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14 de Novembro de 2006   História da filosofia

John Stuart Mill

Richard Reeves
Tradução de Rui Vieira da Cunha

Em Maio de 1873, o establishment britânico foi agitado por uma dura discussão. Dizia respeito ao legado de John Stuart Mill, recentemente falecido. O Times tinha publicado um obituário que era um exercício de assassínio póstumo de reputação. Foi escrito por Abraham Hayward, um advogado conservador e feroz crítico de liberais, feministas e filósofos. Mill (culpado nas três acusações) tinha sido um alvo do azedume de Hayward desde que os dois se tinham defrontado no Clube de Debate de Londres meio século antes e Mill, nas palavras de um observador, tinha “passado por Hayward como um arado sobre um rato”.

O óbito do “Thunderer”1 provocou um ataque retaliatório pelo clérigo liberal Stopford Brooke, durante o seu sermão dominical em St. James. Isto impeliu Hayward a publicar um ataque ainda mais selvagem, concentrando-se num incidente de 1823, quando Mill, com 17 anos, tinha sido detido por distribuir panfletos sobre contracepção. Surgiram mais artigos e panfletos, de ambos os lados, e a controvérsia grassou durante semanas. Uma das infelizes consequências da discussão foi a decisão de William Gladstone de retirar o seu apoio a um comité para erigir um monumento à memória de Mill, um acto de cobardia pelo qual tem sido condenado mesmo pelos seus biógrafos mais elogiosos. Foi Gladstone quem chamou a Mill “o santo do racionalismo”, o que, embora dito afectuosamente, contribuíu para a falsa imagem de Mill que chegou até aos nossos dias: um rapaz atafulhado de factos que se tornou um intelectual ascético, seco, sem graça, assexuado e pomposo.

As arrebatadas discussões após a morte de Mill evidenciam o desajustamento desta caricatura. A grandeza de Mill não reside de facto no poder do seu empreendimento intelectual: ele está longe de ser o maior pensador britânico. Nem jaz nas suas capacidades políticas — pelos critérios tradicionais, foi um político fracassado. A grandeza de John Stuart Mill reside na sua recusa em separar pensamento e acção. Foi um homem que, como o seu afilhado Bertrand Russell, foi preso pelas suas crenças. Afirmou que “as ideias têm consequências” — mas raramente se dispunha a limitar-se às primeiras.

Mill escreveu um dos trabalhos fundamentais de economia política do século XIX — e também trabalhou incansavelmente pela reforma agrária irlandesa. Apresentou um argumento de referência a favor da igualdade de direitos para as mulheres, e durante toda a sua vida insistiu em reformas legais e políticas em seu favor — Millicent Fawcett descreveu-o como o “originador principal” do movimento feminista. Mill apresentou, no seu famoso Sobre a Liberdade, uma defesa intemporal da liberdade de expressão e acção que inspirou geração após geração em todo o mundo. Mas enquanto vetusto deputado também liderou a bem-sucedida campanha contra a tentativa de Disraeli de banir as manifestações em parques públicos, especialmente em Hyde Park — um canto do qual permanece até hoje um símbolo da liberdade de expressão2.

Mill era um homem que via pouco valor em ideias a menos que fossem ligadas ao desenvolvimento humano, e foi brilhantemente sucedido usando a sua estatura intelectual para influenciar a política e a cultura da sua época. É o maior intelectual público na história da Grã-Bretanha. Este facto — ou afirmação — por si só torna a sua vida digna de re-exame à luz do debate actual sobre o estatuto dos pensadores públicos, inspirado pelos rankings de intelectuais públicos da Prospect e livros como Absent Minds, de Stefan Collini. Além disso, em Maio deste ano festejou-se o bicentenário do nascimento de Mill, permitindo aos seus admiradores de todo o mundo juntar-se em conferências e seminários, incluindo um festival de três dias dedicado a Mill na University College de Londres.

