De todas as características do idealismo, a que mais provavelmente originará desdém e descrença é esse est percipi ― “ser é ser percepcionado”. Que o mundo físico existe sem ser percepcionado é não apenas uma das nossas crenças mais profundamente enraizadas, como uma crença que nos sentimos completamente justificados ― não porque percepcionemos que existe não-percepcionado, o que seria uma contradição nos termos, mas porque não mostra em absoluto sinais de depender da percepção de alguém para que exista. A banheira enche-se de água quer estejamos lá quer não; a casa continua no mesmo local embora a tenhamos deixado há anos; as pessoas morrem e as estrelas e a Terra continuam como antes, e temos todas as razões para acreditar que irão continuar quando tu e eu já cá não estivermos.
Ao mesmo tempo parece plausível dizer ― como Locke e Berkeley sustentaram ― que temos contacto apenas com as nossas ideias. Podemos conhecer o que quer que exista lá fora unicamente por intermédio das nossas experiências; e não é o conteúdo destas experiências tudo o que podemos realmente conhecer?
A teoria a que se dá o nome de “fenomenismo” tenta incorporar estes dois elementos. Não diz que “ser é ser percepcionado”, mas apenas que “ser é ser percepcionável”. A mesa existe quando a vejo, mas também existe quando não a vejo ― está na sala ao lado ― porque quando vou à sala ao lado, está lá.
As experiências sensoriais da mesa estão disponíveis para mim sempre que me queira colocar nas circunstâncias perceptuais adequadas (olhando pelo canto ou indo à sala ao lado). Se a árvore foi cortada e queimada, então já não existe e já não posso percepcioná-la; mas se está ainda lá fora e estou precisamente do outro lado do edifício, se duvido de que a árvore continue a existir posso ir ao outro lado do edifício e ver por mim mesmo. A matéria, disse John Stuart Mill, é a possibilidade permanente da sensação.
Mas se digo que um objecto físico existe, eu deveria ser capaz de testar esta afirmação: se não está a ser percepcionado, deveria ser capaz de especificar as condições segundo as quais seria percepcionada. Se digo que há um relógio na gaveta da minha secretária e abro a gaveta da secretária e está vazia, então tenho de admitir que a minha afirmação é falsa. É óbvio que nem todas as afirmações perceptuais são tão fáceis de verificar como esta, em que tenho apenas de abrir a gaveta da secretária. Se digo que há determinada flora e fauna no fundo do oceano, devo ser capaz de produzir indícios, como os que derivam de fotografias submarinas. Podemos falar sobre o que aconteceu durante as longas épocas geológicas em que não existiam quaisquer seres humanos ou outros seres capazes de percepcionar; neste caso não é possível voltar a essa época e percepcioná-la, pelo que temos de confiar em indícios indirectos como, por exemplo, o registo fóssil; temos de ter razões para dizer “Se eu estivesse lá na altura (que não estava), teria percepcionado”, e sustentar esta afirmação com razões. Não é isto que os geólogos fazem constantemente? Procuram no presente sinais do passado que não estavam cá para ver e apresentam razões para acreditar que o passado era como descrevem ― isto é, o que teriam percepcionado se estivessem lá nessa altura. A afirmação “Os dinossáurios viveram na Terra há setenta milhões de anos” não significa que alguém os percepcionou, mas que alguém os teriam percepcionado se tivesse estado lá no lugar e na altura certos. É a possibilidade de os percepcionar, não a sua ocorrência actual, que os fenomenistas afirmam quando dizem que tal-e-tal aconteceu realmente numa época remota do passado.
Muita da controvérsia em teoria da percepção durante o século passado teve a ver com o que nós exactamente vemos, ouvimos e assim por diante. Podes dizer “Vemos árvores, mesas, etc”. Muito bem, mas de que temos consciência exactamente na percepção ― o que é isso de que nós estamos imediatamente (não-mediatamente) conscientes, sem qualquer elemento de inferência? Locke e Berkeley disseram “ideias”, usando a palavra com um sentido muito lato; Hume disse “impressões”; Mill disse “sensações”. Mas todos estes termos são enganadores. Até a palavra “sensação” não nos diz se é o que sentimos ou o nosso sentir algo que se pretende significar. Podes dizer que tens uma sensação mas não que vês uma sensação. O que vês, então? Tens determinadas sensações visuais, mas o que vês não são estas sensações mas um determinado padrão de cores e formas (que podes então considerar que é uma árvore). Mesmo que estejas a ter uma alucinação estás ainda a ter experiência de um padrão de cores e formas. Muitos filósofos do século XX chamaram àquilo que vês, independentemente de estares a alucinar ou a teres percepções genuínas, dados dos sentidos.
