A distinção entre eutanásia activa e passiva é considerada fulcral para a ética médica. A ideia é que é admissível, pelo menos em alguns casos, suspender o tratamento e deixar que o paciente morra, mas que nunca é admissível praticar um qualquer acto directo destinado a matar o doente. Esta doutrina parece ser aceite pela maioria dos médicos e é subscrita por uma declaração aprovada pela Câmara de Delegados da Associação Medica Americana, a 4 de Dezembro de 1973:
O acto intencional de pôr termo à vida de um ser humano, praticado por outro ― o homicídio por piedade ― é contrário àquilo que a profissão médica defende e contrário à política da Associação Médica Americana.
A cessação do emprego de meios extraordinários para prolongar a vida do corpo quando existirem provas irrefutáveis de que a morte biológica está iminente é uma decisão do paciente e/ou dos seus familiares próximos. O conselho e a opinião do médico deverão poder ser fornecidos livremente ao paciente e/ou aos seus familiares próximos.
No entanto, existem muito boas razões para contestar esta doutrina. No artigo seguinte irei expor alguns dos argumentos relevantes e instar os médicos a reconsiderarem os seus pontos de vista quanto a esta matéria.
Para começar com um tipo de situação que é familiar, um paciente que esteja a morrer de cancro incurável da garganta sofre dores terríveis, que já não podem ser aliviadas de modo satisfatório. Tem a certeza de que irá morrer dentro de dias, mesmo que seja mantido o tratamento actual, mas não quer continuar a viver mais esses dias porque a dor é insuportável. Por isso, pede ao médico que lhe ponha fim e a família acompanha-o no pedido.
Suponham que o médico acede a suspender o tratamento, como a doutrina convencional diz que pode fazer. A justificação para esse acto é o paciente estar numa terrível agonia e, dado que morrerá de qualquer modo, seria errado prolongar desnecessariamente o seu sofrimento. Mas, vejam bem. Se nos limitarmos a suspender o tratamento, o paciente pode demorar mais tempo a morrer e, assim, poderá sofrer mais do que se fosse empreendida uma acção mais directa, dando-lhe uma injecção letal. Este facto constitui um forte motivo para pensarmos que, uma vez tomada a decisão inicial de não lhe prolongar a agonia, a eutanásia activa é efectivamente preferível à eutanásia passiva e não o contrário. Dizendo por outras palavras, é adoptar a atitude que conduz a mais sofrimento e não a menos, e que é contrária ao impulso humanitário que, inicialmente, deu origem à decisão de não lhe prolongar a vida.
Um dos aspectos do que pretendo provar é que o processo de “permitir a morte” pode ser relativamente lento e doloroso, enquanto a aplicação de uma injecção letal é relativamente rápida e isenta de dor. Permitam-me que apresente um exemplo diferente. Nos Estados Unidos, cerca de uma em cada 600 crianças nasce com a síndrome de Down. A maior pane delas é saudável segundo todos os outros pontos de vista ― isto é, apenas com os cuidados pediátricos habituais, terão uma infância normal em todos os outros campos. No entanto, algumas nascem com malformações congénitas, como as obstruções intestinais, que exigem operações para poderem sobreviver. Por vezes, os pais e o médico decidem não operar e deixar morrer a criança. Anthony Shaw descreve o que acontece então:
[…] Quando a cirurgia é negada, o médico deve tentar impedir que o bebé sofra, enquanto as forças naturais lhe exaurem a vida. Para um cirurgião cuja tendência natural é usar o escalpelo para combater a morte, ficar a assistir à morte de um bebé que poderia ser salvo é a experiência mais esgotante em termos emocionais que conheço. É fácil, numa conferência e numa discussão teórica, decidir que deveriam deixar-se morrer essas crianças. É muito diferente estar numa enfermaria e ver a desidratação e a infecção destruírem um ser minúsculo, durante horas e dias. Trata-se de uma provação terrível para mim e para o pessoal hospitalar ― muito mais do que para os pais, que nunca põem os pés na enfermaria.1
Posso compreender por que razão as pessoas se opõem a qualquer eutanásia e insistem em que deverá permitir-se que esses bebés vivam. Penso que posso compreender também por que razão outras pessoas preferem que essas crianças sejam liquidadas rapidamente e sem dor. Mas por que razão é que alguém preferiria deixar “a desidratação e a infecção destruírem um ser minúsculo, durante horas e dias”? A doutrina que diz que pode permitir-se que um bebé se desidrate e faleça, mas que não pode ser-lhe ministrada uma injecção que poria fim à sua existência sem sofrimento, parece tão obviamente cruel que não merece mais refutação. A linguagem forte não tem como intenção ofender mas apenas apresentar a questão com a maior clareza possível.