Mill ocupa uma posição icónica no discurso político contemporâneo. Agora que já não é visto como perigosamente partidário, o seu nome é citado por políticos e comentadores de todas as espécies. Foi frequentemente citado, por exemplo, durante o debate sobre a proibição de fumar em locais públicos — por ambos os lados, o que lhe teria agradado. Simon Jenkins, opondo-se à proibição no Guardian, citou o famoso Princípio do Dano de Mill: “O único fim para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para prevenir o mal de outros”. O deputado Chris Huhne citou o mesmo princípio a favor da proibição. O fantasma de Mill tem pairado sobre muitos debates semelhantes. A disputa dos anos 60 entre o comité Wolfenden e Lord Devlin acerca do estatuto legal da homossexualidade transformou-se numa discussão sobre a robustez da definição de liberdade de Mill.

Outra razão para o aparecimento de Mill nos discursos políticos e nas páginas de opinião e editoriais foi a sua habilidade em inventar expressões cativantes. Foi um mestre primevo do soundbite: “Mais vale um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; mais vale um Sócrates insatisfeito que um tolo satisfeito”; “Já não há mais escravos legais excepto as donas de casa”; A Inglaterra é “o lastro da Europa, a França a sua vela”; e, obviamente, “Nunca quis dizer que os conservadores são geralmente estúpidos. Queria apenas dizer que as pessoas estúpidas são geralmente conservadoras”.

Mas foi a constante tentativa de Mill em definir e promover a liberdade individual que mais fortemente nos chama de volta ao seu trabalho, não menos por representar a libertação da sua própria educação. A sua infância foi uma experiência de utilitarismo racional conduzida pelo seu pai, James Mill, e o seu padrinho, Jeremy Bentham. Graças à intensa e intimidatória atenção de seu pai, tornou-se uma criança-prodígio. Foi mergulhado na história, cultura e línguas clássicas, e era um notável lógico e economista político a meio da adolescência. Além disso, não tinha amigos, não tinha brinquedos e tinha pouco amor. Aos 20 sofreu uma “crise mental” da qual veio a recuperar com a ajuda da poesia de Wordsworth. Mas o resultado do seu esgotamento foi o início de uma longa e lenta deserção das fileiras utilitaristas. Compare-se a sua perspectiva sobre Sócrates, tolos e porcos com esta de Bentham: “Chamem-lhes monges, soldados, máquinas: desde que tenham sido felizes, não me importa”.

Mill escreveu um famoso ensaio chamado Utilitarismo, mas acabou não como um evangelizador em nome do princípio utilitarista da “maior felicidade do maior número” mas como o advogado mais eloquente da liberdade humana que alguma vez escreveu em língua inglesa. Mill era um utilitarista de segunda categoria mas um liberal de primeira. Manteve muitas das perspectivas de seu pai e de Bentham acerca da psicologia, especialmente a de que a recusa da dor e a procura do prazer eram as principais origens humanas da acção. Mas nunca viu a felicidade como mais importante do que a liberdade — uma consideração importante actualmente, quando uma nova ciência da felicidade está a ser alimentada nos departamentos universitários de economia e psicologia. Mill citou a opinião de Bentham de que “o jogo da malha era tão bom como poesia” mas apenas como prova das vistas curtas do seu padrinho.

