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Crítica
28 de Julho de 2008   Metafísica

Introdução à metafísica

Michael J. Loux
Tradução de Vítor Guerreiro

Sinopse

Os filósofos têm discordado acerca da natureza da metafísica. Aristóteles e os medievais dão-nos duas explicações diferentes da disciplina. Por vezes caracterizam-na como a tentativa de identificar as primeiras causas, em particular deus ou o motor imóvel; por vezes como a muito geral ciência do ser enquanto ser. Acreditavam, contudo, que estas duas caracterizações identificam uma só disciplina. Os racionalistas dos séculos XVII e XVIII, por contraste, alargaram o âmbito da metafísica. Entenderam que esta se ocupava não só da existência e natureza de deus, mas também da distinção entre mente e corpo, da imortalidade da alma e do livre-arbítrio.

Os empiristas e Kant eram críticos quer quanto à concepção aristotélica da metafísica quer quanto à concepção racionalista, argumentando que estas procuram transcender os limites do conhecimento humano; mas mesmo Kant pensou que pode haver um tipo legítimo de conhecimento metafísico. O seu objectivo é delinear as estruturas mais gerais que suportam o nosso pensamento acerca do mundo. Esta concepção kantiana da metafísica continua a gozar de alguma popularidade entre os filósofos contemporâneos, que insistem que a metafísica tem por objectivo a caracterização do nosso esquema conceptual ou enquadramento conceptual. Estes filósofos concordam tipicamente com Kant em que a estrutura do mundo nos é em si própria inacessível e que os metafísicos têm de se contentar em descrever a estrutura do nosso pensamento acerca do mundo.

A defesa desta concepção kantiana de metafísica não é, contudo, particularmente impressionante; pois se há problemas em caracterizar o mundo tal como é, devia haver problemas semelhantes em caracterizar o nosso pensamento acerca do mundo. Mas se concordamos que as metafísicas aristotélica ou racionalista não estão condenadas à partida, temos de conceder que as duas concepções sugerem tópicos muito diferentes para um manual de metafísica. Neste livro, seguiremos a caracterização aristotélica da metafísica como disciplina que se ocupa do ser enquanto ser. Esta caracterização dá lugar à tentativa de identificar os tipos ou categorias mais gerais em que se subsumem as coisas, e delinear as relações que se verificam entre estas categorias.

A natureza da metafísica — algumas reflexões históricas

Não é fácil dizer o que a metafísica é. Se se olha para as obras de metafísica encontra-se caracterizações bastante diferentes da disciplina. Por vezes estas caracterizações procuram ser descritivas, dar-nos uma explicação daquilo que fazem os filósofos a quem se chama “metafísicos”. Por vezes são normativas; representam tentativas de identificar o que os filósofos deviam estar a fazer quando fazem metafísica. Mas, descritivas ou normativas, estas caracterizações dão explicações tão diferentes do objecto de estudo e metodologia adequados à metafísica que é provável que o observador imparcial pense que têm de caracterizar disciplinas diferentes. O desacordo acerca da natureza da metafísica prende-se certamente com a sua longa história. Os filósofos têm feito ou procurado fazer algo a que têm chamado “metafísica” durante mais de 2000 anos; e o resultado dos seus esforços tem sido explicações com uma ampla diversidade de objectos de estudo e de abordagens. Mas a dificuldade de identificar um único objecto de estudo e metodologia da metafísica não é simplesmente imputável à longa história da disciplina. Mesmo nas suas origens há ambiguidade acerca do que a metafísica supostamente é, ao certo.

O termo “metafísica”, como nome da disciplina, é retirado do título de um dos tratados de Aristóteles. O próprio Aristóteles nunca se referiu ao tratado por esse nome; este foi conferido por pensadores posteriores. Aristóteles chamou à disciplina em causa no tratado filosofia primeira ou teologia, e sabedoria ao conhecimento que é o objectivo da disciplina. Ainda assim, o uso subsequente do título Metafísica torna razoável supor que aquilo a que chamamos “metafísica” é o género de coisa que se faz nesse tratado. Infelizmente, Aristóteles não nos dá uma única explicação do que ali faz. Em alguns contextos, diz-nos que aquilo que procura no tratado é um conhecimento de primeiras causas.1 Isto sugere que a metafísica é uma das disciplinas departamentais, uma disciplina com um objecto de estudo distinto do que é objecto de consideração de qualquer outra disciplina. Que objecto de estudo é identificado pela expressão “primeiras causas”? Talvez uma série de coisas diferentes; mas aqui é central deus ou o motor imóvel. Pelo que aquilo que depois se veio a chamar “metafísica” é uma disciplina que se ocupa de deus, e Aristóteles fala-nos bastante acerca da disciplina. Diz-nos que é uma disciplina teórica. Ao contrário das diversas artes que se ocupam da produção e das diversas ciências práticas (ética, economia, política) cujo fim é orientar a acção humana, a metafísica tem por objectivo a apreensão da verdade por si própria. Neste aspecto, concorda com as ciências matemáticas e as diversas ciências físicas. As primeiras têm por objecto de estudo quantidades (quantidades discretas no caso da aritmética e quantidades contínuas no caso da geometria), e as segundas ocupam-se da natureza e estrutura das substâncias imateriais ou físicas (tanto as vivas como as inanimadas) que compõem o mundo natural. A metafísica, por contraste, tem por objecto de estudo a substância imaterial.2 E a relação entre a disciplina e o seu objecto de estudo dá à metafísica um estatuto intrigante. Ao contrário das outras disciplinas, a metafísica não pressupõe simplesmente a existência do seu objecto de estudo; tem na verdade de provar que há uma substância imaterial que seja o seu objecto. Pelo que o projecto de provar que há um motor imóvel fora do mundo da natureza faz parte da própria metafísica; mas uma vez que Aristóteles pensa que só temos uma disciplina distinta quando temos um objecto de estudo distinto, está comprometido com a ideia de que os metafísicos podem estar seguros de que há uma disciplina na qual se empenharem desde que sejam bem-sucedidos em levar a cabo um dos projectos no programa da disciplina.

