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Crítica
18 de Fevereiro de 2025   Filosofia da ciência

Uma confutação do realismo convergente

Larry Laudan
Tradução de L. H. Marques Segundo

Este ensaio explora parcialmente alguns conceitos centrais associados à epistemologia das filosofias realistas da ciência. Mostra que nem a referência nem a verdade aproximada farão o trabalho explicativo que os realistas esperam delas. Da mesma forma, várias teses realistas amplamente defendidas sobre a natureza das relações inter-teóricas e o progresso científico são escrutinadas e consideradas deficientes. Por fim, argumenta-se que a história da ciência, longe de confirmar o realismo científico, refuta decisivamente várias versões existentes de formas declaradamente “naturalistas” do realismo científico.

O argumento positivo a favor do realismo é que é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre. (Hilary Putnam, 1975)

1. O problema

Tem se tornado cada vez mais comum sugerir que o realismo epistemológico é uma hipótese empírica fundamentada em, e validada por, sua capacidade de explicar o funcionamento da ciência. Um número crescente de filósofos (incluindo Boyd, Newton-Smith, Shimony, Putnam, Friedman e Niiniluoto) tem defendido que as teses do realismo epistêmico estão abertas ao teste empírico. A sugestão de que as doutrinas epistemológicas têm tanto status empírico quanto as ciências é muito bem-vinda: pois, resistam ou não ao escrutínio detalhado, isso sinaliza um importante enfrentamento, por parte da comunidade filosófica, a um dos mais negligenciados (e notórios) problemas da filosofia: o status das teses epistemológicas.

Há, contudo, problemas e vantagens potenciais associados à “cientificização” da epistemologia. Especificamente, uma vez que concedamos que as doutrinas epistêmicas têm de ser testadas no tribunal da experiência, é possível que nossas teorias epistêmicas favoritas sejam refutadas em vez de confirmadas. A tese deste artigo é a de que é exatamente esse o destino de uma forma de realismo defendida por aqueles que têm estado na vanguarda do movimento a favor de que o realismo é apoiado pelo estudo empírico do desenvolvimento da ciência. Especificamente, mostrarei que o realismo, pelo menos em certas formas, não é nem apoiado pela evidência histórica disponível, nem dá sentido a ela.

2. O realismo convergente

Assim como outros ismos filosóficos, o termo “realismo” cobre uma variedade de pecados. Muitos deles não serão tratados aqui. Por exemplo, o “realismo semântico” (resumidamente a tese de que todas as teorias possuem valor de verdade e que algumas teorias — não sabemos quais — são verdadeiras) não está aqui em disputa. Nem discutirei aquilo a que poderíamos chamar “realismo intencional” (i.e., a perspectiva de que as teorias geralmente são usadas por seus proponentes com a intenção de asserir a existência das entidades correspondentes aos termos dessas teorias). Focar-me-ei, em vez disso, em certas formas de realismo epistemológico. Como dito por Hilary Putnam, embora tal realismo esteja em alta, “muito pouco tem sido dito sobre o que o realismo é” (1978). A falta de especificidade acerca daquilo que diz o realismo torna difícil a avaliação de suas teses, uma vez que muitas formulações são demasiado vagas e imprecisas para compreendermos. Ao mesmo tempo, quaisquer esforços para formular a posição realista com maior precisão nos faz correr o risco de estar a atacar um espantalho. Ao longo deste artigo atribuirei várias teses aos realistas. Embora provavelmente não haja um realista que subscreva a todas elas, a maioria delas têm sido defendidas por um ou outro realista assumido; tomadas conjuntamente talvez sejam aquilo que mais se aproxima daquela versão de realismo defendida por Putnam, Boyd e Newton-Smith. Embora eu pense que as perspectivas discutidas por mim possam ser legitimamente atribuídas a certos filósofos contemporâneos (usarei evidência textual para atestar isso), elas não são cruciais para o meu argumento. Nem direi estar fazendo justiça às epistemologias complexas daqueles cujo trabalho criticarei. O meu objetivo, em vez disso, é explorar certas teses epistêmicas que aqueles que são realistas poderiam estar tentados (e em alguns casos estão de fato tentados) a adotar. Se os meus argumentos forem sólidos, então algumas das versões intuitivamente mais tentadoras de realismo se revelarão quimeras.