A visão filosófica de Mill retira tanto o seu poder como a sua fraqueza das suas várias tentativas de entrelaçar uma série de correntes diversas. Mill queria certamente preservar um espaço para a acção individual livre de interferências. Mas também queria preencher a sua ideia de liberdade com uma concepção rica de vida boa. Estava convencido que as pessoas deviam ser senhores e senhoras das suas próprias vidas — mas também que algumas formas de vida eram melhores que outras. A trajectória em ziguezague resultante do trabalho de Mill destroi qualquer tentativa de construir um sistema coerente a partir dos seus volumosos escritos (a recém re-editada Obras Completas atinge 33 volumes). Mas Mill não ficaria muito agastado com isso. Apesar de toda a sua francofilia, tinha uma desconfiança inglesa dos sistemas filosóficos que afirmavam providenciar, de uma vez para todas, as respostas para todas as dificuldades económicas, sociais e políticas. Aprendeu com os excertos sensatos de Comte e Fourier, mas é impossível imaginá-lo como grande pontífice de uma nova religião da humanidade. Mill gostava de um dos últimos discursos de Marx — sobre as atitudes da classe trabalhadora contra a guerra franco-prussiana — mas teria abominado o marxismo. Não há qualquer “millismo”.

Mas se não deixou qualquer legado sistemático, Mill abordou uma série de questões importantes e de uma forma que permanece actual — muitas vezes surpreendentemente actual. Quando suplanta a segurança nacional a liberdade de expressão? Qual é o lugar da religião na política secular? Quando e com que fundamentos pode o estado interferir no comportamento dos indivíduos? Como podem autorizar-se ou regulamentar-se o jogo, o álcool e a prostituição? Mill estava a fazer estas perguntas e a responder-lhes há 150 anos.

Políticos ilustrados têm consciência dos atractivos da herança liberal de Mill. David Miliband considera-se um “socialista liberal”; David Cameron é um “conservador liberal”. David Willetts tem defendido que os conservadores precisam de se reagrupar em torno de um conceito de liberdade humana extraído de Mill. Os Democratas Liberais estão a tentar compreender o que significa ser liberal e vários dos seus principais pensadores estão a tirar o seu Mill da gaveta. Roy Hattersley tem sido um admirador de longa data de Mill (embora o force demasiado no sentido do socialismo). Gordon Brown, contudo, adoptou uma perspectiva mais crítica na sua conferência em memória de Hugo Young, em Dezembro passado, rejeitando a “perspectiva extrema da liberdade” de Mill como um “libertarianismo rude” e acusando-o de subestimar a importância da comunidade, pertença e lealdades colectivas.

Mas a vida intelectual de Mill foi gasta em rebelião contra as filosofias individualistas do século XVIII. Disse do seu próprio pai que “tal se diz que Bruto foi o último dos Romanos, também ele foi o último do século XVIII”. É verdadeiro que os libertaristas frequentemente reclamam Mill como seu. No entanto, o mais breve contacto com o trabalho de Mill mostra que a sua versão da liberdade humana foi bem mais além da não-interferência — o que Isaiah Berlin chamou “liberdade negativa”. Mill viu um papel importante no governo, pensando que as pessoas precisavam de recursos educacionais e económicos para conduzir as suas vidas por caminhos da sua própria construção.

Brown devia acrescentar à sua considerável pilha de livros tanto Sobre a Liberdade como “Centralisação”, um ensaio pouco lido de 1862 de Mill sobre a necessidade de proteger as organizações voluntárias e a iniciativa local — incubadoras vitais da liberdade e diversidade — do poder do estado central. O Partido Trabalhista não deve permitir que a inspiradora visão da liberdade humana de Mill seja apropriada pelos Conservadores. John Stuart Mill era um pensador eclético e de espírito aberto. Mas era enfaticamente, irrefutavelmente, de esquerda.

Quando Mill chegou ao Parlamento em 1865, Disraeli exclamou: “Ah, a derradeira preceptora!” A farpa captou um aspecto do tom moralista de Mill. Mas o comentário reflecte também a sua posição como o intelectual preeminente do seu tempo, como o autor do homem (e da mulher) ilustrado(s). Walter Bagehot descreveu a sua posição relativamente à economia política do século XIX como “monárquica”. Mais recentemente, Stefan Collini escreveu que a sua “descrição da natureza e métodos da “ciência” no sentido mais lato, obteve uma autoridade em Inglaterra que era positivamente papal. E Arthur Balfour — um severo crítico de Mill de finais de século XIX — queixou-se que a sua autoridade nas universidades “era comparável à exercida quarenta anos antes por Hegel na Alemanha e na Idade Média por Aristóteles”.