O meu segundo argumento é que a doutrina convencional conduz a decisões relativas à vida e morte tomadas com base em pressupostos irrelevantes.
Consideremos de novo o caso dos bebés com síndrome de Down que, para viver, precisam de ser operados devido a malformações congénitas não relacionadas com a síndrome. Por vezes, não se realiza a operação e a criança morre, mas quando não existe essa malformação, a criança continua a viver. Ora bem, uma operação para corrigir uma obstrução intestinal não é extraordinariamente difícil. A razão pela qual se não efectuam essas operações nestes casos é, claramente, a criança ter síndrome de Down e os pais e o médico pensarem que, devido a esse facto, é melhor que a criança morra.
Mas reparem que esta situação é absurda, independentemente do ponto de vista que se tenha em relação as vidas e potenciais dessas crianças. Se a vida de uma dessas crianças merece ser preservada, que interessa se necessita de uma operação simples? Ou, se pensarmos que uma tal criança não deveria sobreviver, que diferença faz o facto de ter um trato intestinal sem obstruções? Em qualquer dos casos, a questão de vida e de morte está a ser decidida com base em pressupostos irrelevantes. É a síndrome de Down, e não os intestinos, que constitui a questão. Caso houvesse que tomar uma decisão, esta deveria ser atingida com esse fundamento e não deveria permitir-se que dependesse da questão essencialmente irrelevante de o trato intestinal estar obstruído.
É claro que o que torna possível esta situação é a ideia de que, quando existe uma obstrução intestinal, se pode “deixar morrer o bebé”, mas quando não existe essa malformação nada se pode fazer, porque não podemos “mata-lo”. O facto de esta ideia conduzir a consequências como a tomada de decisões de vida ou morte com base em pressupostos irrelevantes a mais uma boa razão para a doutrina ser rejeitada.
Uma razão pela qual tantas pessoas pensam que existe uma diferença moral importante entre a eutanásia activa e a passiva é pensarem que matar alguém é pior, em termos morais, do que deixar morrer alguém. Mas, será assim? Matar será, em si mesmo, pior do que deixar morrer? Para investigarmos esta questão, poderemos tomar em consideração dois casos que são precisamente iguais, com a excepção de um deles implicar matar e outro implicar deixar morrer alguém. Depois, poderemos perguntar se esta diferença produz qualquer diferença na avaliação moral. É importante que os casos sejam precisamente iguais, com excepção desta única diferença, dado que, de outro modo, não poderemos ter a certeza de que a esta diferença, e não outra, que dita qualquer variação das avaliações dos dois casos. Assim, tomemos em consideração estes dois casos.
No primeiro, Smith poderá receber uma avultada herança se acontecer alguma coisa ao seu primo, que tem seis anos. Uma noite, enquanto a criança está a tomar banho, Smith introduz-se sub-repticiamente na casa de banho e afoga a criança, arranjando depois as coisas para parecer um acidente.
No segundo, Jones também poderá lucrar se acontecer alguma coisa ao seu primo de seis anos. Tal como Smith, Jones introduz-se sub-repticiamente na casa de banho para afogar a criança durante o banho. No entanto, ao entrar na casa de banho, Jones vê a criança escorregar e bater com a cabeça e cair na agua, com o rosto virado para baixo. Jones fica encantado; fica a assistir, pronto para tornar a mergulhar a cabeça da criança se for necessário, mas não é. Quase sem se debater, a criança afoga-se sozinha, “acidentalmente”, enquanto Jones assiste e nada faz.
