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Crítica
28 de Janeiro de 2012   Filosofia

O inefável

Desidério Murcho

Há várias ilusões cognitivas persistentes que têm uma característica comum: exprimem-se de modo a haver duas interpretações cruciais. Numa, a ideia em causa é verdadeira, mas não é surpreendente nem merece a nossa atenção porque é banal. Na outra, a ideia é surpreendente e chama-nos apropriadamente a atenção, mas é patentemente falsa. A ilusão cognitiva resulta precisamente de se assentar arraiais no muro da ambiguidade, de modo que quando discordamos dela, o seu defensor bate-nos na cabeça com a interpretação verdadeira, que realmente não queremos rejeitar; quando afirmamos então que essa ideia é verdadeira mas banal, o interlocutor muda a sua interpretação e atira-nos à cara a segunda interpretação, que torna a ideia surpreendente à custa de a tornar falsa.

Este género de ilusão cognitiva manifesta-se em vários casos: a ideia de que a verdade é histórica, por exemplo, ou que as verdades mudam com o tempo, que toda a filosofia é história da filosofia, ou que o indizível ou inefável é de extraordinária importância — e é desta última que vou falar brevemente.

Deveria ser óbvio que é banal que talvez existam várias coisas que não podemos dizer, pensar ou conceber. É banal por ser uma consequência nada surpreendente das nossas limitações cognitivas: da nossa falibilidade epistémica, assim como das nossas limitadas capacidades de estudo, atenção e compreensão. Não só é óbvio que ninguém tem capacidade cognitiva suficiente para conhecer toda a bibliografia especializada de física quântica, neurologia, arquitectura de interiores, metafísica da modalidade, estudos de religião comparada e história do Egipto antigo, como é também óbvio que talvez alguns aspectos da realidade sejam de tal modo complexos, distantes ou subtis que nunca conseguiremos compreendê-los cabalmente, mesmo que o tentemos toda uma vida. Talvez os seres humanos nunca venham a saber se há ou não extraterrestres inteligentes, qual é a verdadeira natureza dos fenómenos quânticos ou qual é a origem última da realidade.

Assim, é perfeitamente banal, e nada surpreendente, que muitas coisas compreensíveis por seres cognitivamente mais prendados e sofisticados do que nós estejam para lá das nossas capacidades cognitivas. E só é ligeiramente menos banal que talvez alguns aspectos da realidade sejam insusceptíveis de cabal compreensão por qualquer agente cognitivo (se excluirmos o que a muitas pessoas parece a fantasia arbitrária e incoerente de agentes cognitivos sobrenaturais, como deuses ou anjos), por mais sofisticado que seja por comparação connosco. Afinal, talvez haja limites naturais ao que um agente cognitivo, por mais sofisticado que seja, pode compreender; e talvez alguns aspectos cruciais da realidade estejam para lá desses limites. Para quem se sente ofendido na sua dignidade antropocêntrica sempre que se põe em causa a imaginada importância superlativa dos seres humanos, talvez seja um consolo pensar que não estamos sós na nossa limitação cognitiva.

Falei da banalidade que é a ideia do inefável. Mas se à ideia do inefável não fosse dada outra interpretação, não exerceria qualquer atracção e não seria por isso uma ilusão cognitiva persistente. Essa interpretação é a ideia de que, para lá do que podemos exprimir, explicar ou conceber, está o jardim das delícias do que É Realmente Importante. Ora, é aqui que se esconde a trica, que tem duas faces. A primeira é que o que É Realmente Importante é inefável mas pode-se apontar para ele; a segunda é que quem aponta mesmo bem é precisamente quem sugere que o que É Realmente Importante é inefável. O nosso interlocutor sugere, pois, uma ideia patentemente falsa: que ele tem um acesso privilegiado ao que É Realmente Importante mas está para lá da compreensão dos pobres mortais — excepto ele. Mas porque não o afirma explicitamente, antes o sugere nas entrelinhas, os incautos não se apercebem da marosca.

Há pelo menos três problemas com esta atitude perante o inefável. Em primeiro lugar, a nossa experiência comum das muitas coisas que são realmente profundas e de importância última é muito diferente do que sugere o inefabilista. Há mais profundidade e importância última no conhecimento que hoje temos das galáxias, do Big Bang, da evolução humana e da estrutura do átomo, do que nos simplismos do inefabilista — que têm a tendência para ser provincianos e antropocêntricos. Ora, a linguagem que dá forma a esse conhecimento científico está longe de ser inefabilista; antes tem aquele carácter chão que encontramos no manual da torradeira e que é insusceptível de oferecer confortos de alma infantis ao inefabilista antropocêntrico e paroquial. Assim, mesmo que admitamos que o que É Realmente Importante é inefável e que o inefabilista tem um talento especial para apontar para ele, não temos ainda justificação para aceitar o obscurantismo verbal em que ele nos envolve e com o qual quer ludibriar-nos, dando-nos uma ilusão de sabedoria. Todavia, se o nosso interlocutor não falar desse modo, torna-se óbvio mesmo para os mais distraídos que ele só tem a dizer banalidades risíveis — quer tenham a ver com pessoas com medo de morrer e a pastar seres, quer tenham a ver com futuros radiosos, eternos e imortais, quer façam dos seres humanos os criadores últimos da própria realidade, que se torna assim uma construção social. O paroquialismo torna-se evidente quando se escreve e fala sem lodo lexical.