Como chegou Mill a atingir este estatuto? Tal como a maioria dos intelectuais públicos, teve um livro de sucesso que o trouxe à atenção geral. Mill não esperava que o seu “escolástico” Sistema de Lógica, publicado em 1843, vendesse muito bem. De facto, esgotou em poucas semanas, tornando-se o texto de referência tanto em Oxford como em Cambridge e mantendo estatuto canónico pela maioria do resto do século. O sucesso de Mill assentou em três factores. Primeiro, ele escrevia de forma clara e atraente. Segundo, conseguiu atrair a opinião liberal sem provocar muita oposição da igreja, simplesmente pondo de lado questões de poder sobrenatural. Terceiro, era apelativo para os românticos, dando à poesia e à arte um papel vital no estabelecimento de muitos dos objectivos do desenvolvimento humano e simultaneamente permanecendo firmemente do lado da razão e da ciência contra o “intuicionismo” — a ideia de que certas verdades são conhecidas a priori sem qualquer necessidade de prova experimental.

Mill usou o seu novo estatuto como o cérebro da Grã-Bretanha liberal para sovar na complacência da classe governante em face da tragédia da fome irlandesa. Em 1846 escreveu cinquenta e dois artigos de jornal — 39 deles titulados “A Condição da Irlanda”. Para Mill, a situação irlandesa era “o exemplo mais inepto de falha de interpretação que o génio prático do povo inglês jamais exibiu”. Mill atacou esquemas para promover a emigração, compensar os donos de terras, ou oferecer insignificantes quantias de pobre consolo a camponeses esfomeados. Redistribuição das terras comunitárias era a única solução para os problemas da Irlanda. E Mill transbordou de fúria com a proclamação da Rainha Vitória de um dia de devoto jejum como uma “peça de pantomina vazia... por ocasião de uma calamidade pública”.

A torrente de palavras e argumentação de Mill não fizeram a mínima diferença na política para a Irlanda. Como reconheceu na sua autobiografia (uma obra clássica em si mesma), aqui Mill “falhou completamente”. Foi um dos muitos momentos na vida de Mill em que tomou nitidamente consciência dos limites da influência exterior na Câmara dos Comuns e na política governamental. Os intelectuais públicos podem ajudar a moldar o clima geral de ideias mas raramente são capazes de operar mudanças específicas na lei: uma das razões pelas quais Mill mais tarde se tornou deputado.

O colapso irlandês encorajou Mill a concluir o seu Princípios de Economia Política, publicado em 1848, que foi um campeão de vendas com trinta e duas edições. A maior parte do trabalho é uma eloquente reafirmação de Ricardo. Mas há um par de lampejos proféticos. Primeiro, falou dos perigos ambientais do crescimento económico e defendeu um “estado estacionário na economia, assim que a abundância suficiente estivesse assegurada”. Segundo, Mill emitiu um perspicaz aviso sobre os riscos a longo prazo da competição económica. Ao contrário de muitos intelectuais vitorianos, Mill não se opunha a fábricas e comboios, e a um crescimento do rendimento real. Mas preocupava-o, como Keynes oitenta anos mais tarde, que os hábitos da competição pudessem ficar entranhados: “Não me encanta o ideal de vida sustentado por aqueles que pensam que o estado normal dos seres humanos é o de lutar para progredir; que o calcar, esmagar, acotovelar e pisar os calcanhares uns dos outros... É o destino mais desejável da espécie humana”.