Mas Aristóteles não se satisfaz em descrever a metafísica como a investigação de primeiras causas. Também nos diz que é a ciência que estuda o ser enquanto ser.3 À medida que se expande esta caracterização, a metafísica acaba por não ser outra disciplina departamental com um objecto de estudo próprio. É, ao invés, uma ciência universal, que toma em consideração todos os objectos que há. Nesta caracterização, pois, a metafísica examina os itens que constituem o objecto de estudo das outras ciências. O que a metafísica tem de distinto é o modo como examina esses objectos; examina-os a partir de uma perspectiva particular, da perspectiva de serem seres, ou coisas que existem. Pelo que a metafísica considera as coisas como seres ou existentes e procura especificar as propriedades ou aspectos que estas exibem apenas na medida em que são seres, ou existentes. Consequentemente, procura compreender não só o conceito de ser, mas também conceitos muito gerais, como a unidade ou a identidade, a diferença, a semelhança e a dissemelhança, que se aplicam a tudo o que há. Também central para a metafísica, entendida como ciência universal, é a delineação daquilo a que Aristóteles chamou categorias. Estas são os tipos mais elevados ou mais gerais em que as coisas se subsumem. Supõe-se que a metafísica deve identificar esses tipos mais elevados, especificar os aspectos que são peculiares a cada categoria, e identificar as relações que ligam entre si as diferentes categorias; e ao fazê-lo, o metafísico dá-nos supostamente um mapa da estrutura de tudo o que há.

Encontramos então duas explicações diferentes do que é a metafísica, em Aristóteles. Por um lado, há a ideia de uma disciplina departamental ocupada com a identificação das primeiras causas — em particular, deus; e, por outro lado, há a ideia de uma disciplina universal ou perfeitamente geral cuja tarefa é considerar as coisas pela perspectiva de que se trata de seres ou existentes, e dar uma caracterização geral de todo o domínio do ser. À primeira vista parece haver uma tensão entre estas duas concepções da metafísica. É difícil compreender como uma única disciplina pode ser ao mesmo tempo departamental e universal. O próprio Aristóteles está aqui ciente da aparência de tensão, e esforça-se por mostrar que a tensão é apenas aparente.4 Por outro lado, sugere que uma ciência de primeiras causas irá identificar as causas subjacentes às características primárias das coisas, as características que são pressupostas por quaisquer outras características que as coisas possam exibir; e Aristóteles parece disposto a afirmar que visto que o ser ou existência de uma coisa é primário neste sentido, a ciência que estuda as primeiras causas será apenas a ciência que investiga o ser enquanto ser. Por outro lado, parece defender que qualquer disciplina que examine qualquer coisa na medida em que é um ser irá numerar deus entre os itens que procura caracterizar.

Na tradição aristotélica medieval, deparamo-nos continuamente com esta caracterização dual da metafísica; e, como Aristóteles, os medievais acreditavam que as duas concepções da metafísica se realizam numa única disciplina, que procura simultaneamente delinear a estrutura categorial da realidade e estabelecer a existência e natureza da substância divina. Mas quando encontramos os textos metafísicos dos racionalistas seiscentistas e setecentistas do continente, deparamo-nos com uma concepção da metafísica que alarga o âmbito da empresa metafísica. Embora tenham rejeitado muitos detalhes da teoria metafísica de Aristóteles concordaram que o que está em causa ao fazer-se metafísica é a identificação e caracterização dos tipos mais gerais de coisas que há, e concordaram que uma parte central desta tarefa está na referência à substância divina e ao seu papel causal. Não obstante, veio-se a considerar como objectos adequados da investigação metafísica tópicos que não figuram como itens no programa metafísico aristotélico. Para Aristóteles, o exame dos objectos físicos mutáveis, a delineação do hiato entre os seres vivos e os inanimados e a identificação do que é peculiar aos seres humanos são tudo coisas que se deve levar a cabo no contexto da ciência natural, ou física, e não na metafísica.

Mas os racionalistas, confrontados com uma paisagem intelectual em que a física aristotélica é substituída pela explicação mais matemática e mais experimental da nova física, pensaram que estas questões eram metafísicas. Do seu ponto de vista, a metafísica não se ocupava simplesmente da existência e natureza de deus, mas da distinção entre a mente e o corpo, a sua relação nos seres humanos e a natureza e extensão do livre-arbítrio.

Uma pessoa formada na tradição aristotélica ficaria intrigada com este novo uso do termo “metafísica” e provavelmente faria a acusação de que, nas mãos dos racionalistas, o que supostamente era uma única disciplina com um único objecto de estudo acaba por ser o exame de uma mistura confusa de tópicos irrelacionados. Evidentemente, os racionalistas eram sensíveis a este tipo de acusação e procuraram dar uma justificação para o redesenhar das fronteiras disciplinares no interior da filosofia. O que daí surgiu por último foi um mapa geral do terreno metafísico.5 A afirmação é a de que a metafísica tem um único objecto de estudo; trata-se do ser. Pelo que o metafísico procura dar uma explicação da natureza do ser; mas há uma diversidade de perspectivas a partir das quais se pode dar essa explicação, e a estas diferentes perspectivas correspondem diferentes subdisciplinas dentro da metafísica. Em primeiro lugar, pode-se examinar o ser a partir da perspectiva de que é precisamente isso — ser. Como isto representa a perspectiva mais geral a partir da qual se pode considerar o ser, a divisão da metafísica que considera o ser a partir desta perspectiva foi designada metafísica geral. Mas os racionalistas insistiram que também podemos examinar o ser a partir de uma diversidade de perspectivas mais especializadas. Quando o fazemos, damos continuidade a uma ou outra divisão daquilo a que os racionalistas chamaram metafísica especial. Assim, podemos considerar o ser como o encontramos nas coisas mutáveis; podemos, isto é, considerar o ser a partir da perspectiva da sua mutabilidade. Fazê-lo é empenhar-se na cosmologia. Podemos, também, considerar o ser como o encontramos em seres racionais como nós. Considerar o ser a partir desta perspectiva é dar continuidade a uma divisão da metafísica especial a que os racionalistas chamam psicologia racional. Por fim, podemos examinar o ser como se mostra no caso do divino, e examinar o ser a esta luz é empenhar-se na teologia natural. É bastante claro que as noções racionalistas de metafísica geral e teologia natural correspondem às concepções aristotélicas de metafísica como ciência verdadeiramente universal, que estuda o ser enquanto ser, e como disciplina departamental, que se ocupa das primeiras causas; ao passo que a afirmação de que a metafísica incorpora a cosmologia e a psicologia racional como divisões exprime o âmbito novo e alargado que o esquema racionalista associa à metafísica.

