No capítulo 4 do meu livro A Cigarra Filosófica: A Vida é um Jogo?1 levanto a questão do fim prelusório2 do xadrez, pois à primeira vista parece que o xadrez não pode ter tal fim, tal como o defini: “que pode ser descrito antes ou independentemente de qualquer jogo de que possa fazer já parte ou vir a fazer parte”; porque, como lembra Skepticus à Cigarra
O objectivo do jogo, de imobilizar o rei do adversário, é um estado de coisas regido por regras, pois um rei no xadrez não é senão um marcador que se põe nas casas, de acordo com as regras. Reconheceste explicitamente esta ideia antes, quando descreveste o fim prelusório do xadrez com as seguintes palavras: “Posicionar as próprias peças no tabuleiro numa ordem tal que o rei fica, nos termos das regras do xadrez, imobilizado”. Parece portanto que no xadrez é impossível identificar um fim prelusório, isto é, um estado de coisas alcançável que se torna no propósito de um jogo somente pela introdução de regras para limitar os meios. Pois o alegado fim prelusório do xadrez está à partida saturado de regras e portanto não é um fim prelusório, tal como o definimos.
A Cigarra chama então à atenção de Skepticus que se pode dar dois usos diferentes às regras dos jogos: “num caso, usamo-las para descrever um estado de coisas, e no outro para prescrever um procedimento”. Continua a Cigarra:
Claramente, podemos recorrer ao seu uso descritivo sem, ao mesmo tempo, termos de nos comprometer com o seu uso prescritivo. Pois podemos realizar um estado de coisas correctamente descrito como “cheque-mate” em total desconsideração das regras como prescrições processuais. Basta dispor simplesmente as peças de tal maneira que as Pretas têm as Brancas em cheque-mate. Um tal cheque-mate “descritivo”, evidentemente, não assinala a vitória de seja quem for ao xadrez, visto que não resultou de se ter jogado xadrez. Mas por essa mesma razão confirma o que aqui disputamos, ou seja, que há um fim no xadrez que se pode alcançar independentemente do jogo em que ocorre ou pode vir a ocorrer.
Ainda assim, continua a Cigarra, embora aquilo a que podemos chamar “cheque-mate descritivo” se possa alcançar (pelo que se entende, evidentemente, que é possível mostrá-lo)3 sem jogar um jogo de xadrez, semelhante cheque-mate continua a depender, num certo sentido, do xadrez. E é a este sentido do xadrez que a Cigarra então se refere como a “instituição” do xadrez, por contraste com qualquer jogo individual de xadrez.
Ao argumentarem, em “Pre-Lusory Goals for Games: A Gambit Declined”, que a minha explicação do fim prelusório está fundamentalmente errada, Schneider e Butcher discordam sobretudo do contraste que faço entre um jogo e aquilo a que chamo a “instituição” do mesmo. Parecem achar que se o fim prelusório de jogos como o xadrez não pode ser especificado sem referência à instituição do jogo, o conceito de um fim prelusório não tem a independência relativamente ao jogo que defendo. E assim é ao seu tratamento da minha tese da “instituição” que se dirigem em grande medida as observações seguintes. Mas como ao sentido que dou à instituição de um jogo os meus críticos substituem o seu próprio sentido, e como esse sentido envolve a relação entre universais e as suas exemplificações, a minha discussão ramificar-se-á numa subdiscussão acerca do que os universais são e do que não são e como se relacionam e não relacionam com as suas exemplificações.
Depois de um começo pouco auspicioso em que citaram erroneamente a minha definição de fim prelusório4, os meus críticos tomam de imediato a questão da instituição de um jogo observando que “Suits não define o seu sentido de ’instituição’”. É aqui, sugiro, que começam todas as dificuldades. Pois embora seja verdade que não defino o que entendo pela instituição de um jogo, determinadas práticas a que me refiro deixam suficientemente claro o que pretendo dizer e, mais pertinentemente, como veremos, deixam abundantemente claro o que não pretendo dizer. Permita-se-me sublinhar que a minha referência a essas práticas não é de modo algum uma alusão de passagem. As práticas em causa são cruciais para o meu esclarecimento acerca do que é a instituição de um jogo, razão pela qual formam colectivamente o título do capítulo dedicado a esse tópico, “Truões, Batoteiros e Desmancha-Prazeres”. Schneider e Butcher, algo surpreendentemente, não fazem qualquer referência a esses exemplos, nem à distinção entre os usos descritivo e prescritivo das regras, distinção que desde logo conduz ao conceito da instituição de um jogo. E assim, de certo modo, não admira que compreendam mal o que entendo por instituição de um jogo.