O próprio Mill não tinha necessidade de qualquer calcar ou acotovelar graças a uma confortável posição como “examinador” na Companhia das Índias Orientais — uma espécie de funcionário público governando a colónia (que nunca visitou) por controlo remoto. Os despachos da India House, além de lhe darem um rendimento seguro preenchendo no máximo metade do seu dia de trabalho, também lhe deram uma lição diária sobre a necessidade de espírito prático. Na sua própria opinião, esse trabalho era uma defesa contra o perfeccionismo debilitante de tantos intelectuais: “Fiquei praticamente familiarizado com as dificuldades de deslocar massas humanas, as necessidades do compromisso, a arte de sacrificar o acessório para preservar o essencial. Aprendi a obter o melhor possível, nas situações em que não podia obter tudo”.

Mas os assuntos indianos tiveram pouca influência no pensamento de Mill. Não era certamente um entusiasta da independência ou democracia indiana. Para Mill, a autonomia e a democracia tinham de ser merecidos — e só deviam ser concedidos a uma nação ou classe que tivesse atingido o nível necessário de maturidade social e intelectual. Por isso, apesar de defender a autonomia para o Canadá, tinha uma opinião diferente em relação às nações menos desenvolvidas: “Pessoalmente, sempre preferi um despotismo bem sólido — para governar a Irlanda ou a Índia. Mas não é possível. O espírito da democracia desenvolveu-se demasiado lá, demasiado prematuramente”. Estas perspectivas “imperialistas” (expressas em privado, acrescente-se) são estranhas ao espírito liberal moderno. Mas se Mill era um imperialista, era também profundamente internacionalista, com um conhecimento particularmente profundo (e raro) da história, cultura e política francesas (está sepultado em Avignon) e um fascínio pela democracia emergente dos EUA. Repreendeu constantemente os seus compatriotas pela sua insularidade e relutância em aprender com outras nações. O mesmo conservadorismo que protegia a nação da revolução também a imunizava contra a inovação. “A Inglaterra nunca teve qualquer ruptura geral das velhas associações”, queixava-se. “Daí a extrema dificuldade em meter quaisquer ideias na sua cabeça estúpida”.

Mas Mill tinha respeito pelos conservadores ponderados do seu tempo. Admirava Wordsworth. E apesar de se ter desentendido com Thomas Carlyle — sobre o que Carlyle famosamente apelidou a “questão dos Negros” na Jamaica — inspirou-se nas suas ideias sobre o carácter individual. Um Coleridge desfigurado pelo ópio forneceu a Mill várias revelações importantes: a necessidade de compreender o que as instituições representam antes de simplesmente as erradicar; o potencial de uma elite intectual — aquilo a que o poeta chamava um “escol” — que guiasse a nação; a importância de respeitar o que Goethe chamou de natureza “multilateral” da maioria dos problemas; e o significado unificador da cultura nacional.

Esta última disposição no seu pensamento tem uma ressonância particular actualmente, dada a tentativa de reconciliar a ideia colectiva de “britanicidade” com uma cultura individualista e diversificada — e é outro motivo para Gordon Brown reconsiderar a sua perspectiva de Mill. Mill era um inimigo do jingoísmo e da adulação de heróis militares — atacou persistentemente Wellington, um herói nacional. Mas viu efectivamente a necessidade de um locus comum nacional, fornecido seja por religiões, valores políticos seculares ou indivíduos: “Em todas as sociedades políticas que tiveram uma existência durável, houve algum ponto firme; algo em cuja sacralidade os homens concordavam... Quer dizer, um sentimento de interesse comum entre os que vivem sob o mesmo governo... que uma parte da comunidade não se considere estrangeira em relação à outra... que eles... sintam que são um só povo, que o seu destino se decide em conjunto”.

