraírem-se nesse mundo.

Antes de avançar importa esclarecer um pouco o que são universais. Um universal é uma propriedade repetível que é exemplificada em particulares. Por exemplo, diz-se que os jogadores do Benfica vestem todos de encarnado. O universal — encarnado — é aquilo que é comum a todas as camisolas que vestem os jogadores do Benfica. Há quem não acredite em universais. Ou seja, só existem particulares. Tais filósofos anti-universais (comummente chamados de nominalistas) debatem-se com o problema de explicar qual é então o fundamento alternativo para a intuição comum de que as camisolas dos jogadores do Benfica têm todas uma mesma cor — o encarnado.

Vejamos agora como se aplica esta concepção. As leis da natureza são estados de coisas, simbolizados por N(F, G). N é um universal de segunda ordem que relaciona os universais F e G de primeira ordem. Suponhamos que é uma lei da natureza que todos os corvos são negros. Seja F o universal corvicidade e seja G o universal negritude. O universal corvicidade é exemplificado por todos os particulares que têm a propriedade de corvicidade. Por sua vez, o universal negritude é exemplificado por todos os particulares que têm a propriedade de negritude. Se é uma lei da natureza que todos os corvos são negros, isso significa que no mundo actual todos os particulares que são corvos são necessariamente também negros. O argumento acima fica assim rescrito:

Argumento*

  1. Todos os corvos observados têm sido negros.
  2. A melhor explicação para 1 é de que existe uma lei da natureza de que todos os corvos são negros.
    Logo, todos os corvos são negros.

Segundo a concepção necessitarista de Armstrong, as leis da natureza são um universal que se distingue da própria regularidade observada que queremos explicar. São uma entidade extra e de natureza diferente da regularidade. N(F, G) implica que todos os corvos são negros, mas todos os corvos são negros não implica que N(F, G). Por outras palavras, N(F, G) implica a regularidade do universo, mas a regularidade do universo não implica N(F, G). Existe uma “cola” metafísica no universo, segundo a qual os particulares que exemplificam a propriedade da corvicidade, necessariamente, também exemplificam a propriedade da negritude. Ou seja, no mundo actual, os corvos são intemporalmente negros; jamais poderão ser de outra cor. Tecnicamente, a lei da natureza de que todos os corvos são negros expressa-se pela proposição seguinte:

AS) As propriedades de corvicidade e de negritude estão necessariamente conectadas.

Ponto tudo junto, obtemos o esquema seguinte:

Explanandum: todos os corvos observados têm sido negros.

Explanans: é uma lei da natureza que todos os corvos são negros. Isto é,
(AS) as propriedades de corvicidade e de negritude estão necessariamente conectadas.

Todos os corvos são negros.

Se a lei da natureza todos os corvos são negros for concebida como uma mera regularidade do universo, a inferência do argumento* acima não é uma genuína inferência para a melhor explicação. Em particular, a chamada concepção regularista das leis defende que as leis da natureza são meros enunciados semânticos das regularidades existentes no universo. Assim, a lei da natureza todos os corvos são negros é equivalente à conjunção das proposições: a) todos os corvos observados têm sido negros + b) todos os corvos não-observados são negros. Esquematicamente, temos o seguinte:

Explanandum: todos os corvos observados têm sido negros.

Explanans: é uma lei da natureza que todos os corvos são negros. Isto é, todos os corvos são negros.

a) Todos os corvos observados têm sido negros + b) Todos os corvos não-observados são negros.

Quando tentamos explicar o explanandum com o explanans a e o explanans b obtemos o resultado seguinte. Por um lado, o explanans a não explica o explanandum, sob pena de cairmos numa circularidade. Por outro lado, o explanans b não explica o explanandum, porque, presumivelmente, aquilo que ainda não foi observado não tem qualquer poder explicativo. O regularista tenta-se elevar puxando os cordões dos próprios sapatos.

A solução necessitarista de Armstrong para o problema da indução tem sido discutida na literatura contemporânea. Por exemplo, Helen Beebee (2011) montou um argumento extremamente engenhoso. Ela cozinhou um explanans alternativo ao explanans de Armstrong (AS). Segundo ela, o explanandum — todos os corvos observados têm sido negros — pode ser explicado por uma concepção de leis da natureza parecida com a concepção de Armstrong, mas cuja conexão entre os universais da lei da natureza é uma conexão temporalmente limitada. Ou seja, a “cola” metafísica no universo não é uma “cola” intemporal, mas uma “cola” que pode perder os seus poderes — uma “cola” com prazo de validade. O explanans alternativo de Beebee é:

BB) Até ao momento, as propriedades de corvicidade e de negritude têm estado necessariamente conectadas.

O comportamento futuro da conexão necessária entre as propriedades corvicidade e negritude é deixado em aberto.

Beebee argumenta que a explicação necessitarista intemporal de Armstrong (AS) não é melhor do que a explicação necessitarista temporalmente limitada (BB). Ou seja, a melhor explicação para o explanandum — todos os corvos observados são negros — pode ser a explicação necessitarista temporalmente limitada (BB). Se o necessitarista intemporal aceitar o explanans (BB), e convenhamos que é um pouco difícil recusá-lo, cai numa petição de princípio. Para ele conseguir passar da explicação necessitarista temporalmente limitada (BB) para a explicação necessitarista intemporal (AS) ele vai ter de introduzir uma inferência indutiva no seu raciocínio. Oops!

Eduardo Castro

Referências

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457