É isto o que afirmam: “O que Suits parece querer dizer [com a distinção entre a instituição de um jogo e o jogo] é a distinção entre o jogo de xadrez e um jogo de xadrez”. Por o jogo de xadrez depreendo que tenham em vista um género de jogo de xadrez platónico ideal, sendo que os jogos de xadrez que as pessoas jogam no dia-a-dia se relacionam com esse do modo como as exemplificações se relacionam com um universal. Assim, tendo preparado esse alvo em particular, a essa distância em particular, têm o campo aberto para disparar à vontade. Mas então, surpreendentemente, o modo como escolheram realizar o dito feito de pontaria é muito mais sinuoso e inconveniente do que a situação exige. Permita-se-me portanto que apresente em seu nome o argumento elegantemente simples que a identificação que fazem entre a instituição do xadrez e o jogo de xadrez não só permite como reclama.
Se a instituição do xadrez é um tipo de jogo de xadrez ideal, então tem de ter, como todos os jogos de xadrez, o seu fim prelusório. Mas defino “fim prelusório” como algo identificável independentemente do jogo de que faz parte. Logo, o fim prelusório do jogo de xadrez ideal tem também de ser identificável independentemente desse jogo. Ora, como no caso do xadrez argumento que a identificabilidade independente do seu fim prelusório requer a existência de uma instituição do xadrez, distinguível de um jogo de xadrez, segue-se também que o jogo de xadrez ideal tem de ter a sua própria instituição. Mas se a instituição do xadrez é definida como um jogo de xadrez ideal, então esse jogo de xadrez irá também exigir a sua própria instituição, e essa instituição, uma vez que é outro jogo de xadrez ideal, exigirá a sua instituição, e assim sucessiva e eternamente, de modo que nunca o porco chega à pocilga e a velhota não chegará a casa esta noite, ou em qualquer outra noite. Para formular a questão de um modo não-alegórico, se eu tivesse identificado a instituição do jogo x com o jogo x, ter-me-ia visto preso numa regressão infinita. Se Schneider e Butcher tivessem reparado nesta implicação de identificar a instituição de um dado jogo com o jogo em causa, o seu ataque ao meu conceito de fim prelusório poderia ter sido mais certeiro e mais breve.
Sem dúvida, esse golpe certeiro e breve teria falhado inteiramente o alvo. Pois o tratamento que dou ao fim prelusório não me faz cair em regressão infinita, e a razão pela qual não o faz é que não identifico a instituição de um jogo com o jogo, desde logo. Muito bem, o que entendo então pela instituição de um jogo? Chamei já a atenção para o facto de Butcher e Schneider não fazerem referência às personagens que dão o título ao capítulo relevante do meu livro. Por que razão é isto importante? É importante porque a razão pela qual desde logo introduzi essas personalidades exasperantes na discussão foi a de elas serem indícios a favor da distinção entre um jogo e a sua instituição. Schneider e Butcher citam uma parte do parágrafo que imediatamente precede a introdução desse trio, mas ficam inexplicavelmente aquém de essas personagens entrarem em palco. Rectifiquemos essa omissão. O excerto do meu texto que Schneider e Butcher tiram do meu texto termina com a seguinte frase: “Por conseguinte, embora não seja possível alcançar o fim prelusório do xadrez (ou pelo menos reconhecer que se fez tal coisa) independentemente da instituição do xadrez, é possível alcançá-lo independentemente de um jogo de xadrez”.