A disponibilidade de Mill para levar a sério as ideias conservadoras custou-lhe inúmeros amigos e aliados. Nos problemas políticos correntes, Mill encontrava-se ainda do lado radical da discussão, sendo a favor da extensão do sufrágio, da remoção de todos os privilégios aristocráticos e eclesiásticos, da introdução da educação nacional obrigatória e da rejeição das Leis do Milho. Em algumas áreas, como na sua insistência na igualdade para as mulheres, estava bem adiante mesmo da opinião avançada liberal. Mas Mill tinha também muito gosto em discordar do consenso liberal. Defendeu o voto secreto quando a maioria era contra — mas opos-se-lhe à medida que se tornou mais popular, para fúria dos seus velhos amigos radicais. A sua oposição ao voto secreto era, não obstante, consistente com as suas reflexões maduras sobre a liberdade humana. O perigo de votar em segredo estava em as pessoas votarem pelo seu interesse próprio e não pelo interesse público mais geral. E enquanto indivíduos, as pessoas deviam defender as suas crenças em vez de escrevinhá-las furtivamente em cabinas.

Mill prezava a sua reputação como contestatário, ainda antes de se tornar famoso. O seu amigo Henry Cole, o homem por detrás da Exposição Universal de 1851 — relatou uma conversa com Mill: “Com os utilitaristas, dizia ele, era um místico; com os místicos, um utilitarista; com os lógicos, um sentimental e com estes um lógico”.

Estas aparentes contradições no pensamento de Mill também reflectem o facto de ele estar frequentemente a funcionar em duas escalas temporais diferentes. Por um lado, estava interessado em provocar certas mudanças no curto prazo — sufrágio mais amplo, maior liberdade de expressão, racionalização do estado-providência e do governo, comércio livre — e por outro lado estava preocupado com as consequências a longo-prazo das medidas que defendia: mediocridade colectiva, uma tirania da opinião pública, um estado demasiado longínquo e uma competitividade ruinosa. Apoiou as emendas centralistas da Lei dos Pobres, escrevendo simultaneamente sobre os perigos da centralização estatal. Defendeu um eleitorado mais amplo (não exactamente universal — ele queria uma qualificação educacional básica), mas preocupava-o que a democracia de massas pudesse descer os níveis da vida pública. Queria a mais vasta disseminação possível de ideias mas preocupava-o que a opinião pública pudesse prejudicar a liberdade tão eficazmente quanto os governos despóticos.

A preocupação de Mill com a forma como as soluções de hoje poderiam estar a criar os problemas de amanhã encontra a sua expressão mais completa na sua obra mais famosa e duradoura, Sobre a Liberdade. Muitos assuntos são discutidos, incluindo um argumento substancial pela liberdade de expressão e uma meditação sobre o papel do governo. É mais famosa, contudo, pelo “simples” Princípio do Dano citado acima, que guia os limites da interferência nas acções de uma pessoa. Mas o Princípio do Dano é um pobre sumário do ensaio como um todo, e um pequeno ingrediente do liberalismo de Mill. O princípio é, ainda hoje, um poderoso contraponto do paternalismo. Mas, para Mill, a liberdade consiste em muito mais do que ser deixado em paz; requer a tomada de decisões pelo indivíduo. “Quem deixa o mundo... escolher o seu plano de vida por si, não tem necessidade de qualquer outra faculdade além da faculdade simiesca da imitação”, escreve. “Quem escolhe por si o seu plano emprega todas as suas faculdades”. Para Mill, uma vida boa tem de ser uma vida escolhida.

O principal alvo de Mill não era a coerção estatal. Uma ameaça potencialmente maior à liberdade individual provinha dos efeitos limitativos da opinião pública, ou do que ele deu ora o nome de “despotismo dos costumes” ora de “tirania da opinião pública”. Mill tinha sido muito influenciado pela perspectiva de Tocqueville de que a democracia e liberdade americanas estavam a homogeneizar, em vez de diversificar, opiniões e estilos de vida.