A forma de realismo que discutirei envolve variantes das seguintes teses:

R1) As teorias científicas (pelo menos nas ciências “maduras”) são tipicamente aproximadamente verdadeiras e as teorias mais recentes estão mais próximas da verdade do que as teorias mais antigas no mesmo domínio;

R2) Os termos observacionais e teóricos nas teorias de uma ciência madura genuinamente referem (grosso modo, há substâncias no mundo que correspondem às ontologias pressuposta por nossas melhores teorias);

R3) As teorias sucessivas em qualquer ciência madura serão tais que “preservarão” as relações teóricas e os referentes aparentes das teorias anteriores (i.e., as teorias anteriores serão “casos limites” das teorias posteriores).1

R4) As novas teorias aceitáveis explicam e deveriam explicar por que as suas predecessoras foram bem-sucedidas naquilo que foram bem-sucedidas.

A essas teses semântica, metodológica e epistêmica conjunta-se uma tese metafilosófica importante sobre como o realismo deve ser avaliado e examinado. Especificamente, sustenta-se que:

R5) As teses (R1)-(R4) implicam que as teorias científicas (“maduras”) deveriam ser bem-sucedidas; na verdade, essas teses constituem a melhor, se não a única, explicação do sucesso da ciência. O sucesso empírico da ciência (no sentido de oferecer explicações detalhadas e previsões acuradas) fornece desse modo uma forte confirmação empírica ao realismo.

Chamarei a posição delineada por (R1) a (R5) realismo epistemológico convergente, ou REC. Muitos proponentes recentes do REC sustentam que (R1), (R2), (R3) e (R4) são hipóteses empíricas que, através das conexões postuladas em (R5), podem ser testadas através de uma investigação da própria ciência. Eles propõem dois argumentos abdutivos elaborados. A estrutura do primeiro, ligado a (R1) e (R2), é algo como se segue:

(I)

  1. Se as teorias científicas são aproximadamente verdadeiras, elas tipicamente serão empiricamente bem-sucedidas;
  2. Se os termos centrais nas teorias científicas referem genuinamente, tais teorias geralmente serão empiricamente bem-sucedidas;
  3. As teorias científicas são empiricamente bem-sucedidas.
  4. Logo, (provavelmente) as teorias são aproximadamente verdadeiras e seus termos referem genuinamente.

O argumento relevante a (R3) tem uma forma um pouco diferente, especificamente:

(II)

  1. Se as teorias anteriores numa ciência “madura” são aproximadamente verdadeiras e se os termos centrais dessas teorias referem genuinamente, então as teorias posteriores mais bem-sucedidas na mesma ciência preservaram as teorias anteriores como um caso limite;
  2. Os cientistas procuram preservar as teorias anteriores como casos limites e geralmente são bem-sucedidos.
  3. Logo, (provavelmente) as teorias anteriores numa ciência “madura” são aproximadamente verdadeiras e genuinamente referenciais.

Tomando o sucesso das teorias presentes e passadas como dado, os proponentes do REC afirmam que se o REC fosse verdadeiro, seguir-se-ia que o sucesso e o sucesso progressivo da ciência seria uma questão de fato. Do mesmo modo, eles alegam que se o REC fosse falso, o sucesso da ciência seria “miraculoso” e sem explicação.2 Porque o REC (segundo eles) explica o fato de a ciência ser bem-sucedida, as teses do REC são desse modo confirmadas pelo sucesso da ciência; e as epistemologias não-realistas são desacreditadas pela suposta incapacidade de explicar o sucesso das teorias atuais e o progresso historicamente exibido pela ciência.

Como Putnam e outros (e.g., Newton-Smith) veem, o fato de os enunciados sobre referência (R2, R3) ou sobre verdade aproximada (R1, R3) funcionarem na explicação de um estado de coisas contingente, estabelece que “as noções de ‘verdade’ e ‘referência’ têm um papel explicativo causal na epistemologia” (Putnam 1978, p. 21).3 De uma só vez, epistemologia e semântica são “naturalizadas” e, ainda por cima, conseguimos uma explicação do sucesso da ciência!