O filósofo contemporâneo G. E. Moore (1873–1958) escreveu numa passagem famosa:
Seguro neste envelope. Olho para ele e espero que vós todos olheis para ele. E agora baixo-o outra vez. Ora, o que aconteceu? Diríamos certamente (se olharam para ele) que vimos todos o envelope, que vimos todos o mesmo envelope. Eu vi-o e vocês também o viram. Vimos todos o mesmo objecto. E por aquilo que vimos entendemos um objecto que, em qualquer dos momentos em que estávamos a olhar para ele, ocupava apenas um dos muitos lugares que constituem a totalidade do espaço […]
Mas então que aconteceu a cada um de nós quando vimos esse envelope? Começarei por descrever parte do que me aconteceu. Vi uma mancha particular de uma cor esbranquiçada, que tem um certo tamanho e uma certa forma, uma forma com ângulos ou cantos particularmente marcados e delimitada por linhas bastante direitas. Estas coisas: vi realmente esta mancha de uma cor esbranquiçada e o seu tamanho e forma. E proponho chamar a estas coisas, a cor, o tamanho e a forma, dados dos sentidos, coisas dadas ou apresentadas pelos sentidos ― dadas, neste caso, pelo meu sentido da vista. Houve muitos filósofos que chamaram a estas coisas a que chamei dados dos sentidos, sensações. Eles diriam, por exemplo, que aquela mancha particular de cor era uma sensação. Mas parece-me que o termo “sensação” é propenso a enganos. Deveremos certamente dizer que quando vi essa cor tive uma sensação. Mas quando digo que tive uma sensação, o quero dizer é, julgo eu, que tive a experiência que consistiu em ver a cor. Isto é dizer que o que entendemos por uma “sensação” nesta frase é o acto de ver a cor, não a cor que vi. Esta cor não parece ser o que entendo dizer que tive quando digo que tive uma sensação de cor. Não é natural dizer que tive a cor, que tive esse cinzento esbranquiçado particular ou que tive a mancha que era dessa cor. O que tive de certeza foi a experiência que consistiu em ver a cor e a mancha. E quando, portanto, falamos de ter sensações, penso que o que entendemos por “sensações” é as experiências que consistem em apreender determinados dados dos sentidos, e não os próprios dados dos sentidos. Penso então que o termo “sensação” é propenso a enganos, porque pode ser usado em dois sentidos diferentes, que é muito importante distinguir entre si. Pode ser usado quer para a cor que vi quer para a experiência que consistiu em ver a cor […]
Posso expressar pelo menos parte do me aconteceu dizendo que vi um certo dado dos sentidos: vi uma mancha de cor esbranquiçada com uma forma e tamanho particulares. E não tenho dúvidas de que isto é parte, pelo menos, do que aconteceu a todos vós. Vós também vistes um certo dado dos sentidos; e também espero que os dados dos sentidos que vistes sejam mais ou menos semelhantes aos que eu vi. Vós também vistes uma mancha de cor que pode ser descrita como esbranquiçada, de um tamanho não muito diferente do tamanho da mancha que vi e de uma forma semelhante pelo menos nisto: que tinha cantos vincados e era delimitada por linhas bastante direitas. Mas aquilo para que quero chamar a atenção agora é o seguinte: embora tenhamos visto o mesmo envelope (como diríamos), o mais provável é que não tenhamos visto exactamente o mesmo dado dos sentidos. O mais provável é que cada um de nós tenha visto, para começar por aí, um matiz de cor ligeiramente diferente. Todas estas cores podem ter sido esbranquiçadas, mas provavelmente cada uma era no mínimo ligeiramente diferente de todas as outras, consoante o modo como a luz incidiu no papel relativamente às diferentes posições em que estais sentados e, uma vez mais, consoante as diferenças da vossa capacidade de visão ou da vossa distância do papel. E do mesmo modo a respeito do tamanho da mancha de cor que vimos: diferenças na capacidade dos vossos olhos e na distância do envelope com toda a probabilidade originaram ligeiras diferenças no tamanho da mancha de cor que vistes. E o mesmo outra vez a respeito da forma. Os que estão deste lado da sala viram uma figura romboidal, enquanto os que estão diante de mim viram uma figura quase rectangular […]
Ora tudo isto parece-me tornar evidente que, se vimos todos efectivamente o mesmo envelope, o envelope que vimos não era idêntico aos dados dos sentidos que vimos: o envelope não pode ser exactamente a mesma coisa que cada um dos conjuntos de dados dos sentidos que cada um de nós viu; porque com toda a probabilidade cada um deles era ligeiramente diferente dos outros e, portanto, não podem todos serem exactamente a mesma coisa que o envelope.1
Tanto tu como eu vemos um envelope, mas o que surge à nossa visão é um tanto diferente. Tu estás a olhar para o envelope de um ângulo ligeiramente diferente ou eu estou mais afastado dele do que tu, de modo que o que vejo é um tanto mais pequeno; portanto, embora estejamos ambos a ver o mesmo envelope, temos experiência de dados dos sentidos um tanto diferentes. Se a minha posição ou ângulo mudam ou se a luz muda, eu próprio vejo dados dos sentidos um tanto diferentes daqueles de que tive sensação um pouco antes. Não posso descrevê-los por palavras a não ser dizendo que vejo o envelope de forma diferente da que vi antes; todavia, o que vejo ― os dados dos sentidos, não o envelope ― é um tanto diferente do que era há um momento.
