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Crítica
20 de Junho de 2016   Ética

Por que razão havemos de ser morais?

Faustino Vaz

O problema filosófico que vais estudar pode ser formulado através da seguinte questão: “Por que razão havemos de ser morais?” A resposta que intuitivamente darás é que desse modo viveremos melhor. Talvez a razão que apresentes seja que, se tivermos todos os homens em conta nas nossas escolhas, isso será bom para todos; talvez aches repugnante a ideia de que a tua capacidade de ser moral está confinada à sociedade em que vives, ignorando todos os outros homens.

Mas será que de facto tens todos os outros em conta nas tuas escolhas? Será que não tomas mais em consideração a gripe forte de uma amiga do que os milhares de crianças que todos os dias morrem de subnutrição? Será que a tua inteligência e a tua compaixão se ocupam tanto da tragédia colectiva que é a fome de milhões de seres humanos como de uma vulgar depressão ligeira de uma amiga tua? James Rachels, um importante filósofo moral, afirma que “infelizmente para os que têm fome, as estatísticas não têm muito poder para nos comover”.

A isto provavelmente responderás que nem sempre dás aos interesses e às necessidades dos outros a importância que eles merecem; mas também dirás que os outros têm tanta importância como tu e que os ajudas sempre que isso não implica um sacrifício excessivo para ti. Acima de tudo, parece-te plausível o equilíbrio entre os teus interesses e os interesses de todos os outros homens. Mas será que é? Será que os interesses e necessidades dos outros são tão relevantes como os teus do ponto de vista moral? Intuitivamente dirás que sim, mas por mais estranho que te pareça há quem não pense da mesma maneira. A teoria que essas pessoas defendem é o egoísmo ético. Trata-se de um desafio à ética e às nossas intuições morais profundas que não devemos ignorar. Depois de apresentarmos uma defesa do egoísmo ético, tentaremos mostrar que também ele enfrenta pelo menos uma objecção que não pode ignorar.

Egoísmo ético

O egoísmo ético diz como devemos comportar-nos; nesse sentido, é uma teoria normativa. Para o egoísmo ético, o nosso único dever primitivo é fazer o melhor para nós mesmos. O interesse próprio é o princípio moral fundamental. Não é que o egoísta não tenha outros deveres; o que se passa é que todos os outros deveres do egoísta derivam do interesse próprio. Nada mais. Por isso, mesmo quando um defensor do egoísmo ético ajuda os outros ou renuncia a fazer o que realmente quer, é no fundo a promoção do seu interesse próprio a longo prazo que o move.

O argumento mais forte a favor do egoísmo ético aceita a moralidade de senso comum e retira a partir daí a conclusão surpreendente de que essa é a melhor maneira de satisfazer o nosso interesse próprio. Considera então as seguintes formulações do argumento:

A moralidade de senso comum consiste em obedecer a certas regras: a regra de evitar fazer mal aos outros, a regra de dizer a verdade, a regra de cumprir as nossas promessas, e assim por diante. Se não fizermos mal aos outros, as pessoas não vão querer prejudicar-nos e poderão até fazer-nos favores quando precisarmos. Logo, não fazer mal aos outros serve o nosso interesse próprio.

Se dissermos a verdade aos outros, teremos uma boa reputação e as pessoas confiarão em nós quando precisarmos que elas sejam sinceras connosco. Logo, dizer a verdade aos outros serve o nosso interesse próprio.

Se cumprirmos as promessas que fizemos aos outros, podemos esperar que os outros cumpram as promessas que nos fizeram em acordos que nos beneficiam. Logo, cumprir as promessas que fizemos aos outros serve o nosso interesse próprio.