A questão central diante de nós é se as asserções do realista sobre as inter-relações entre verdade, referência e sucesso são sólidas. O ônus deste artigo é levantar dúvidas sobre (I) e (II). Especificamente, vou argumentar que quatro das cinco premissas dessas abduções são ou falsas ou demasiado ambíguas para serem aceitáveis. Procurarei também mostrar que, ainda que essas premissas sejam verdadeiras, elas não garantem as conclusões que os realistas extraem delas. As seções 3 a 5 deste ensaio lidam com o primeiro argumento abdutivo; a seção 6 com o segundo.

3. Referência e sucesso

O lado especificamente referencial do argumento “empírico” a favor do realismo tem sido desenvolvido principalmente por Putnam, que explicitamente fala da referência bem mais do que a maior parte dos realistas. Por outro lado, não é infrequente que a referência seja implicitamente aceita, uma vez que muitos realistas subscrevem a tese (em última instância referencial) de que “o mundo provavelmente contém as entidades postuladas pelas nossas teorias mais bem-sucedidas”.

Para que R2 satisfaça a ambição de Putnam de que a referência possa explicar o sucesso da ciência, e que o sucesso da ciência estabelece a presumível verdade de R2, parece que ele tem de aceitar teses similares a estas:

S1) As teorias nas ciências maduras ou avançadas são bem-sucedidas;

S2) Uma teoria cujos termos centrais referem genuinamente será uma teoria bem-sucedida;

S3) Se uma teoria é bem-sucedida, podemos razoavelmente inferir que seus termos centrais genuinamente referem;

S4) Todos os termos centrais nas teorias nas ciências maduras referem.

Há interconexões complexas aqui. (S2) e (S4) explicam (S1), ao passo que (S1) e (S3) fornecem garantia a (S4). A referência explica o sucesso e o sucesso garante a presunção de referência. Os argumentos são plausíveis dadas as premissas. Mas aí é que mora o problema, pois, talvez com exceção de (S1), nenhuma das premissas é aceitável.

Tornar clara a natureza desse “sucesso” que os realistas estão interessados em explicar é osso duro de roer. Embora Putnam, Sellars e Boyd tomem como um dado o sucesso de certas ciências, eles pouco têm a dizer sobre o que constitui esse sucesso. Tanto quanto posso ver, eles estão a usar uma noção amplamente pragmática a ser posta em termos da exequibilidade ou aplicabilidade de uma teoria. De acordo com essa abordagem, diremos que uma teoria é bem-sucedida se faz previsões substancialmente corretas, se leva a intervenções eficazes na ordem natural, se passa numa bateria de testes padrão. É desejável que sejamos mais específicos sobre no que consiste esse sucesso, mas a falta de uma teoria da confirmação coerente deixa isso ainda mais difícil.

Ademais, o realista tem de tomar cuidado — pelo menos para esses propósitos — com uma noção demasiado estrita de sucesso, pois uma interpretação altamente robusta e rigorosa de “sucesso” derrotaria os propósitos do realista. O que ele quer explicar, afinal de contas, é por que a ciência em geral tem funcionado tão bem. Se adotar uma caracterização muito exigente de sucesso (como aquelas defendidas pelos lógicos indutivistas ou pelos popperianos), então a ciência provavelmente se tornaria em ampla medida “malsucedida” (pois não tem um alto grau de confirmação) e o explanandum do realista não seria um problema. De acordo com isso, vou supor que uma teoria é “bem-sucedida” na medida em que tem funcionado bem, i.e., na medida em que tem funcionado a uma variedade de contextos explicativos, que tem levado a previsões confirmadas e tem tido um escopo explicativo amplo. Da maneira como interpreto a posição do realista, o seu interesse é explicar por que certas teorias têm gozado desse tipo de sucesso.

Se interpretarmos “sucesso” dessa forma, (S1) pode ser aceita. Se o critério de sucesso é o escopo explicativo amplo, a posse de um grande número de instâncias confirmadoras ou o controle preditivo ou manipulativo, é claro que a ciência é em geral uma atividade bem-sucedida.