Ora bem, Smith matou a criança, enquanto Jones “apenas” a deixou morrer. Será que algum dos homens se comportou melhor, de um ponto de vista moral? Se a diferença entre matar e deixar morrer fosse, em si mesma, uma questão moralmente importante, deveríamos dizer que o comportamento de Jones era menos repreensível do que o de Smith. Mas queremos efectivamente dizê-lo? Penso que não. Em primeiro lugar, ambos agiram com base no mesmo móbil, o ganho pessoal, e ambos tinham precisamente o mesmo fim em vista quando agiram. Da conduta de Smith, podemos inferir que é um homem mau, embora essa opinião possa ser anulada ou modificada se viermos a conhecer determinados factos adicionais acerca dele ― por exemplo, que sofre de perturbação mental. Mas não poderíamos inferir precisamente o mesmo em relação a Jones, com base na sua conduta? E as mesmas considerações subsequentes não seriam relevantes também para quaisquer alterações desta opinião? Alem disso, suponham que Jones alegava, na sua defesa, “Ao fim e ao cabo, não fiz nada, para além de ficar ali e ver a criança afogar-se. Não a matei; limitei-me a deixá-la morrer”. Uma vez mais, se deixar morrer fosse, em si mesmo, menos mau do que matar, esta defesa teria pelo menos algum peso. Mas não tem. Uma tal “defesa” apenas pode ser considerada uma perversão grotesca do raciocínio moral. Falando em termos morais, não constitui defesa alguma.
Muito bem, poderá referir-se, com muita propriedade, que os casos de eutanásia em que se encontram implicados os médicos não são em nada semelhantes a este. Não envolvem ganhos pessoais ou a destruição de crianças saudáveis. Os médicos intervêm apenas em casos em que a vida do paciente já não tem qualquer utilidade para ele, ou em que a vida do doente se tornou ou esta prestes a tornar-se um terrível fardo. No entanto, o que está em questão é o mesmo, nestes casos: a simples diferença entre matar e deixar morrer não produz, por si só, uma diferença moral. Se um médico deixar morrer um paciente, por razões humanitárias, encontra-se na mesma posição moral que se tivesse dado ao paciente uma injecção letal, por razoes humanitárias. Se essa decisão tivesse sido errada ― se, por exemplo, a doença do paciente fosse efectivamente curável ― a decisão seria igualmente lamentável, independentemente do método utilizado para a executar. E se a decisão do médico foi acertada, o método utilizado não é, em si mesmo, importante.
A declaração de política da AMA isola muito bem a questão fulcral; que é “o acto intencional de pôr termo à vida de um ser humano, praticado por outro”. Mas, depois de identificar esta questão e de proibir “o homicídio por piedade”, a declaração nega seguidamente que a cessação do tratamento seja um acto intencional de pôr termo à vida. É aqui que reside o erro, porque, que é a cessação do tratamento, nestas circunstâncias, senão “o acto intencional de pôr termo à vida de um ser humano, praticado por outro”? Claro que é precisamente isso e, se assim não fosse, não teria razão de ser.
Muitas pessoas pensarão que esta opinião é difícil de aceitar. Uma razão, penso, é que é muito fácil combinar a questão de saber se matar é, em si mesmo, pior do que deixar morrer, com a questão muito diferente de saber se a maior parte dos casos reais em que se mata alguém é mais repreensível do que a maior parte dos casos reais em que se deixa morrer alguém. A maior parte dos casos em que se mata é claramente horrível (pensem, por exemplo, em todos os homicídios noticiados pelos jornais) e todos os dias chegam ao nosso conhecimento casos desses. Por outro lado, raramente ouvimos falar de casos em que se deixou morrer alguém, excepto quando respeitam a actos de médicos movidos por razões humanitárias.
Por isso, as pessoas habituam-se a pensar no acto de matar alguém com uma perspectiva mais negativa do que a aplicam ao acto de deixar morrer. Mas isto não significa que exista alguma coisa em matar que tome esse acto, em si mesmo, pior do que deixar morrer, porque não é a mera diferença entre matar e deixar morrer que estabelece a diferença nestes casos. São antes os outros factores ― o móbil de lucro pessoal do assassino, por exemplo, por oposição à motivação humanitária do medico ― que são responsáveis pelas reacções diferentes aos casos diferentes.