A esta passagem segue-se imediatamente um parágrafo que eles não citam:
De modo a dar um suporte mais amplo a esta conclusão, consideremos três tipos familiares de comportamento associado à acção de jogar jogos — o comportamento dos truões, dos batoteiros e dos desmancha-prazeres. Pois veremos que a identificação destes tipos pressupõe a distinção entre um jogo e a sua instituição, bem como a identificação de um fim prelusório que essa distinção permite.
Então, após uma discussão de ambos os tipos, o resultado é resumido do seguinte modo:
Resumindo, pode-se dizer que os truões reconhecem as regras mas não os fins, que os batoteiros reconhecem os fins mas não as regras, que os jogadores reconhecem quer as regras quer os fins, que os desmancha-prazeres não reconhecem nem as regras nem os fins, que enquanto os jogadores reconhecem igualmente as prerrogativas do jogo e da sua instituição, os truões e os batoteiros reconhecem somente as prerrogativas institucionais, e os desmancha-prazeres não reconhecem nem umas nem outras.
Neste ponto, creio, o leitor perspicaz já captou a minha razão para rejeitar o jogo como aquilo a que chamo a “instituição” de um jogo. Se a instituição de um jogo fosse ela mesma um jogo, não haveria lugar nessa instituição para as actividades dos truões ou batoteiros, apenas para as dos jogadores. Mas no que entendo como a instituição de um jogo há de facto lugar para os truões e batoteiros, e, como veremos em seguida, para muito mais além disso. Mas somente com os indícios dos truões e batoteiros, sugiro, estamos em condições de afirmar a traços largos mas bastante claros o que é a instituição de um jogo: a instituição de um jogo x é um corpo de significados e práticas diversos que têm em comum o facto de todos derivarem a sua existência (ou seja, de serem o que são) porque estão relacionados, de um ou outro modo, com o jogo x.
O que entendo pela instituição de um jogo é justamente o tipo de coisa a que Aristóteles se referia quando usou a saúde e a medicina para ilustrar um determinado princípio processual na sua metafísica (para o que nos interessa aqui podemos ignorar o princípio metafísico e ir directamente à ilustração):
Tudo o que é saudável se relaciona com a saúde, uma coisa no sentido de que preserva a saúde outra no sentido de que a produz, outra no sentido de ser um sintoma de saúde, outra porque é capaz de ser saudável. E aquilo que é medicinal relaciona-se com a arte da medicina, sendo uma coisa designada por “medicinal” porque o tem, outra porque lhe está naturalmente adaptada, outra por ser uma função da arte medicinal. (Metafísica: 1003a34)
Poderíamos acrescentar uma série de itens mais específicos à segunda lista: bisturis, enfermeiras, hospitais, máquinas de diálise e escolas de medicina. Isto sem sofrermos objecções da parte do fantasma do Estagirita. Pois o que Aristóteles tem em mente na sua segunda lista é aquilo a que chamo a “instituição da medicina”. Repare-se, e era precisamente esta a ideia de Aristóteles, que há mais do que um modo de essas coisas diversas poderem ter algo importante em comum e assim virem a ser chamadas pelo mesmo nome. De um modo particularmente óbvio, podem vir a sê-lo por serem todas exemplificações do mesmo universal, por exemplo, Sócrates e Platão e Aristóteles têm em comum serem todos exemplificações do universal filósofo.
Há outro modo de as coisas diversas poderem ter algo importante em comum, todavia, sem ser estarem todas relacionadas com a mesma coisa enquanto exemplificações da mesma mas por estarem relacionadas com a mesma coisa, de outros modos. Assim, um bisturi não é uma exemplificação da arte da medicina (como as sangrias, a amputação e a purga são) mas um instrumento dessa arte. Tampouco a saúde é uma exemplificação dessa arte (isto é, não se trata de um ramo da medicina) mas a finalidade dessa arte. Nem uma escola de medicina é uma exemplificação da arte da medicina mas um lugar onde se treina para essa arte. Analogamente, afirmo, há uma série de coisas que são lusórias não simplesmente por serem exemplificações de jogos, mas por estarem relacionadas com jogos de diferentes maneiras; por exemplo, na truanice com os jogos, na batotice durante um jogo, na tentativa de definir os jogos, isolando elementos dos mesmos para análise (por exemplo, os seus fins prelusórios), no ensino dos jogos e, evidentemente, no acto de jogar esses jogos. Esses tipos de coisas tomadas conjuntamente são o que entendo pela instituição de um jogo. Torna-se assim claro que aquilo que entendo pela distinção entre a instituição de um jogo e um jogo decididamente não é a distinção entre o jogo e exemplificações desse jogo. Evidentemente, como poderia sê-lo, se coisas como a truanice e a batotice são constituintes dessa instituição?