E quanto a (S2)? Não estou certo de que algum realista a sustentasse ou devesse sustentá-la, muito embora seja uma interpretação perfeitamente natural da tese realista de que “a referência explica o sucesso”. A noção de referência envolvida aqui é altamente complexa e insatisfatória em aspectos significativos. Mesmo sem endossá-la, irei usá-la com frequência na discussão subsequente. A acepção realista de referência é bastante liberal, de acordo com a qual os termos em uma teoria podem genuinamente referir ainda que as afirmações feitas pela teoria sobre as entidades às quais elas se referem são falsas. Contanto que haja as entidades que “se encaixem aproximadamente” na descrição que a teoria faz delas, a caridosa abordagem de Putnam à referência nos permite dizer que os termos de uma teoria genuinamente referem.4 De acordo com essa abordagem (e estes são exemplos de Putnam), o “elétron” de Bohr, a “massa” de Newton, o “gene” de Mendel e o “átomo” de Dalton são todos termos que referem, ao passo que “flogisto” e “éter” não (Putnam 1978, pp. 20-22).

Serão as teorias genuinamente referenciais (i.e., teorias cujos termos centrais genuinamente referem) invariavelmente ou mesmo geralmente bem-sucedidas no nível empírico, como diz (S2)? Há ampla evidência de que não. A teoria atômica na química do século XVIII foi tão malsucedida a ponto de muitos químicos a terem abandonado em favor da química das afinidades eletivas, de caráter mais fenomenológico. A teoria proutiana de que os átomos dos elementos pesados são compostos por átomos de hidrogênio teve, em boa parte do século XIX, uma trajetória patentemente malsucedida, tendo sido confrontada por uma série de refutações aparentes. A teoria wegeriana de que os continentes são carregados por grande objetos subterrâneos que se movem lateralmente ao longo da superfície terrestre foi, por cerca de trinta anos na história recente da geologia, surpreendentemente malsucedida até que, após algumas modificações importantes, tornou-se ortodoxia nas décadas de 1960 e 70. Todas essas teorias, contudo, postularam entidades básicas que (de acordo com o “princípio de caridade” de Putnam) genuinamente existiam.

A tese realista de que deveríamos esperar que as teorias que referem sejam empiricamente bem-sucedidas é simplesmente falsa. E, com um pouco de reflexão, podemos ver por quê. Ter uma teoria que genuinamente refere é ter uma teoria que “recorta o mundo em sua juntas”, uma teoria que postula entidades de um tipo que realmente existem. Mas uma teoria que genuinamente refere não precisa ser tal que todas — ou quase todas — as suas afirmações específicas sobre as propriedades dessas entidades e seus modos de interação sejam verdadeiras. Desse modo, a teoria de Dalton sobre o elétron era, de maneira similar, falha em aspectos relevantes. Contra (S2), as teorias que genuinamente referem não precisam ser patentemente bem-sucedidas, uma vez que tais teorias podem ser “massivamente falsas” (i.e., ter um conteúdo de falsidades muito maior do que o conteúdo de verdades).

(S2) é tão patentemente falsa que é até difícil imaginar que o realista precise estar comprometido com ela. E o que mais pode ser feito? O realista (putiniano) quer que as atribuições de referência aos termos de uma teoria sirvam a uma explicação do sucesso dessa teoria. A maneira mais simples e crua de se fazer isso envolve uma tese como (S2). Uma maneira menos afrontosa de atingir o mesmo fim envolveria uma tese mais fraca,

(S2′) Uma teoria cujos termos referem será geralmente (mas nem sempre) bem-sucedida.