Mas não era apenas no objecto de estudo que a metafísica racionalista diferia da de Aristóteles. A abordagem de Aristóteles das questões metafísicas foi cautelosa. Ao delinear as categorias, Aristóteles tentou permanecer fiel à nossa concepção pré-filosófica do mundo. Do modo como ele via as coisas, as entidades inteiramente reais ou metafisicamente básicas são os objectos familiares do senso comum — coisas como cavalos individuais e seres humanos individuais. E mesmo na sua explicação de deus ou do motor imóvel, estava ansioso por mostrar a continuidade entre a sua explicação filosófica e as nossas crenças pré-filosóficas acerca da estrutura causal do mundo. O resultado foi uma metafísica relativamente conservadora. As teorias metafísicas dos racionalistas, por contraste, eram tudo menos conservadoras. Nas suas mãos, a metafísica resulta em sistemas especulativos abstractos, muito afastados de qualquer imagem do mundo que seja reconhecidamente de senso comum. Aqui, basta percorrer superficialmente as palavras de um pensador como Espinosa ou Leibniz para apreciar a extravagância da metafísica racionalista.

A natureza altamente abstracta e especulativa da metafísica racionalista fez dela um alvo natural para as críticas dos pensadores empiristas. Os empiristas insistiram que qualquer afirmação de conhecimento tem de se justificar por referência à experiência sensorial; e argumentaram que visto que nenhuma experiência poderia alguma vez justificar as afirmações que constituíam os sistemas racionalistas, as afirmações dos racionalistas, de que davam conhecimento científico da natureza da realidade, eram espúrias.6 Na verdade, os empiristas afirmaram amiúde a proposição mais forte de que as afirmações características da metafísica racionalista não tinham significado. Os empiristas defendiam que todas as nossas representações conceptuais derivam do conteúdo da nossa experiência sensorial. Consequentemente, insistiram que uma afirmação tem conteúdo cognitivo genuíno ou significado só se os termos que usa são susceptíveis de análise ou explicação em termos de conteúdos puramente sensoriais. Como as afirmações dos metafísicos racionalistas não passam este teste, os empiristas concluíram que eram meros sons sem sentido.

No trabalho de Kant, encontramos uma crítica posterior à empresa metafísica.7 Na explicação de Kant, o conhecimento humano implica a interacção de conceitos inatos às faculdades cognitivas humanas com os dados brutos da experiência sensorial. Os dados sensoriais são os efeitos, nas nossas faculdades subjectivas sensoriais, de um mundo exterior a essas faculdades. Os dados são estruturados ou organizados por meio de conceitos inatos, e o resultado é um objecto de conhecimento. Pelo que aquilo a que chamamos “objecto de conhecimento” não é uma coisa exterior e independente da nossa maquinaria cognitiva; é o produto da aplicação de estruturas conceptuais inatas aos estados subjectivos das nossas faculdades sensoriais. O mundo que produz esses estados subjectivos é algo que, como é em si próprio, nos é inacessível; apreendemo-lo apenas como nos afecta, apenas como nos aparece. Um objecto de conhecimento, então, requer os conteúdos sensoriais dos empiristas; mas requer mais do que isso. Os conteúdos têm de ser unificados e organizados por estruturas conceptuais que não têm origem na nossa experiência sensorial. Kant, contudo, quer insistir que tal como os conteúdos sensoriais só constituem um objecto de conhecimento quando são estruturados pelos conceitos inatos, as estruturas conceptuais inatas só produzem um objecto de conhecimento quando se aplicam aos conteúdos sensoriais, a que dão princípios de unidade e organização.

Como Kant viu, a metafísica, quer a variante racionalista quer a aristotélica, representa a tentativa de conhecer o que ultrapassa o âmbito da experiência sensorial humana. Procura responder a questões para as quais a experiência sensorial é incapaz de dar respostas, questões acerca da imortalidade da alma, da existência de deus e do livre-arbítrio. Promete-nos conhecimento acerca destas matérias. Na tentativa de proporcionar o conhecimento prometido, contudo, o metafísico usa as estruturas conceptuais que subjazem a formas menos controversas de conhecimento, estruturas como as que entram no discurso acerca de substâncias, causalidade e acontecimentos. Mas uma vez que as estruturas relevantes só produzem conhecimento quando aplicadas aos dados brutos da experiência sensorial, o uso que o filósofo faz dessas estruturas para responder às questões perenes da metafísica nunca resulta no conhecimento que o metafísico nos promete. Dado o modo como a nossa maquinaria cognitiva funciona, as condições requeridas para o conhecimento nunca podem ser satisfeitas no caso da metafísica. As afirmações que o metafísico quer fazer ultrapassam os limites do conhecimento humano. Consequentemente, nunca pode haver conhecimento genuinamente científico na metafísica.

Para dar ênfase a este aspecto da metafísica tradicional, Kant chama-lhe metafísica transcendente. Kant contrasta a metafísica transcendente com aquilo a que chama metafísica crítica. A metafísica crítica, segundo nos diz, é um empreendimento legítimo, perfeitamente respeitável. Enquanto a metafísica transcendente procura caracterizar uma realidade que transcende a experiência sensorial, a metafísica crítica tem por tarefa a delineação dos aspectos mais gerais do nosso pensamento e conhecimento. Procura identificar os conceitos mais gerais que entram na nossa representação do mundo, as relações que se verificam entre estes conceitos e os pressupostos do seu uso objectivo. O projecto definido pela metafísica crítica é precisamente o projecto que o próprio Kant considera levar a cabo quando nos dá a sua própria explicação das condições do conhecimento humano.