Para alguns, o valor do ensaio foi imediato. Charles Kingsley, o pastor radical, escreveu a Mill para dizer que ler Sobre a Liberdade o tinha tornado “imediatamente um homem mais lúcido e mais destemido”. Mas a recepção geral em 1859 foi mais fria (embora não tão fria quanto a de A Origem das Espécies, publicada no mesmo ano). Muitos concordaram com Macaulay que Mill estava a sobrestimar em Sobre a Liberdade os perigos do conformismo e o poder da opinião pública para entravar a individualidade. O historiador Whig escrevinhou no seu diário após ler o ensaio que “Ele está mesmo a gritar “Fogo!” no dilúvio de Noé”. Mill sabia disso, afirmando que Sobre a Liberdade continha mais lições para o futuro e que o perigo de um “jugo opressivo de uniformidade de opinião e prática, pode facilmente ter parecido quimérico àqueles que olharam mais para os factos presentes do que para as tendências”. Aqui pode estar também presente um factor biográfico: Mill passou a maior parte da sua vida adulta apaixonado por Harriet Taylor, que era inconvenientemente casada com outra pessoa. Os costumes sociais dominantes sobre o divórcio eram provavelmente a maior barreira à sua união; só puderam casar em 1851, após a morte do marido dela dois anos antes.

Alguns críticos modernos — especialmente os hostis aos excessos dos anos 60 — acusam Mill de subestimar em Sobre a Liberdade a importância dos costumes e da ordem sociais como uma fonte de segurança e até de liberdade. Penso que Mill teria parcialmente admitido este argumento — como já vimos, ele defendera noutro lado um consenso em torno de certos “pontos firmes”. Em Sobre a Liberdade Mill escreve sobre “a desaprovação moral no sentido próprio do termo” funcionando como um teste útil contra qualquer comportamento anti-social (tal como um pai dissipando o seu salário no jogo). É verdadeiro que Mill enfatizou os perigos tirânicos da opinião e do costume, em vez dos seus aspectos positivos. Mas o ponto fundamental é que “o que esmaga a individualidade é despotismo, qualquer que seja o nome que se lhe chame”. O indivíduo pode tanto perder-se na multidão como ser esmagado pelo estado.

O liberalismo de Mill é também enfraquecido, aos olhos de alguns, pela sua perspectiva irrealisticamente optimista da natureza humana. Ele presume que os seres humanos estão condicionados a lançar-se numa busca contínua pelo desenvolvimento pessoal via “experiências no modo de vida” resultando numa grande diversidade de estilos de vida, personalidades e pontos de vista. O Mill do século XIX tinha uma visão mais cor-de-rosa da humanidade do que a maioria dos seus leitores do século XXI, ao menos em parte devido aos acontecimentos do século que se seguiu. É este optimismo que explica por que tantos pensadores — John Gray é um flagrante exemplo contemporâneo — são inicialmente inspirados por Mill, para mais tarde se virarem contra ele. O seu optimismo inextinguível é atraente para os jovens esperançosos mas frequentemente não sobrevive ao cepticismo amadurecido.

Sobre a Liberdade também trata da liberdade de pensamento e discussão em termos que permanecem instrutivos. A sua perspectiva é a de que o progresso depende da verdade, que a verdade é mais propensa a emergir de uma colisão constante de opiniões e que a liberdade de expressão é necessária para gerar tais colisões. Há três componentes essenciais no seu argumento de que a discussão livre é geradora de verdade. Primeiro, qualquer opinião pode ser verdadeira, independentemente de quão excêntrica pareça ao início, e por isso suprimí-la é atrasar a marcha do conhecimento. Segundo, poucas opiniões contêm toda a verdade, enquanto muitas contêm uma “porção” da verdade — e apenas colocando-as em contacto e conflito se pode construir qualquer aproximação à verdade total. Ecoando Coleridge, Mill declara que normalmente “doutrinas contraditórias, em vez de serem uma verdadeira e a outra falsa, partilham a verdade entre elas”. Terceiro, mesmo que uma doutrina seja por acaso verdadeira, torna-se menos vitalmente verdadeira a menos que sujeita a crítica aberta: “tanto professores como alunos adormecem nos seus postos, assim que deixa de haver inimigos em campo”. (Ter-se-ia certamente oposto à prisão de David Irving.)