Casos isolados de teorias malsucedida s que referem, suficientes para refutar (S2), deixa (S2′) ilesa. Mas caso encontremos uma ampla gama de teorias malsucedida s que referem, teremos evidência contra (S2′). E podemos gerar tais teorias à vontade. Por exemplo, tome qualquer conjunto de termos considerados referenciais. Em qualquer linguagem rica o bastante para conter a negação será possível construir indefinidamente muitas teorias malsucedida s, todas elas tendo seus termos principais referindo genuinamente. Ora, o realista poderá sempre responder que tais “teorias” não são de fato teorias, mas meras conjunções de enunciados isolados — carecendo do tipo de integração conceitual geralmente associadas às teorias “reais”. Infelizmente, podemos construir um argumento similar envolvendo teorias genuínas. Considere, por exemplo, quantas versões inadequadas da teoria atômica houve em dois mil anos de “especulação” atômica até que uma teoria genuinamente bem-sucedida primeiro emergisse. As teorias cinéticas do calor nos séculos XVII e XVIII, as teorias desenvolvimentais da embriologia anteriores ao final do século XIX têm uma história parecida. (S2′), tanto quanto (S2), parece difícil de ser reconciliada com o registro histórico.

Como Richard Burian me chamou atenção (numa conversa pessoal), um realista poderia tentar dispensar essas teses e apenas se contentar com (S3). Ao contrário de (S2) e (S2′), (S3) não está aberta à objeção de que as teorias que referem são em geral malsucedida s, pois não afirma que as teorias que referem são sempre, ou na maioria das vezes, bem-sucedidas. (S3) tem suas próprias dificuldades, contudo. Em primeiro lugar, parece difícil conciliá-la com o fato de que termos centrais de muitas teorias relativamente bem-sucedidas (e.g., as teorias do éter, do flogisto) são evidentemente não-referenciais. Discutirei essa tensão detalhadamente mais adiante. O que é mais importante para os nossos propósitos aqui é que (S3) não é forte o bastante para permitir que o realista utilize a referência para explicar o sucesso. A menos que a autenticidade de referência implique que todas ou a maioria das teorias que referem serão bem-sucedidas, então o fato de que os termos de uma teoria referem dificilmente oferecerá uma explicação convincente do sucesso dessa teoria. Se, como diz (S3), muitas (ou mesmo a maioria) das teorias que referem podem ser malsucedidas, como pode o fato de os termos de uma teoria bem-sucedida referirem explicar o porquê de seu sucesso? (S3) pode ou não ser verdadeira; mas em ambos os casos ela não dá ao realista um acesso explicativo ao sucesso científico.

Uma interpretação mais plausível da afirmação de Putnam de que a referência desempenha um papel na explicação do sucesso da ciência envolve um argumento bem mais indireto. Poder-se-ia dizer (e Putnam de fato diz) que podemos explicar por que uma teoria é bem-sucedida caso suponhamos que a teoria é verdadeira ou aproximadamente verdadeira. Uma vez que uma teoria só pode ser verdadeira ou aproximadamente verdadeira (em algum dos sentidos daqueles termos abertos ao realista) se seus termos genuinamente referirem, poderíamos defender que a referência invariavelmente servirá à explicação do sucesso de uma teoria em termos de seu status de verdade. A viabilidade dessa abordagem indireta será tratada mais pormenorizadamente na seção 4, de modo que não a discutirei aqui exceto para apontar que se o único ponto de contato entre referência e sucesso é fornecido por meio da verdade aproximada, então a conexão entre referência e sucesso é extremamente tênue.

E quanto a (S3), a tese realista de que o sucesso cria uma presunção racional de referência? Já vimos que (S3) não oferece qualquer explicação do sucesso da ciência, mas será que ela tem algum mérito independente? A questão é especificamente se o sucesso de uma teoria fornece alguma garantia para concluirmos que seus termos centrais referem. Na medida em que essa é — como sugerem alguns realistas — uma questão empírica, é preciso que investiguemos se as teorias passadas que foram bem-sucedidas são também aquelas cujos termos centrais genuinamente referiam (de acordo com a abordagem da referência oferecida pelos realistas).

Um teste empírico adequado dessa hipótese exigiria que examinássemos extensivamente o registro histórico de um nodo que não é possível aqui. O que posso fazer é mencionar uma gama de teorias bem-sucedidas que (de acordo com os critérios atuais) não referem. Uma lista mais completa será apresentada mais adiante (veja a seção 5), mas por agora foquemo-nos numa família de teorias correlatas, a saber, a dos fluídos sutis e do éter, provenientes da química e da física dos séculos XVIII e XIX.