Os fenomenistas diriam que não posso duvidar de que estou a ter sensações de determinados dados dos sentidos; os dados dos sentidos são indubitáveis. Mas posso duvidar de que esteja a percepcionar um objecto físico real. Por exemplo, posso ter a sensação de dados dos sentidos avermelhados e arredondados sem que exista um tomate diante de mim:
Quando vejo um tomate há muita coisa de que posso duvidar. Posso duvidar de que seja um tomate que estou a ver e não uma peça de cera habilmente pintada. Posso duvidar de que nesse lugar exista de todo em todo qualquer coisa material. Talvez o que tomo por um tomate seja de facto um reflexo; talvez eu seja até vítima de alguma alucinação. Há no entanto algo de que não posso duvidar: de que existe uma mancha vermelha com uma forma redonda e um tanto bojuda, que sobressai num fundo de outras manchas de cor, que tem uma determinada profundidade visual, e que todo este campo de cor está directamente presente à minha consciência. Podemos ter dúvidas sobre o que é a mancha vermelha — se é uma substância, um estado de uma substância ou um acontecimento, se é física ou psíquica ou nem uma coisa nem outra. Podemos duvidar de que o algo persista mesmo por um momento antes e depois de estar presente à minha consciência e de que outras mentes tal como eu possam ter dela consciência. Mas de que existe agora e de que eu tenho dela consciência ― pelo menos eu que tenho consciência da mancha não posso ter dúvida. E quando digo que está “directamente” presente à minha consciência, o que quero dizer é que a consciência que tenho dela não é obtida por inferência nem por qualquer outro processo intelectual.2
Por oposição, os objectos físicos são alcançados por inferência a partir de dados dos sentidos. Por que, podemos objectar, deveria o nosso conhecimento das coisas materiais ser chamado inferência? Não tenho consciência directa e de forma não-inferencial do tomate como tenho de qualquer outra coisa? Nós não dizemos para nós mesmos “Tenho consciência directa de tal e tal dado dos sentidos, portanto, infiro que existe um tomate nesse sítio”. Do ponto de vista psicológico não é uma inferência, mas do ponto de vista lógico é. É com base na experiência de determinados dados dos sentidos que estamos autorizados a fazer certas afirmações acerca dos objectos físicos. A base é segura, a inferência não; não podemos duvidar de que estamos a ter determinadas experiências, mas podemos seguramente duvidar de que exista um objecto físico.
Se tens uma sensação de um bojo avermelhado e arredondado não podes estar enganado: o teu relato é de uma experiência directa (não filtrada e sem intermediários). Mesmo que a experiência cesse abruptamente, tu estás unicamente a relatar a tua experiência sensitiva daquele momento. Mas quando dizemos que uma mesa real existe ali, estamos a fazer uma previsão implícita ― ela não desaparece subitamente da nossa visão a menos que voltemos a cabeça ou fechemos os olhos; não se tornará subitamente um repolho ou um elefante. Outras experiências sensoriais podem fazer-nos mudar de ideias acerca da existência de uma mesa real ali (será uma ilusão de óptica engenhosa?), mas não acerca de se tivemos as experiências sensoriais na altura em que nós (talvez falsamente) as atribuímos a uma coisa física.
Segundo o fenomenismo, os dados dos sentidos constituem os fundamentos absolutos do conhecimento empírico. Se alguém te pergunta “Que indícios tens de que estás a ver uma árvore?”, podes dizer “Porque estou a ter experiências sensoriais de tal-e-tal descrição”. Mas se te perguntarem “Que indícios tens de que estás agora a ter tais-e-tais experiências sensoriais?”, que poderias dizer a não ser possivelmente “Tenho-as, e é tudo”? Não atingimos aqui o fundo da escada epistemológica? Não depende deste conhecimento tudo o que está acima dele na escada?
George E. Moore, Some Main Problems of Philosophy (Londres: Allen & Unwire, 1952), pp. 30–33. ↩︎︎
H. H. Price, Perception (Londres: Methuen, 1933), p. 3. ↩︎︎