O mais provável é que neste momento já estejas a ver que este tipo de raciocínio irá conduzir-te surpreendentemente à Regra de Ouro: Faz aos outros aquilo que gostarias que eles te fizessem a ti. A versão da mesma regra à maneira do egoísta ético será: Ajuda os outros para que eles te ajudem a prosseguir o teu interesse próprio. E assim uma teoria que no início era abertamente recusada pelas tuas intuições morais mais profundas pode começar a parecer-te plausível. Mas será que é realmente plausível ou terá de enfrentar uma objecção suficientemente forte para a derrotar? A resposta a esta questão será submetida à tua avaliação no ponto seguinte.

Crítica ao egoísmo ético

Segundo o egoísmo ético, o princípio fundamental é o interesse próprio. Isto pressupõe que o egoísta ético encontra diferenças relevantes entre ele próprio e todos os outros. Será ele dotado de uma inteligência diferente? Terá necessidades, desejos e interesses diferentes das necessidades, desejos e interesses de todos os outros homens? Será estruturalmente tão diferente de todos os outros homens que mereça um lugar especial quando toma decisões morais? Ora, o egoísta ético não tem uma resposta para estas questões e por isso a sua teoria não está justificada. Além disso, se tentarmos dar uma resposta, ela terá de ser negativa porque não há diferenças factuais relevantes entre os seres humanos que justifiquem uma diferença de tratamento. Daí devermos tomar em consideração cada pessoa que é afectada pelas nossas acções quando decidimos o que devemos fazer: ninguém deve ser ignorado, ninguém deve ter um estatuto privilegiado.

Talvez seja esta a refutação mais forte do egoísmo ético. Se achares que sim, só te resta rejeitá-lo. E a consequência que daí podes retirar é que há dois ingredientes básicos que uma boa teoria normativa não pode dispensar: 1) não há diferenças factuais relevantes entre os homens; 2) se não há diferenças factuais relevantes entre os homens, os seus interesses têm de ser considerados de forma imparcial. São precisamente estes dois ingredientes que estão na base das duas éticas mais influentes, a ética deontológica de Kant e a ética utilitarista de John Stuart Mill, as quais irás estudar a seguir.

Faustino Vaz

Questões de revisão

  1. Será que basta termos em conta a nossa sociedade para sermos morais? Ilustra a tua resposta com exemplos.

  2. “O egoísmo ético é uma teoria descritiva”. Concordas? Porquê?

  3. Qual é o princípio moral do egoísmo ético?

  4. “O egoísmo ético está errado porque ninguém consegue viver uma vida inteira sem ajudar os outros uma vez que seja”. Que réplica daria a este argumento um egoísta ético?

  5. Que raciocínio segue o egoísmo ético para estar de acordo com a moralidade de senso comum? A que regra conduz esse raciocínio? Como?

  6. Que objecção pode ser feita ao egoísmo ético?

  7. Que consequências resultam dessa objecção independentemente de a considerares convincente ou não?

Questões de discussão

  1. Poderá um egoísta ético sentir-se na obrigação de ajudar os milhões de seres humanos que morrem à fome? Porquê?

  2. “Quando coopera, o egoísta ético ajuda outras pessoas. Ora, se o faz, não as considera secundárias em relação a si. Logo, a crítica que lhe é feita cai por terra”. Concordas com o argumento? Porquê?

  3. Supõe que alguém chamado João arriscou a sua vida para evitar o afogamento de uma criança. Discute a seguinte explicação da sua acção:

    João não agiu de maneira realmente altruísta. Ele não arriscou a sua vida para salvar a criança. João é antes o tipo de pessoa que tem prazer ao ajudar os outros e o seu desejo de ter este prazer é tão grande que ultrapassa o desejo de proteger a sua própria vida. Logo, João realmente agiu para ter esse prazer, não para salvar a criança.

  4. “O princípio moral do egoísmo ético é que o nosso dever básico é fazer o melhor para nós mesmos. Nesse caso, é moralmente permissível praticar a fraude, a difamação ou a violência se isso é o melhor para nós. Logo, o egoísmo ético prescreve actos moralmente repugnantes”. Que réplica daria a esta crítica o egoísmo ético?

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ISSN 1749-8457