Considere especificamente o estado das teorias do éter nas décadas de 1830 e 1840. O fluído elétrico, uma substância que supostamente se acumulava na superfície e não nos interstícios dos corpos, tinha sido utilizado para explicar inter alia a atração de corpos com cargas opostas, o comportamento da garrafa de Leyden, as similaridades entre a eletricidade atmosférica e estática e muitos fenômenos relacionados à corrente elétrica. Na química e na teoria do calor, o éter calórico tinha sido amplamente utilizado desde Boerhaave (e por, dentre outros, Lavoisier, Laplace, Black, Rumford, Hutton e Cavendish) para explicar tudo, desde o papel do calor nas reações químicas até a condução e radiação do calor e vários problemas comuns de termometria. Na teoria da luz, o éter óptico funcionava principalmente nas explicações da reflexão, refração, interferência, refração dupla, difração e polarização. (Mais do que uma curiosidade, as teorias do éter óptico fizeram algumas previsões bastante surpreendentes, e.g., a previsão de Fresnel de um ponto brilhante dentro da sombra de um disco circular; uma previsão surpreendente que, depois de testada, mostrou-se correta. Se isso não conta como sucesso empírico, nada mais conta!). Houve também éteres gravitacionais (e.g., o de LeSage) e fisiológicos (e.g., o de Hartley) que tiveram algum sucesso empírico. Seria difícil encontrar uma família de teorias nesse período que fosse tão bem-sucedida quanto as teorias do éter; comparada a elas, o atomismo do século XIX (por exemplo), uma teoria que referia genuinamente (dado os padrões realistas), era um fracasso. Na verdade, de acordo com qualquer abordagem do sucesso empírico que me vem à mente, as teorias do éter do século XIX — teorias que não referiam — foram mais bem-sucedidas do que as teorias atômicas dessa mesma época, essas últimas teorias que referiam. Do mesmo modo, vale a pena lembrar a observação do grande físico teórico, J. C. Maxwell, de que o éter fora muito mais bem confirmado do que qualquer outra entidade teórica na filosofia natural!

As teorias do éter do século XIX nos apresenta, assim, uma ampla variedade de teorias outrora bem-sucedidas, cujo conceito explicativo central é apontado por Putnam como sendo o melhor exemplo de conceito que não refere (Putnam 1978, p. 22). O que os realistas (referenciais) pensam desse tipo de exemplo histórico? Frente a isso, esse caso apresenta dois tipos bastante diferentes de desafio ao realismo: (1) sugere que (S3) é um conselho dúbio no que diz respeito a poder haver (e ter havido) teorias altamente bem-sucedidas cujos termos centrais não referem; e (2) sugere que a tese do realista de que ele pode explicar por que a ciência tem sido bem-sucedida é falsa pelo menos na medida em que uma parte do sucesso histórico da ciência tem sido um sucesso exibido por teorias cujos termos centrais não referiam.

Talvez eu esteja sendo menos do que justo ao sugerir que o realista esteja comprometido com a afirmação de que todos os termos centrais em uma teoria bem-sucedida referem. É possível que quando Putnam, por exemplo, diz que “os termos na ciência madura [ou bem-sucedida] tipicamente referem” (Putnam 1978, p. 20), ele esteja apenas sugerindo que alguns termos numa teoria ou ciência bem-sucedida genuinamente refiram. Tal afirmação é completamente consistente com o fato de que certos outros termos (e.g., “éter”) todavia não referem. Dito de outro modo, o realista poderia argumentar que o sucesso de uma teoria garante a tese de que pelo menos alguns (mas não necessariamente todos) de seus conceitos centrais refiram.