A concepção de Kant, de um empreendimento metafísico cuja tarefa é identificar e caracterizar os aspectos mais gerais do nosso pensamento e experiência continua a encontrar defensores nos nossos dias.8 Estes filósofos dizem-nos que a metafísica é um empreendimento descritivo cujo objectivo é a caracterização do nosso esquema conceptual ou enquadramento conceptual. Do modo como estes filósofos vêem as coisas, qualquer pensamento ou experiência que possamos ter envolve a aplicação de um só corpo unificado de representações. Esse corpo de representações constitui algo como uma imagem de como as coisas são; é um tipo de história que contamos acerca do mundo e do nosso lugar nele. A história tem uma estrutura característica: está organizada por meio de conceitos muito gerais, e o uso desses conceitos é regulado por princípios (amiúde chamados “princípios de enquadramento”). O objectivo da metafísica é simplesmente delinear essa estrutura nos seus contornos mais gerais.

Os filósofos que subscrevem esta ideia de esquema conceptual ou enquadramento conceptual não concordam todos entre si quanto ao estatuto de que goza a nossa imagem do mundo. Embora não subscrevam os detalhes da própria perspectiva de Kant sobre o conhecimento humano, alguns defensores da ideia de esquema conceptual concordam com Kant em que há uma única estrutura imutável que subjaz a tudo o que se possa chamar conhecimento ou experiência humanos. Outros enfatizam o carácter dinâmico e histórico do pensamento humano e falam de enquadramentos conceptuais alternativos. Vêem grandes mudanças conceptuais, como a revolução científica em que a teoria da relatividade tomou o lugar da mecânica newtoniana, como exemplos em que um esquema conceptual é rejeitado a favor de uma imagem do mundo nova e diferente. Para pensadores do género anterior, a metafísica tem um objecto de estudo estável e imutável: a única maneira peculiarmente humana de representar o mundo; para os últimos, a tarefa da metafísica é comparativa: procura mostrar as diferentes formas presentes nos esquemas alternativos que desempenharam historicamente um papel nas nossas tentativas de representar o mundo.

Os filósofos de ambos os géneros opõem-se inequivocamente aos que defendem uma concepção mais tradicional, pré-kantiana, da metafísica. Os filósofos que levam a sério a noção de esquema conceptual considerarão que a metafísica se ocupa da nossa maneira ou maneiras de representar o mundo. Quer limitem o objecto de estudo da metafísica aos itens do programa aristotélico quer sigam os racionalistas ao alargar o âmbito da metafísica para incluir tópicos como o problema da mente-corpo, a imortalidade da alma e o livre-arbítrio, os filósofos que vêem a metafísica em termos pré-kantianos entendem que a sua tarefa é dar uma explicação da natureza e estrutura do próprio mundo. Uma investigação da estrutura do pensamento humano é, contudo, algo muito diferente de uma investigação da estrutura do mundo acerca de que o pensamento é. Obviamente, se se acredita que a estrutura do nosso pensamento reflecte ou espelha a estrutura do mundo, então poder-se-á afirmar que as duas investigações têm de ter o mesmo resultado. Mas os filósofos que são atraídos pelo discurso acerca de esquemas conceptuais, tipicamente, não aceitam isto. Afirmam que a metafísica tem por objecto de estudo a estrutura do nosso esquema conceptual, ou esquemas, precisamente porque, como Kant, pensam que o mundo tal como realmente é é algo a que não temos acesso.

Por que pensam isto? Porque concordam com Kant em que o nosso pensamento acerca do mundo é sempre mediado pelas estruturas conceptuais em termos das quais representam esse mundo. No seu entender, para pensar em qualquer coisa exterior às minhas faculdades cognitivas, tenho de aplicar conceitos que representam a coisa de uma ou outra maneira, pertencendo a algum tipo ou caracterizada de algum modo; mas, então, o que apreendo não é o objecto como realmente é, independentemente do meu pensamento acerca dele. O que apreendo é o objecto tal como o conceptualizo ou represento, pelo que o objecto do meu pensamento é algo que, pelo menos em parte, é o produto do aparelho conceptual ou representacional que ponho em funcionamento ao pensar. O que tenho não é a coisa como é em si, mas a coisa tal como figura na história que dela narro ou na imagem que dela construo.

Alguns dos que invocam a ideia de esquema conceptual (podíamos chamar-lhes esquemistas conceptuais) vão mais além e afirmam que a própria ideia de um objecto separado e independente do esquema conceptual por meio do qual formamos as nossas representações é incoerente.9 Nesta perspectiva radical, tudo o que há é o esquema conceptual, ou esquemas. Nada mais há do que as histórias que contamos, as imagens que construímos. Aquilo a que chamamos a existência de um objecto é apenas a questão de algo figurar numa história; e aquilo a que chamamos a verdade das nossas crenças é apenas uma questão das diversas componentes de uma história encaixarem umas nas outras ou de serem coerentes entre si.

Esta versão mais radical da perspectiva do esquema conceptual é uma versão daquilo a que se tem chamado idealismo, e é uma perspectiva extremamente difícil de articular coerentemente. Se defendemos que nada há senão as histórias que os seres humanos constroem, o que diremos então dos seres humanos que supostamente as constroem? Se estes estão realmente ali a construi-las, então não é verdadeiro que nada haja além das histórias que se constrói; e não é verdadeiro que existir seja apenas ser personagem numa história. Se, por outro lado, nós, seres humanos, formos apenas outros tantos personagens nas histórias, será então verdade que há algumas histórias para contar? Ou será o facto de se construir todas estas histórias apenas mais uma história? E será em si esta nova história (a história de que as histórias originais são contadas) apenas mais uma história?

Como sugeri, nem todos os esquemistas conceptuais subscrevem a perspectiva mais radical que temos vindo a discutir; mas mesmo o esquemista que concede que a ideia de um item que existe independentemente de um esquema conceptual é coerente negará que quaisquer objectos desses, tal como poderão efectivamente existir, possam constituir os objectos do estudo metafísico. Quaisquer itens desse género, insistirão os esquemistas, são apreendidos apenas por meio das estruturas conceptuais que pomos em funcionamento na representação que fazemos desses itens. Estas estruturas constituem um tipo de cortina que nos impede o acesso às coisas como realmente são. Consequentemente, mesmo o esquemista conceptual moderado negará que seja possível fazer o que o metafísico tradicional quer fazer — dar conhecimento da estrutura última da realidade; afirmará que a haver um empreendimento com a generalidade, sistematicidade e exaustividade que os filósofos têm querido reivindicar para a metafísica, esse empreendimento não pode consistir seja no que for que ultrapasse a caracterização da estrutura mais geral do nosso esquema conceptual, ou esquemas.

