A teoria ética de Kant oferece-nos um princípio da moral que deve poder ser aplicado a todas as questões morais. Kant enuncia-o de diferentes maneiras com o objectivo de esclarecer as suas implicações. Partiremos de um caso simples, de senso comum, para esclarecer essas diferentes formulações:
O Silva reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50 €. Apanhou-a e... que fez?
Avaliemos três decisões possíveis de Silva
A acção 1 é claramente imoral. O Silva ficou com os 50 € devido ao seu interesse. Quanto à acção 2, o senso comum diria que é hipócrita ou interesseira, pois o Silva devolveu os 50 € apenas porque isso é do seu interesse. De facto, o princípio da decisão em 2 foi o mesmo que em 1 — o interesse. Pôr o seu interesse acima de tudo, como princípio das acções, é imoral. Assim, só a acção 3 é moralmente correcta, já que o Silva ultrapassou os seus interesses e agiu de forma desinteressada.
O nosso juízo sobre cada uma das possíveis decisões do Silva foi guiado pelo princípio do desinteresse:
“Age desinteressadamente”.
A teoria de Kant não impede que a pessoa satisfaça os seus interesses — afinal também era do interesse do Silva decidir o que fazer com os 50 € e, apesar de não ter sido esse o motivo da acção 3, também ganhou a consideração do cliente. O acto deve ser desinteressado mas se, além disso, satisfizer interesses, tanto melhor para o agente; se contrariar interesses, paciência.
Podemos enunciar o princípio do desinteresse de outra maneira:
“Decide com imparcialidade”.
Aprovamos moralmente as decisões e as acções quando o sujeito, como no caso 3, decide como um juiz imparcial. Nos casos 1 e 2 Silva permitiu que os seus interesses lhe roubassem a imparcialidade.
É provável que Kant, neste aspecto, se afaste um pouco do senso comum. O senso comum pode pensar que a “imparcialidade” será considerar igualmente “cada um dos interesses envolvidos” ou, então, ajuizar sobre cada caso atendendo ao “interesse de todos”. Mas os “interesses das partes envolvidas” podem ser igualmente imorais. Quanto ao “interesse de todos” pode nem existir (afinal é típico os interesses estarem em conflito...) e, se existir, será, como todos os interesses, contingente, caprichoso como a humanidade, e a moral não pode estar sujeita a caprichos. “Imparcialidade”, para Kant, significa decidir independentemente de quaisquer interesses. De facto, Kant pensava, em parte de acordo com o senso comum, que o progresso moral também ajuda à felicidade e aos interesses mais dignos das pessoas. Mas ele sabe que a harmonia entre a moral e a felicidade não é certa e que se a acção moral gerar felicidade será por acréscimo ou efeito secundário.
Se a pessoa não deve agir por interesse, então deve agir por obrigação, por dever. A acção 1 foi em tudo contrária ao dever. A acção 2 está em conformidade com o dever, porque o Silva fez o que deveria ter feito, mas foi feita por interesse e não por dever. Só a acção 3, a única a ter toda a nossa aprovação moral, foi feita por dever. Assim, o princípio da moralidade pode ser enunciado deste modo:
“Age apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou fins”.
Devemos ter em mente que falamos de decisões e acções morais. Se um papel inútil na minha secretária me incomodar, é do meu interesse deitá-lo para a reciclagem e, ao fazê-lo, não estou a violar o princípio dos deveres; mas se atirar o papel para o quintal do vizinho, deixo de cumprir o dever de respeitar as pessoas...
Os princípios do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e têm as mesmas implicações. Isto permite esclarecer o que são deveres morais:
O dever é uma regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial.
Assim, podemos evitar o erro, bastante difundido, de supor que os deveres morais são criações ou convenções sociais. Dois argumentos contribuem para este erro. O primeiro parte do facto de alguns dos “deveres morais” de uma sociedade serem diferentes dos de outras, para concluir, erradamente, que todos os deveres são convenções sociais. O segundo argumento parte do facto de muitas vezes cumprirmos os deveres contrariados, como se fôssemos obrigados por uma autoridade externa, para concluir que não podem ter origem em nós mas sim numa autoridade externa.
Ora, a teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é a ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” — ordenou o Silva a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito...” — hesitou o Silva), explica por que o dever parece ter origem numa autoridade exterior que nos contraria.
A teoria moral de Kant concilia a ideia de que os deveres morais são criações dos indivíduos e a ideia de que a moral é universal, comum a todos. Esta ideia pode surpreender-nos: não é verdade que “cada cabeça, sua sentença”?