Convém talvez fazer um esclarecimento pontual antes de prosseguirmos. O leitor poderá ficar surpreso ao saber que incluo o jogar de um jogo como parte da instituição de um jogo, porque o propósito de introduzir a ideia da instituição de um jogo era o de distinguir entre os jogos e as suas instituições. Não haverá aqui uma inconsistência? O leitor ficará aliviado ao saber que não há. Pois não é inconsistente afirmar que um certo x difere de um todo do qual faz parte. O facto de incluir o jogar de um jogo na instituição de um jogo só seria inconsistente se eu considerasse a diferença entre os jogos e as suas instituições de tal modo que uma destas coisas excluísse a outra.
O modo como distingo entre os jogos e as suas instituições não exige essa exclusão, todavia. Considere uma das frases cruciais que exprimem a distinção jogo/instituição: “Embora não seja possível alcançar o fim prelusório do xadrez (ou pelo menos reconhecer que se fez tal coisa) independentemente da instituição do xadrez, é possível alcançá-lo independentemente de um jogo de xadrez”. É claro que essa afirmação é inteiramente consistente com um jogo de xadrez ser ele mesmo parte da instituição em causa, como sucede na seguinte reformulação da mesma: “Embora não seja possível alcançar o fim prelusório do xadrez independentemente da instituição do xadrez, é possível alcançá-lo independentemente de [daquela parte da instituição que consiste em] um jogo de xadrez”. O que aqui se mostra é que a verdade da afirmação é independente da localização do jogo que nela figura: o jogo poderia igualmente residir no seio da instituição como fora dela; a afirmação nada diz acerca deste pormenor. Mas num contexto mais alargado, onde se explicita mais detalhadamente o que significa ser a instituição de um jogo, torna-se claro que os jogos têm de fazer parte das suas instituições, porque todos os significados e práticas que formam a instituição são o que são em virtude da relação que têm com os jogos. Pense outra vez na instituição da medicina, bisturis, hospitais, etc. Decerto não desejaríamos excluir os médicos, isto é, a sua prática da medicina, pois somente esta é o que dá existência e significado a tudo o mais. E o mesmo sucede com os jogos e as coisas relacionadas com jogos.
Embora devesse ser já claro que o jogo de xadrez não pode ser a instituição do xadrez que discutimos (a existência de truões e batoteiros só por si basta para o verificar), há ainda algo no uso que Schneider e Butcher fazem da elocução “o jogo” que exige um comentário adicional. Schneider e Butcher parecem considerar que o artigo “o” na expressão “o jogo” se refere a um universal por contraste com as exemplificações que esse universal abrange — mas não é verdadeiro que qualquer universal, digamos o xadrez, seja o mesmo que o jogo de xadrez. Pois o x é necessariamente ao mesmo tempo um x: o uso do artigo definido, ainda que em itálico, não transmuta um indivíduo num universal. E assim, o jogo, apesar de ser uma exemplificação, ainda que o consideremos uma exemplificação superparadigmática, não pode ao mesmo tempo ser o universal que exemplifica. Pelo menos não o pode fazer se acaso não formos Platão, que notoriamente tratava os universais como se estes fossem indivíduos. Além disso, o jogo de xadrez é evidentemente algo que pode em princípio ser jogado (talvez por um jogador ideal), e portanto não pode ser o universal xadrez. Isto demonstra-se facilmente: Quando jogamos xadrez jogamos um jogo, não um universal. Os universais não são jogados mas compreendidos, e são assim qualitativamente diferentes das suas exemplificações. Evidentemente, os universais não são de todo coisas mas predicados definidores das coisas. E assim quando Aristóteles observou que Platão pegava nas definições de Sócrates e as convertia em coisas, não visou isto como um elogio ao seu antigo professor.