Que resposta darão os metafísicos tradicionais a esta perspectiva neokantiana? Muito provavelmente, argumentarão que se o esquemista conceptual tem razão ao negar que o mundo como realmente é pode ser objecto de investigação filosófica séria, então o esquemista não tem razão ao supor que um esquema conceptual pode sê-lo. A premissa central no argumento do esquemista contra a metafísica tradicional é a afirmação de que a aplicação de estruturas conceptuais na representação das coisas nos impede o acesso genuíno a essas coisas; mas o defensor da metafísica tradicional chamará a atenção para o facto de termos de usar conceitos na nossa caracterização daquilo a que o esquemista chama enquadramento conceptual, e concluirá que, segundo os próprios princípios do esquemista, isso implica que não se pode caracterizar a natureza e estrutura de um esquema conceptual. Pelo que os metafísicos tradicionais argumentarão que se a sua concepção da metafísica é problemática, também a do esquemista o é. Mas os metafísicos tradicionais insistirão que há aqui uma lição mais profunda. A lição é que há algo de autoderrotante na explicação que o esquemista conceptual dá de representação conceptual. Se o esquemista conceptual tem razão ao afirmar que a actividade da representação conceptual nos impede de apreender seja o que for que procuremos representar, então por que haveríamos de levar a sério as afirmações do esquemista acerca da representação conceptual? Essas afirmações, afinal de contas, são apenas outras tantas representações conceptuais; mas, então, longe de revelar a natureza da actividade de representação conceptual, as afirmações parecem impedir a nossa apreensão daquilo acerca do qual essas afirmações supostamente são — a actividade de representação conceptual.

Os metafísicos tradicionais passarão a insistir que conseguimos pensar e falar acerca das coisas — as coisas como realmente são e não apenas como figuram nas histórias que contamos. Insistirão que a própria ideia de pensar acerca das coisas ou de as referir pressupõe que há relações que ligam os nossos pensamentos e palavras às coisas, independentemente da mente e independentemente da linguagem, em que pensamos e acerca de que falamos; e insistirão que longe de nos impedir o acesso às coisas, os conceitos que usamos ao pensar são os veículos para apreender as coisas a que se aplicam. Não são cortinas ou barreiras entre nós e as coisas; são, pelo contrário, os nossos caminhos para nos levar aos objectos, os nossos modos de obter acesso a eles. E os metafísicos tradicionais argumentarão que não há qualquer razão para supor que tem de ser de outra forma com os conceitos que os metafísicos tradicionais usam na sua tentativa de nos dar uma explicação acerca do que há e da sua estrutura geral. Concederão que os metafísicos se podem enganar, que pode haver afirmações metafísicas falsas; mas insistirão que o perigo de falsidade não é mais grave aqui do que em qualquer outra disciplina em que procuramos dizer como as coisas são. Pode ser difícil dar uma caracterização verdadeira da natureza da realidade, mas isso não significa que é impossível.

Os defensores de uma concepção kantiana da metafísica insistirão que as questões à volta desta debate são mais complexas e mais difíceis do que o metafísico tradicional sugere; e que embora a início nos possamos sentir solidários com o metafísico tradicional, temos de conceder que este debate acerca da metodologia adequada à metafísica depende da questão muito mais vasta da relação entre o pensamento e o mundo. Esta questão dirige-se ao núcleo de qualquer caracterização do ser e conta como metafísica segundo quaisquer critérios. É, contudo, uma questão de tal maneira importante que não pode ser resolvida nos parágrafos introdutórios de um livro sobre metafísica. A caracterização da relação entre o nosso pensamento ou linguagem e o mundo requer um tratamento separado e extenso; e o último capítulo deste livro será dedicado a essa questão. Aí, examinaremos detalhadamente o desafio que os filósofos de inclinação kantiana — anti-realistas, como amiúde se lhes chama — apresentam à explicação tradicional da relação entre o pensamento e o mundo. Entretanto, contudo, precisamos de uma concepção de metafísica para nos orientarmos; e a estratégia será assumir, provisoriamente, a abordagem tradicional pré-kantiana.

A metafísica como teoria categorial

O objectivo será caracterizar a natureza da realidade, dizer como as coisas são. Como vimos, diferentes tradições associam objectos de estudo diferentes a este projecto. Na tradição aristotélica, há a ideia de uma ciência que estuda o ser enquanto ser. Mesmo que haja uma única ciência que corresponda às duas ideias, estas parecem diferentes, pelo menos a início. A ideia de uma ciência geral que estuda os seres a partir da perspectiva de que são seres corresponde àquilo a que os racionalistas chamavam metafísica geral; e uma tarefa central sugerida pela ideia de uma ciência de primeiras causas corresponde à tarefa associada com a divisão da metafísica especial que os racionalistas designavam teologia natural; e temos as duas outras divisões da metafísica especial — a cosmologia, que dá uma caracterização do mundo material, mutável, e a psicologia racional, que lida, entre outras coisas, com o problema da mente-corpo e, supostamente, com o problema do livre-arbítrio.

Muitos livros introdutórios de metafísica estão de acordo com o mapa racionalista da disciplina. Na verdade, focam-se nas questões a que os racionalistas chamavam metafísica especial. Assim, questões acerca da existência e natureza de deus, questões acerca da natureza dos seres humanos e do problema da mente-corpo, e questões acerca do livre-arbítrio, ocuparão o primeiro plano. Esta estratégia é perfeitamente adequada. Desde o século XVII que se designa todas estas questões por metafísica. Uma estratégia diferente para construir um texto introdutório em metafísica é, contudo, igualmente defensável. Esta estratégia limita, grosso modo, os tópicos a ser discutidos aos que se subsumem na rubrica da ciência aristotélica do ser enquanto ser, ou da ciência racionalista da metafísica geral.