Mill insiste que a religião deve ser submetida à mesma crítica que qualquer outro sistema de pensamento, independentemente da ofensa causada. Creio que podemos confiar que Mill estaria desapontado com o progresso feito neste ponto no último século e meio e com o retrocesso da última meia década. Mill antecipou certamente quem quiz transformar em crimes meras expressões “imoderadas” de crítica religiosa. Mill não cedeu terreno, fazendo notar que a ofensa é séria “sempre que o ataque é expressivo e poderoso”. Não há dúvidas sobre onde ele se colocaria nos actuais debates sobre ódio religioso ou sobre a publicação dos cartoons de Maomé.

Há fraquezas no argumento da liberdade de expressão de Mill, é óbvio. Não é claro, como Bernard Williams salientou no seu último livro, Truth and Truthfulness, que uma troca de opiniões absolutamente livre seja de facto a rota mais segura para a produção da verdade ou a sua disseminação. Mas o argumento de Mill tem uma força considerável nos debates contemporâneos sobre crimes de liberdade de expressão. E é ainda mais forte pela sua confiança nos efeitos instrumentais em vez de em fundamentos de “direitos humanos”. Não tenho a certeza absoluta de que eu tenha um “direito” à liberdade de expressão, mas tenho a certeza absoluta de que será em detrimento de todos nós se ela me for negada.

O liberalismo de Mill também o fez um defensor firme do governo local e das associações em detrimento do controlo central. Mill encarava o papel primordial do governo central como “um entreposto central e circulador e difusor activo da experiência resultante de muitas práticas”. Achava que os pais deviam ser obrigados a educar os seus filhos, mas opunha-se ferozmente a um sistema de educação central estadual: um “curriculum nacional” tê-lo-ia horrorizado.

Sendo quem é, demarcar a posição intelectual de Mill tão maravilhosamente em Sobre a Liberdade não era suficiente. Seis anos após a publicação do seu grande livro, concorreu pelo círculo eleitoral de Westminster, que representou pelos três anos seguintes. Uma vez chegado ao Parlamento, introduziu uma emenda à proposta de Reforma, conferindo às mulheres direitos de voto iguais — a primeira tentativa para fazer tal — e ganhou, para surpresa geral, setenta e três votos para a causa. Denunciou vigorosamente a suspensão do habeas corpus na Irlanda; salvou a floresta de Epping e os ulmeiros de Piccadilly; e apresentou uma proposta de lei para estabelecer uma corporação para Londres. Também perseguiu implacavelmente o Governador Edward Eyre, que tinha contido brutalmente uma revolta na Jamaica — uma luta na qual foi lançado não só contra Carlyle mas também contra Ruskin, um inspirador do jovem Partido Trabalhista (Mill conseguiu mais tarde convencê-lo a mudar de lado). Em muitas destas iniciativas, Mill fracassou no curto prazo. Mas a sua reputação significava que era capaz de usar a Câmara dos Comuns, como profetizara décadas antes, como “uma cátedra de professor para instruir e impelir a mentalidade do público”.

Mill não era um político natural; faltava-lhe a sociabilidade e a impiedade de um gigante político. Mas ao insistir em levar as suas ideias até ao fim, delineou um lugar para si como um dos gigantes do século XIX e alguém capaz de inspirar tanto pelos seus actos em vida como pelas suas palavras intemporais.

Richard Reeves
Prospect (n.º 122, Maio de 2006)

Notas

  1. Alcunha ganha pelo jornal Times no século XIX. (N. do T.)
  2. Referência ao Speaker's Corner, um espaço do famoso parque londrino onde qualquer pessoa pode discursar em público. (N. do R.)
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