Mesmo que por “o jogo de xadrez” os meus críticos realmente entendessem o universal xadrez (sendo a expressão “o jogo” um descuido linguístico), isto não poderia ser ainda assim a instituição do xadrez, porque então as práticas dos truões e batoteiros seriam indistinguíveis das práticas dos jogadores sérios se forem honestos, visto que todas essas práticas seriam simplesmente exemplificações de xadrez. Mas as práticas dos truões e batoteiros, embora inteligíveis somente em relação com o xadrez, não são inteligíveis como exemplificações do universal xadrez. Pelo contrário, cada uma é, respectivamente, uma exemplificação do universal truanice no xadrez e do universal batota no xadrez. É verdadeiro, evidentemente, que esses universais adquirem significado porque se relacionam com o universal xadrez e é precisamente porque estão nessa relação que entendo que fazem parte da instituição do xadrez.
Schneider e Butcher parecem cometer dois erros relacionados ao abordarem a minha discussão da instituição de um jogo. Primeiro, parecem concluir que por instituição de um jogo entendo o universal do qual o jogo é uma exemplificação. Mas não se exprimem muito claramente: em vez de falarem no universal xadrez, falam em o jogo de xadrez, pelo que não é claro se por o jogo de xadrez entendem o universal xadrez ou um jogo individual mas ideal de xadrez.
Felizmente, não é necessário desenredar estes significados, quer os meus críticos entendam as instituições dos jogos como universais ou como tipos de indivíduos de elevada octanagem, nenhum desses sentidos é aquilo que entendo pelas instituições em causa. A razão disso, creio, ficou suficientemente clara. Ainda assim, talvez seja útil, ao concluir, fazer uma recapitulação da minha perspectiva acerca da origem, natureza e importância da instituição de um jogo tal como a entendo.
Tudo começou com o xadrez, onde o aparente fim prelusório (qualquer disposição das peças em cheque-mate) parecia entrar em conflito com a minha explicação dos fins prelusórios, nomeadamente, com a característica de estes serem passíveis de descrição ou realização (talvez de um modo mais preciso, de apresentação: ver a Nota 3) independentemente do jogo de que fazem parte, porque o facto de uma certa disposição de peças ser na verdade uma disposição em cheque-mate depende das regras do xadrez. Procurei superar esta dificuldade distinguindo entre dois modos de usar as regras do xadrez, descritivamente ou prescritivamente. As regras são usadas descritivamente quando se fala acerca do xadrez, por exemplo, ao observar que o fim prelusório do xadrez consiste numa disposição em cheque-mate das peças. As regras são usadas prescritivamente quando não se fala acerca do xadrez mas se joga. Além disso, como foi observado no início desta discussão, podemo-nos servir do uso descritivo das regras sem ao mesmo tempo nos comprometermos com o seu uso prescritivo. É esta distinção entre esses dois usos das regras dos jogos que dá lugar, necessariamente creio, ao conceito da instituição de um jogo.
Permita-se-me formular as coisas do seguinte modo. O jogo e a sua instituição existem em dois “espaços” diferentes, por assim dizer. A acção de jogar jogos situa-se num espaço e outras coisas que dizem respeito aos jogos (como falar acerca deles) situam-se noutro espaço. Tem de haver, evidentemente, um espaço em que os jogos não são jogados mas tratados de outros modos. Se não houvesse, a única relação com um jogo de que poderíamos ter experiência seria a experiência de o jogar. Seguir-se-iam daqui absurdos óbvios. Para citar apenas um, só seria possível falar acerca de um jogo por via de o jogar. O espaço de não-jogar (a instituição lusória) que proponho é aquilo que apresentei como o princípio de Aristóteles segundo o qual coisas diversas podem formar uma unidade não só por serem exemplificações de um universal mas também por estarem noutro tipo de relações com uma coisa, quer no que diz respeito à sua existência quer ao seu significado.