Esta maneira de abordar a metafísica é sustentada por diversas considerações. Os filósofos contemporâneos dividem a filosofia de maneiras que não respeitam as fronteiras disciplinares da explicação racionalista. Os tópicos que eram centrais nas diversas divisões daquilo a que os racionalistas chamavam metafísica especial são agora discutidos em subdisciplinas da filosofia que não se ocupam essencial ou exclusivamente de tópicos metafísicos. O foco da teologia natural, por exemplo, era a existência e natureza de deus; agora lida-se tipicamente com esse conjunto de questões naquilo a que chamamos filosofia da religião, uma subdisciplina da filosofia que trata um âmbito muito mais vasto de questões do que a antiquada teologia natural. Lida com questões epistemológicas acerca da racionalidade da crença religiosa em geral, assim como com a racionalidade de crenças religiosas particulares, questões acerca da relação entre a religião e a ciência, e questões acerca da relação entre a religião e a moralidade. Os filósofos da religião chegam a discutir questões que faziam parte daquilo a que os racionalistas chamavam psicologia racional — questões acerca da sobrevivência pessoal e da imortalidade. Outras questões que se discutia na psicologia racional subsumem-se agora naquilo a que chamamos filosofia da mente; mas apesar de os filósofos da mente se preocuparem com questões metafísicas acerca da existência e natureza da mente, também se preocupam com muitas outras coisas. Levantam questões epistemológicas acerca do conhecimento dos nossos estados mentais e dos de outras pessoas; e passam muito tempo a tentar clarificar a natureza da explicação na psicologia e nas ciências cognitivas. Por vezes, encontramos os filósofos da mente a levantar questões acerca do livre-arbítrio, mas este problema é provavelmente discutido noutra parte diferente da filosofia a que se chama teoria da acção. Os filósofos contemporâneos usam tipicamente o termo “metafísica” para se referirem a uma divisão da filosofia diferente de cada uma destas divisões; e quando o fazem, aquilo de que falam é algo não muito distante daquilo a que os racionalistas chamavam metafísica geral e a que Aristóteles se referia como a ciência que estuda o ser enquanto ser.

Pelo que o modo como se organiza os textos introdutórios em metafísica não reflecte o modo como os filósofos hoje usam tipicamente o termo “metafísica”. Uma consequência é que aquelas que são as questões centrais naquilo a que hoje em dia chamamos metafísica não são muito discutidas de um modo introdutório. E isso é lamentável, visto que essas questões são tão fundamentais como quaisquer outras questões filosóficas. Pelo que há um argumento a favor de um texto introdutório de metafísica que investigue o ser enquanto ser; mas há outro. A série de que este livro faz parte terá textos de filosofia da religião e de filosofia da mente; nestes volumes abordar-se-á tópicos como a existência e natureza de deus e o problema da mente-corpo. O volume de metafísica deve focar-se em questões diferentes, e fá-lo-á. Focar-se-á nas questões que surgem quando tentamos dar uma explicação geral da estrutura de tudo o que há.

Mas que questões são essas? Ao discutir a concepção aristotélica da metafísica como disciplina perfeitamente geral, afirmei que um objectivo central de tal disciplina é a identificação e caracterização das categorias em que se subsumem as coisas. Não seria inexacto afirmar que isto é o que a metafísica, como entendida nos dias de hoje, procura alcançar. Mas o que é ao certo identificar as categorias em que se subsumem as coisas? Como vimos, Aristóteles pensava que as categorias são os tipos mais elevados ou gerais sob os quais se pode classificar as coisas. Isto sugere que o que os metafísicos fazem é pegar em todas as coisas que há e dispô-las segundo os tipos mais gerais em que se subsumem. Segundo Aristóteles, as categorias em que algo se subsume permitem-nos dizer o que a coisa é. Pareceria, então, que a identificarem as categorias mais elevadas, os metafísicos deviam procurar as respostas mais gerais à pergunta “O que é?” Uma maneira pela qual pareceriam fazê-lo seria tomar um objecto familiar, como Sócrates, e colocar a questão “O que é ele?” A resposta óbvia é “um ser humano”. Mas embora “ser humano” discrimine um tipo em que Sócrates se subsume, há respostas mais gerais à pergunta “Que tipo de coisa é Sócrates?” Ele é, afinal de contas, um primata, um mamífero, um vertebrado e um animal. Identificar a categoria a que Sócrates pertence é identificar o fim ou a paragem final nesta lista de respostas cada vez mais gerais à pergunta “O que é?” E quando temos isso? A resposta canónica é que chegamos à categoria de uma coisa quando chegamos a uma resposta tal à pergunta “O que é?” que a única reposta mais geral seja dada por um termo como “entidade”, “ser”, “coisa” ou “existente”, que se aplica a tudo o que há. Aristóteles pensou que a resposta relevante para Sócrates é dada pelo termo “substância”, pelo que Aristóteles entendeu que substância era a categoria em que Sócrates e outros seres vivos se subsumem.

Poderá parecer que se os nossos metafísicos querem produzir a lista completa de categorias, têm apenas de aplicar o tipo de procedimento pergunta-e-resposta que usaram no exemplo de Sócrates e de outros objectos. Desde que escolham as suas amostras de uma maneira sensível às diferenças entre as coisas, darão consigo a descobrir categorias novas e diferentes. A dada altura, contudo, descobrirão que não surgem mais categorias novas. Repetir o procedimento trá-los simplesmente de volta às categorias que já isolaram. Nessa fase, podem ficar confiantes, ainda que sujeitos a preocupações normais acerca da adequação de procedimentos indutivos, de que identificaram todos os tipos ou categorias de ser mais elevados.