A acção correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal. Como? Abstraindo dos seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e pensa imparcialmente faz o mesmo: é honesta e devolve os 50 €. Aplica a mesma ideia a deveres morais comuns como “Cumpre as promessas”, “Paga o que deves”, “Sê leal”, “Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e a parcialidade do agente podem levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e aprovamo-las. Kant exprimiu esta ideia numa fórmula conhecida por princípio da universalizabilidade:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”.
Uma máxima é uma regra que deve valer para certos tipos de acção e será moral ou imoral consoante esteja ou não de acordo com o princípio moral, que é uma regra que deve valer para todas as acções. A máxima da acção 1 poderia enunciar-se assim: “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro ao seu dono”. Poderia o Silva querer que ela fosse universalmente acatada? Não, porque a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas terrível em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados... Tenta transformar outras violações dos deveres em máximas e pergunta se podes querer que todos as cumpram. Pode o ladrão querer que todos roubem quando a oportunidade surge? Podes querer que todos façam promessas sem a intenção de cumprir?
Se juntares agora o princípio da universalizabilidade e o esclarecimento da origem dos deveres, compreenderás a ideia surpreendente de Kant de que nas decisões morais nós somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais.
Esta ideia também pode parecer estranha porque nos parece que os deveres não estiveram à nossa espera para serem criados. Pensamos que são as tradições que constituem listas de deveres apoiadas em sistemas de punições e recompensas. Mas, aceitar esta teoria implica afirmar que a acção 3 é impossível porque, nesse caso, o Silva só poderia agir devido ao seu interesse em evitar punições ou de ser recompensado e, em consequência, a nossa aprovação moral de 3 não teria sentido. Se aceitarmos os princípios já expostos, conclui Kant, aceitamos que em cada juízo ou decisão moral, o sujeito determina o dever. O facto de esses deveres coincidirem com alguns dos deveres tradicionais explica-se pela universalidade da razão. Kant sublinhou esta ideia de autonomia do sujeito em outras fórmulas do princípio moral:
“Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”.
“Age [...] de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”.
A fórmula da universalizabilidade ainda poderia sugerir que quando decide moralmente, o sujeito escolhe entre máximas que ele não criou mas que já estão disponíveis. A novidade mais notória destas fórmulas está no facto de acentuarem a autonomia do sujeito: o sujeito deve obedecer apenas a regras que criou, ao mesmo tempo, para si mesmo e para todos os seres racionais.
Perguntemos como é que, em cada um dos casos 1, 2 e 3, as pessoas são tratadas.
Em 1, o Silva usou o outro como meio, como se a outra pessoa fosse uma coisa ou instrumento, para o aumento directo da sua fortuna. Em 2, o Silva usou a outra pessoa como meio de marketing e propaganda. Nestes dois casos, ao mesmo tempo que usou a outra pessoa apenas como meio, o Silva usou-se como meio, abdicando da sua autonomia para favorecer impulsos e interesses que o escravizam. Que quer dizer “usar-se como meio”? Silva é uma pessoa, um ser autónomo. O que constitui esta pessoalidade ou autonomia é a capacidade de pensar e decidir por si. Mas nos casos 1 e 2 ele usou estas capacidades para servir fins ditados pelo interesse. Usar-se como meio é usar a sua autonomia para a perder.
Em 3, o Silva não tratou a outra pessoa como meio, tratou-a como um fim. Devemos esclarecer esta ideia.
Se a devolução dos 50 € não visou servir qualquer interesse, então para quê fazê-lo? Qual é a sua finalidade? A finalidade, já vimos, foi a de cumprir o dever pelo dever. Mas isso, também já vimos, é, ao mesmo tempo, definir a única legislação adequada a qualquer a pessoa, ou seja, a todo o ser racional, capaz de ultrapassar interesses para pensar e decidir por si. Assim, cumprindo o dever que deu a si mesmo, o Silva respeita todos os seres racionais, incluindo, claro, tanto o próprio Silva como a pessoa do seu cliente. O mesmo seria dizer que respeitando a pessoa do seu cliente, o Silva respeita-se e respeita todos os seres racionais, tomando-os como fins da sua acção.
Kant sintetizou o seu pensamento noutra fórmula:
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio”.
Nota que a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras, porque se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe o Silva de usar os seus clientes para prosperar, mas se enganar nos preços e não devolver o dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.
Júlio Sameiro