Em segundo lugar, deveria ser óbvio que não é de esperar que o inefável seja particularmente mais reconfortante para os seres humanos do que os muitos conhecimentos que hoje temos sobre a estrutura última da matéria, o surgimento da vida na Terra, a formação do sistema solar ou o modo como o Sol produz luz e calor. Por que haveriam de o ser? A menos que soframos de antropocentrismo em estado avançado, é avisado reconhecer que talvez exista o inefável mas que este de pouco consolo será para quem procura consolos bíblicos.

Mas é o terceiro problema da atitude descrita perante o inefável que mais importa. É que além de as muitas verdades últimas e superlativas que conhecemos estarem longe de se esconder nas névoas místicas do inefável, e além de ser desavisado esperar que o inefável seja particularmente reconfortante, é pura e simplesmente falso que o melhor a fazer perante a possibilidade do inefável seja adoptar poses místicas e misteriosas, enlodaçar a frase e fechar a possibilidade da discussão explícita de ideias e argumentos. E isto é precisamente o que faz o inefabilista.

Claro que o inefabilista não tem alternativa, pois quer fazer-nos aceitar as suas ideias, sem apelo nem agravo — e caso falasse com verbo honesto, corria o risco de ter de enfrentar a chatice que é responder a objecções, contra-exemplos e ideias alternativas com melhor poder explicativo. A estratégia a que deita mão consiste em insistir que para apontar para o inefável do qual não se pode falar temos de deitar pela janela fora a maneira normal como falamos, escrevemos, pensamos e avaliamos o que as outras pessoas falam, escrevem e pensam. O inefabilista insiste que temos de abandonar a lógica comum que usamos todos os dias para ir ao supermercado, porque é redutora; temos de abandonar o nosso sentido crítico comum, que nos faz desconfiar que quando um gajo na rua nos diz sem qualquer fundamento credível que viu ontem uma horda de extraterrestres a catar cães em Setúbal talvez ele não esteja a dizer a verdade, ainda que acredite no que diz.

De modo que a ideia do inefável faz o trabalho do costume, associado a todas as tradições sapienciais (que é como quem diz, a todas as tradições da trapaça intelectual): procura anular ou neutralizar as nossas capacidades críticas comuns. O inefabilista pode assim afirmar banalidades, falsidades patentes ou arbitrariedades comezinhas: será sempre interpretado como se estivesse a apontar para o inefável, que obriga precisamente a abandonar a maneira comum como usamos a linguagem e o pensamento.

Talvez tenha exagerado na minha caracterização do apelo do inefável e do papel nefasto que tem na vida intelectual. Talvez em muitos casos, a ideia de inefável seja apenas a manifestação da falta de cultura do inefabilista: ora porque não tem palavras para exprimir ideias e sentimentos complexos porque nunca se deu ao trabalho de alargar o seu domínio da sintaxe e da semântica da sua própria língua; ora porque desconhece a bibliografia da área. Um exemplo do segundo caso ocorre quando as pessoas — por vezes com formação universitária ou equivalente — falam do sentido da vida: porque nunca leram a bibliografia da área, pensam que é um tema que está nos limites do dizível, com um pé no inefável; bastaria ler alguma da bibliografia sobre o tema para perder essa mania. Um exemplo do segundo caso ocorre quando uma pessoa está perante conhecidas e comezinhas emoções e sentimentos complexos, ambíguos e opacos; mas porque a pessoa não conhece a literatura, a poesia e as muitas manifestações artísticas que exprimem e exploram precisamente essas emoções e sentimentos, declara-os inefáveis. Em ambos os casos a pessoa declara inefável o que efectivamente tem sido objecto de discurso sofisticado ao longo da história da humanidade, o que nos faz pensar, talvez injustamente, que ela considera inefável apenas o que não se deu ao trabalho de tentar compreender melhor porque talvez tenha preferido ficar a ver televisão.

Assim, parece razoável concluir que se exagerei quanto ao papel nefasto que tem a ideia do inefável na vida intelectual, não exagerei assim tanto. Pois seja por se basear na trapaça seja por manifestar ignorância e preguiça, a conversa do inefável raramente é sinal de trabalho intelectual profícuo.

Desidério Murcho

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ISSN 1749-8457