Esta é uma maneira de pensar acerca de categorias e do seu papel no empreendimento da metafísica. É, na verdade, a maneira como muitos metafísicos vêem toda a actividade de identificação categorial. Infelizmente, tem graves insuficiências enquanto explicação daquilo que se passa na metafísica. Para começar, faz da metafísica uma grande chatice. Inventar uma tabela de categorias é simplesmente um procedimento mecânico de encontrar as respostas mais gerais à pergunta “O que é?”; e é difícil compreender como um procedimento que exige tão pouca imaginação pode ter ocupado os esforços das maiores mentes da humanidade durante mais de 2000 anos. Por outro lado, a explicação torna difícil compreender como podia haver desacordos ou disputas interessantes em metafísica. Nesta perspectiva, se dois metafísicos nos dão diferentes listas de categorias, só pode ser porque pelo menos um deles cometeu um erro indutivo, tendo sido incapaz de aplicar o procedimento de pergunta-e-resposta a uma amostra adequada de objectos, ou estava confuso acerca da maneira como funcionam os termos classificativos na nossa linguagem. A verdade, contudo, é que nada é mais comum em metafísica do que o debate e a controvérsia; e os adversários nos debates metafísicos são tipicamente pensadores perspicazes e lúcidos, que pouco provavelmente serão culpados de lapsos intelectuais grosseiros.

Mas as dificuldades com esta compreensão das categorias e a natureza da metafísica vão mais fundo. A imagem pressupõe que os metafísicos iniciam o seu trabalho confrontados com uma totalidade de objectos improblematicamente dada e que o seu trabalho é encontrar nichos onde colocar os objectos dessa totalidade. A verdade, contudo, é que os filósofos que discordam acerca de categorias discordam acerca de que objectos há. Não há qualquer conjunto dado de antemão acerca do qual todos os metafísicos concordem. As disputas em metafísica são tipicamente disputas sobre como se deve responder à pergunta “Que objectos há?” e dar listas alternativas de categorias é apenas dar respostas diferentes a esta pergunta.

Um exemplo simples permite-nos compreender a natureza das disputas metafísicas. Considere os saltos mortais. “Salto mortal” é um termo que as pessoas que falam português, na sua maioria, sabem usar; todos o aplicamos mas ou menos às mesmas situações e abstemo-nos de o fazer mais ou menos nas mesmas situações; e usamo-lo para exprimir crenças que partilhamos maioritariamente, crenças acerca do que são saltos mortais, crenças acerca de quando aconteceu um, crenças acerca de quando um foi bem executado, e por aí em diante. Podemos imaginar dois filósofos reagindo a estes factos acerca do termo “salto mortal” de maneiras muito diferentes. Um deles diz-nos que há saltos mortais. Ele ou ela diz-nos que um salto mortal é simplesmente a rotação total daquilo que tipicamente é um corpo humano, ora executado para a frente ora para trás. Ele ou ela insistirá que visto que ocorreram muitas de tais rotações, houve muitos saltos mortais, e afirma que a menos que suponhamos que há saltos mortais, seremos incapazes de explicar como afirmações como

  1. George executou cinco saltos mortais entre as 15 horas e as 16 horas de Quinta-feira.

podem ser verdadeiras. O outro filósofo, contudo, discorda. Ele ou ela nega que haja saltos mortais. Concede que as pessoas e alguns animais executam a rotação da maneira relevante, mas nega que isto implique a existência de uma classe especial de entidades, os saltos mortais. Concede igualmente que muitas afirmações como 1 são verdadeiras, mas, mais uma vez, nega que isto implique a existência de um tipo especial de entidade. O que faz a afirmação 1 ser verdadeira, insiste o nosso filósofo ou filósofa, é simplesmente o facto de George ter dado cinco cambalhotas durante o período de tempo relevante.

Acerca de que discordam os nossos dois filósofos? Seguramente não discordam acerca de como usamos o termo “salto mortal” no nosso discurso trivial, pré-filosófico, acerca do mundo, nem discordam acerca do valor de verdade de afirmações como 1. Discordam acerca de os factos relevantes do uso trivial e da verdade das afirmações pré-filosóficas relevantes nos exigirem ou não que reconheçamos os saltos mortais na nossa história filosófica “oficial” acerca do mundo e das coisas que nele acontecem; discordam acerca de as coisas como saltos mortais deverem ou não entrar no nosso inventário filosófico “oficial” das coisas que há. A tal inventário “oficial” chama-se normalmente ontologia. Usando este termo, podemos afirmar que os nossos dois filósofos discordam acerca de a nossa ontologia dever ou não incluir saltos mortais. A disputa entre eles é uma disputa metafísica. Não é, contudo, o género de disputa de que os metafísicos sérios provavelmente se ocupem. Não é que todos os metafísicos pensem que a nossa ontologia tem de incluir saltos mortais; não pensam. A razão por que os metafísicos não se ocupariam com argumentos acerca do estatuto de saltos mortais é a de que o tópico dos saltos mortais é demasiado específico, demasiado local. O desacordo entre os nossos dois filósofos, contudo, generaliza-se facilmente; e quando o é, torna-se o género de disputa de que os metafísicos caracteristicamente se ocupam. O filósofo que afirma que temos de reconhecer a existência de saltos mortais não faz essa afirmação a partir de qualquer afecto especial por saltos mortais. Quase de certeza, a afirmação inspira-se na crença que o filósofo tem na existência de coisas de um tipo mais geral. É porque ele / ela acredita que os acontecimentos em geral têm de entrar na nossa ontologia que faz a sua afirmação acerca de saltos mortais. Da mesma maneira, o seu adversário nega que haja saltos mortais, não porque ele / ela tenha um preconceito especial contra saltos mortais, mas porque nega que a nossa história “oficial” do mundo deva fazer referência a acontecimentos. Pelo que a disputa acerca de saltos mortais tem origem numa disputa mais geral. A disputa mais geral é uma disputa categorial. Um filósofo acredita que devemos abraçar a categoria dos acontecimentos; o outro nega isto.

Discordar acerca de categorias, então, é discordar acerca de que coisas existem; e muitas das principais disputas na metafísica são disputas deste género. Embora funcionem a um nível mais geral do que a disputa acerca de saltos mortais, exibem amiúde uma determinada estrutura. Temos uma disputa organizada à volta de uma questão acerca da existência de coisas de um tipo ou categoria muito geral. Há propriedades? Há relações? Há acontecimentos? Há substâncias? Há proposições? Há estados de coisas? Há mundos possíveis? Em cada caso, há um corpo de factos pré-filosóficos que funcionam como dados para a disputa. Uma parte na disputa insiste que para explicar os factos pré-filosóficos relevantes temos de responder afirmativamente à questão existencial. A outra parte afirma que há algo de filosoficamente problemático em admitir entidades do género relevante na nossa ontologia, e argumenta que podemos explicar os factos pré-filosóficos sem o fazer.