Defendi que, em si mesmo, matar não é pior do que deixar morrer; se a minha afirmação estiver certa, decorrerá daí que a eutanásia activa não é pior do que a eutanásia passiva. Que argumentos podem ser apresentados no outro sentido? Penso que o mais comum é o seguinte:
“A diferença importante entre a eutanásia activa e a passiva e que, na eutanásia passiva, o médico não faz nada que provoque a morte do paciente. O medico não faz nada e o paciente morre em consequência do mal de que padece. Na eutanásia activa, o médico faz alguma coisa que provoca a morte do paciente: mata-o. O médico que administra a um paciente com cancro uma injecção letal provocou, com o seu gesto, a morte do seu paciente; enquanto, se se limitar a suspender o tratamento, o cancro constitui a causa da morte”.
Neste momento, precisamos de sublinhar vários aspectos. O primeiro é que não é absolutamente correcto dizer que, na eutanásia passiva, o médico não faz nada, porque este faz uma coisa que é muito importante: deixa morrer o doente. É certo que “deixar morrer uma pessoa” é diferente, em determinados aspectos, de outros tipos de acto ― sobretudo pelo facto de se tratar de um acto que pode ser realizado não executando determinados outros actos. Por exemplo, pode deixar-se morrer um doente não lhe dando medicação, do mesmo modo que se pode insultar alguém pelo mero facto de lhe não apertar a mão. Mas, para efeitos de avaliação moral, é mesmo assim um tipo de acto. A decisão de deixar morrer um paciente está sujeita a uma avaliação moral nos mesmos precisos termos em que a decisão de o matar seria sujeita a avaliação moral: poderá ser considerada sensata ou insensata, misericordiosa ou sádica, certa ou errada. Se um médico, deliberadamente, deixasse morrer um doente que sofresse de uma doença que é rotineiramente curável, deveria necessariamente arcar com as responsabilidades do seu acto, tal como aconteceria se tivesse matado desnecessariamente o paciente. Nesse caso, seria acertado levá-lo a tribunal. E, assim sendo, não constituiria defesa insistir em que não “fizera nada”. Teria feito algo mesmo muito grave, porque deixara morrer o seu paciente.
Determinar a causa de morte pode ser muito importante do ponto de vista legal, porque poderá determinar se o médico deverá ser alvo de procedimento criminal. Mas não penso que esta noção possa ser utilizada para evidenciar uma diferença moral entre a eutanásia activa e passiva. A razão por que se considera mau ser causa da morte de alguém é a morte ser vista como um grande mal ― e é-o, efectivamente. No entanto, se se decidiu que a eutanásia ― a simples eutanásia passiva ― é desejável num determinado caso, também se decidiu que, nesta situação, a morte não é um mal maior do que a manutenção da vida do paciente. E, se isto for verdade, a razão habitual de não querer ser a causa da morte de alguém não serve.
Finalmente, os médicos poderão pensar que tudo isto se reveste de um mero interesse académico ― o tipo de coisa com que os filósofos poderão preocupar-se mas que não tem reflexos práticos no seu trabalho. Ao fim e ao cabo, os médicos tem de se preocupar com as consequências legais do que fazem e a eutanásia activa é claramente proibida por lei. Mas, mesmo assim, os médicos deveriam preocupar-se com o facto de a lei lhes estar a impor uma doutrina moral que pode muito bem ser indefensável e tem um efeito considerável sobre a sua vida profissional. É claro que, neste momento, a maior parte dos médicos não se encontra em posição de ser coagida nesta matéria, dado que não consideram que se limitam a acompanhar as exigências da lei. Pelo contrário, em declarações como a declaração de política da AMA que citei atrás, estão a subscrever esta doutrina como ponto central da ética médica. Nessa declaração, a eutanásia activa é condenada não só como ilegal mas também como “contrária àquilo que a profissão médica defende”, enquanto a eutanásia passiva é aprovada. No entanto, as considerações precedentes sugerem que, efectivamente, não existe uma diferença moral entre as duas, consideradas em si mesmas (em alguns casos, pode haver diferenças morais importantes nas suas consequências mas, como salientei, essas diferenças podem tornar a eutanásia activa, e não a passiva, uma opção preferível em termos morais). Por isso, embora os médicos possam ter de fazer discriminação entre eutanásia activa e passiva para cumprir a lei, não deveriam fazer mais do que isso. Sobretudo, não deveriam atribuir a essa distinção mais autoridade e peso inserindo-a em declarações oficiais de ética médica.
A. Shaw, “Doctor, Do We Have a Choice?” The New York Times Magazine (30 de Janeiro de 1972): 54. ↩︎︎