Seja-me permitido concluir reconhecendo a minha dívida para com as objecções levantadas pelos meus críticos, pois os meus esforços em responder-lhes levaram-me a expandir o tratamento que dei à instituição de um jogo, para além dos exemplos dos truões e batoteiros, até à explicação mais geral cujo modelo encontrei em Aristóteles. E a esse respeito permita-se-me ainda agradecer aos meus críticos pelo viragem platónica que deram ao meu conceito de instituição, uma viragem ao mesmo tempo surpreendente e a início exasperante. Agradeço pelo facto de ter sido precisamente a sua platonização que me levou a Aristóteles para aplicar o correctivo natural das ambiguidades no tratamento que Platão dá aos universais, e também à sua descoberta de um princípio unificador, além do que é dado pelos universais e pelas suas exemplificações.
A publicar em breve na colecção Filosofia Aberta, da Gradiva. (N. do T.) ↩︎︎
“Lusório“vem do latim “lusorius“que significa “relativo ao jogo, ao jogador ou ao acto de jogar“. Bernard Suits usa o termo para distinguir entre três tipos de finalidade que alguém que joga um jogo poderá ter: 1) o “fim prelusório“é um estado de coisas que procuramos realizar num jogo, e que é passível de descrição independentemente de se jogar o jogo (e.g., cortar uma fita com o peito, ou posicionar as peças de xadrez numa configuração de cheque-mate). 2) O fim lusório de todos os jogos é vencer, ou alcançar o “estado de sucesso“. 3) Os fins extralusórios são razões exteriores que se pode ter para querer jogar um jogo. A “atitude lusória” é a atitude de aceitar as regras somente porque queremos tornar possível a actividade de jogar. Há duas razões para não usar o termo “lúdico” (pré-lúdico): 1) o autor tinha à sua disposição a palavra inglesa “ludic” mas preferiu “lusory”. 2) A classe das coisas “lúdicas” é mais extensa do que a classe das coisas lusórias. Isto porque embora todos os jogos tenham uma componente lúdica, nem toda a acção lúdica (que em inglês se diz “play”) consiste em jogar um jogo. ( N. do T.) ↩︎︎
Há que notar que por vezes me refiro ao fim prelusório como “passível de descrição” independentemente do jogo e por vezes como “realizável” independentemente do jogo. Apesar de Schneider e Butcher darem grande importância a esta variação, creio que há muito menos de substancial do que parece, ou pelo menos do que parece aos meus críticos. Ainda assim, penso que devemos fazer aqui um esclarecimento. Ao escrever o presente artigo ocorreu-me que “apresentável” era uma palavra melhor do que “realizável”, porque “realização” pode sugerir que o objectivo foi alcançado por via de jogar o jogo, o que é evidentemente o oposto do que pretendo no tipo de contexto em causa. Assim, para que fique registado, gostaria que se entenda que, quando me refiro à independência do fim prelusório relativamente ao jogo, quero dizer que este é passível de descrição e/ou apresentação independentemente do jogo de que pode fazer ou vir a fazer parte. A razão pela qual se requer ambos os predicados é que por vezes é mais conveniente apresentar um fim prelusório do que descrevê-lo (o xadrez é um bom exemplo), mas por vezes simplesmente não é possível apresentar o objectivo: por exemplo, ser o primeiro a estar no topo de uma montanha. Provavelmente não devia à partida ter usado a palavra “descrição” mas antes “identificação”, deixando assim em aberto o modo como essa identificação poderia ser feita, nomeadamente, por descrição ou apresentação. ↩︎︎
A passagem original lê-se tal como a introduzi no primeiro parágrafo deste artigo, nomeadamente, que o fim prelusório é algo “que pode ser descrito antes ou independentemente de qualquer jogo do qual possa fazer parte ou vir a fazer parte”. No artigo de Schneider e Butcher aparece como “algo que pode ser descrito antes ou independentemente de qualquer jogo de que possa vir a fazer parte”. Ou seja, a expressão “de que possa fazer parte ou vir a fazer parte” é desfigurada de um modo que elimina metade do seu sentido. Embora este erro não tenha relevância especial para as questões que abordo no presente artigo, seria negligente permitir a apresentação incorrecta da mesmíssima passagem que é objecto de crítica por Schneider e Butcher. ↩︎︎