Nem sempre, contudo, as disputas acerca de categorias têm precisamente esta forma. Nem sempre encontramos as partes em disputa dando respostas antagónicas à questão com a forma “Há Cs?” (em que C é um termo para categoria). Por vezes encontramo-los concordando que existem entidades desta ou daquela categoria; mas, então, uma parte prossegue e diz-nos que embora haja efectivamente entidades correspondentes à categoria, todas são analisáveis em termos de entidades de outra categoria. Suponha-se que a disputa se centra nos objectos materiais. Embora ambas as partes concordem que há objectos materiais, uma parte diz-nos que os objectos materiais são analisáveis como colecções de qualidades sensoriais. É provável que o interlocutor na disputa responda afirmando: “Olhe, você não pensa realmente que há objectos materiais. Apenas profere as palavras. Na sua perspectiva, não há realmente objectos materiais; há apenas qualidades sensoriais”. Em resposta, o outro interlocutor irá sem dúvida objectar que acredita realmente haver objectos materiais. “Não nego que os objectos materiais existem; digo-lhe apenas como são”. É difícil saber como resolver o argumento acerca do termo “existe”; mas seja como for que o resolvamos, temos de conceder que há aqui um profundo desacordo metafísico, um desacordo que é, em sentido lato, existencial. Uma maneira de exprimir o desacordo é afirmar que enquanto um metafísico quer incluir os objectos materiais entre os elementos primitivos ou básicos da sua ontologia, o outro não o quer fazer. O primeiro nega que se possa analisar os objectos materiais em termos de entidades mais básicas ou reduzi-los a estas; o último entende que os objectos materiais são meras construções feitas a partir de entidades mais fundamentais. Embora afirme que há objectos materiais, quando olhamos para os itens primitivos da sua ontologia (isto é, os itens que na sua ontologia não são redutíveis a entidades de um tipo mais básico), não encontramos quaisquer objectos materiais, apenas qualidades sensoriais. No nível mais baixo, então, não há quaisquer objectos materiais na sua ontologia. Na sua teoria metafísica, os objectos materiais não estão entre os “alicerces” básicos da realidade. Podemos afirmar que enquanto os objectos materiais constituem uma categoria primitiva ou inderivada na ontologia de um filósofo, constituem uma categoria derivada na do outro.

Pelo que as disputas acerca de categorias são disputas acerca da existência de entidades de algum tipo ou categoria muito geral. Por vezes as partes em disputa discordam quanto à existência de entidades do tipo relevante; por vezes discordam acerca de as entidades da categoria serem ou não redutíveis a entidades de uma categoria mais básica. Dar uma teoria metafísica completa é dar um catálogo completo das categorias em que se subsumem as coisas e identificar os géneros de relações que se verificam entre essas categorias. A última tarefa implica a identificação de determinadas categorias como básicas e de outras como derivadas, e uma especificação de como, exactamente, se reduz ou analisa as entidades de categorias derivadas em termos de entidades das categorias básicas. Um catálogo completo deste género representaria uma explicação geral de tudo o que há. Aristóteles acreditava que o objectivo da empresa metafísica é uma explicação deste género. Poucos metafísicos hoje estão prontos para dar este tipo de teoria completa das categorias. As questões que rodeiam cada uma das categorias que historicamente têm sido o foco da teorização metafísica são tão complexas que os metafísicos contemporâneos se satisfazem se puderem trabalhar um punhado que seja destes conjuntos de questões. Neste livro, vou seguir a sua esteira. Não vamos tentar algo tão ambicioso como um sistema completo de categorias. Vamos focar-nos nas questões levantadas quando se procura responder a apenas algumas das questões categoriais que surgem na metafísica. As questões que vamos considerar são todas muito importantes e fundamentais, pelo que examiná-las nos deve dar uma boa noção do que a metafísica é ao certo. Avancemos, então, com as questões; e comecemos com o conjunto de questões a que se tem chamado o problema dos universais.

Michael J. Loux
Metaphysics: A Contemporary Introduction (Londres: Routledge, 2006).

Notas

  1. Ver Metafísica A.1 incluída em R. McKeon (1941).
  2. Ver Metafísica E.1 em McKeon (1941).
  3. Ver Metafísica . 1 em McKeon (1941).
  4. Para uma discussão deste mapa, ver a entrada sobre Christian Wolff em Edwards (1967).
  5. Para o ataque empirista clássico à metafísica, ver Hume (1739). Uma forma mais moderna deste ataque encontra-se em Ayer (1936).
  6. Ver Kant (1787), especialmente o prefácio da segunda edição e a “Dialéctica Transcendental”.
  7. Para exemplos desta abordagem à metafísica, ver Collingwood (1940), Körner (1974), Rescher (1973), Putnam (1981), e Putnam (1987). A afirmação de que a metafísica tem por objecto de estudo a descrição do nosso esquema conceptual é defendida na introdução a Strawson (1959); mas enquanto a linguagem é neokantiana, muito do que Strawson faz em Individuals corporiza uma abordagem aristotélica à disciplina.
  8. Ver, por exemplo, Rorty (1979).

Leitura complementar

A bibliografia sobre a natureza da metafísica é vasta. O aluno iniciante devia procurar, primeiro, em Aristóteles, especialmente os dois primeiros capítulos da Metafísica A (isto é, o Livro I), os primeiros dois capítulos da Metafísica Γ (isto é, o Livro IV), e o primeiro capítulo da Metafísica E (isto é, o Livro VI). Então, recomendaria uma vista de olhos às críticas à metafísica em Kant (1787), especialmente o prefácio à segunda edição, e as primeiras secções de Ayer (1936). Para discussões recentes, o estudante deve procurar em Körner (1974) e a introdução a Strawson (1959).

Referências

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ISSN 1749-8457