Tal enfraquecimento de (S3), infelizmente, implica uma teoria do apoio probatório que pouco ajuda o realista. Afinal, parte daquilo que separa o realista do positivista é a crença do primeiro de que a evidência a favor de uma teoria é evidência para tudo aquilo que a teoria afirma. Quando um positivista estereotípico defende que a evidência confirma seletivamente apenas as partes mais “observáveis” de uma teoria, o realista geralmente afirma (na linguagem de Boyd) que:

o tipo de evidência que comummente conta a favor da aceitação de uma lei ou teoria científica é, comummente, evidência a favor da verdade (pelo menos aproximada) da lei ou da teoria enquanto uma explicação das relações causais entre as entidades [“observacionais ou teóricas”] quantificadas pela lei ou pela teoria em questão. (Boyd 1973, p. 1)5

Para realistas como Boyd, ou todas as partes de uma teoria (tanto a observacional quanto a não-observacional) são confirmadas pelos testes bem-sucedidos ou não são. Em geral, os realistas têm sido capazes de usar vários argumentos holistas na insistência de que não são apenas as afirmações de níveis inferiores de uma teoria bem testada que são confirmadas, mas também as suas suposições estruturais profundas. Essa tática tem sido usada positivamente pelos realistas ao defender que o apoio indutivo “se acumula” a ponto de autenticar as partes mais “teóricas” de nossas teorias. Certos realistas recentes (e.g., Glymour) pretendem se desvencilhar dessa teia holista e argumentam que certos componentes das teorias podem ser testados “diretamente”. Essa abordagem corre um risco muito grave de solapar aquilo que o realista mais deseja: uma justificação que conecte referência e sucesso. Afinal, se os testes aos quais sujeitamos nossas teorias testam apenas porções suas, então até mesmo as teorias altamente bem-sucedidas podem ter termos centrais que não referem e certos pressupostos que, por não serem testados, deixam de ter bases para que acreditemos em sua verdade aproximada. Sob tais circunstâncias, uma teoria poderia ser altamente bem-sucedida e ainda assim conter constituintes importantes patentemente falsos. Tal estado de coisas poderia causar um estrago à presunção realista quanto a (R1) de que o sucesso indica a verdade aproximada. Em suma, não ser holista quanto à testagem de teorias é colocar em risco precisamente a predileção por aquelas afirmações de estrutura profunda que motiva grande parte da empreitada realista.

Há, contudo, uma obstáculo muito mais sério ao enfraquecimento do realismo referencial. É certo que ao enfraquecer (S3) a apenas certos termos em uma teoria, estaríamos imunizando-a de certos contraexemplos óbvios. Mas tal manobra tem consequências debilitantes para outras teses centrais do realismo. Considere a tese realista (R3) sobre o caráter retentivo das relações inter-teóricas (discutidas detalhadamente mais adiante). O realista recomenda, como questão de orientação, e afirma, como questão de fato, que teorias bem-sucedidas são (e deveriam ser) racionalmente substituídas apenas por teorias que preservem a referência dos termos centrais de suas predecessoras bem-sucedidas. A justificação para a versão normativa dessa doutrina retencionista é que os termos da teoria anterior, porque foi bem-sucedida, têm de ter sido referenciais e, por isso, uma exigência a qualquer sucessora dessa teoria é que a referência de tais termos deva ser retida. Isso faz sentido apenas no caso em que o sucesso fornece uma garantia genérica para a presunção de referência. Mas se (S3) fosse enfraquecida a ponto de dizer apenas que é razoável supor que alguns dos termos em uma teoria bem-sucedida genuinamente referem, então o realista não teria justificação para suas teses retentivas (variantes de R3), teses essas que têm sido por várias décadas um pilar central do realismo.6

Aparentemente, algo terá de ser sacrificado. Uma versão de (S3) que seja forte o bastante para permitir (R3) parece incompatível com o fato de que muitas teorias bem-sucedidas contêm termos centrais que não referem. Qualquer enfraquecimento de (S3), contudo, diminui a força — e, por conseguinte, remove a justificação — das afirmações realistas sobre convergência, retenção e correspondência nas relações inter-teóricas.7 Se o realista já concedeu que algum conjunto inespecífico de termos de uma teoria bem-sucedida pode muito bem não referir, então suas propostas de restringir “a classe de teorias candidatas” àquelas que retêm a referência para os termos que referem prima facie nas teorias anteriores carecerá de bases (Putnam 1975, p. 22).

Mais geralmente, parece que somos forçados a dizer que tais conexões existentes entre referência e sucesso são menos claras do que as discussões de Putnam e Boyd nos levam a crer. Para que o realista prossiga em seu argumento a favor do REC, ele aparentemente terá de usar a verdade aproximada, (R1), e não a referência, (R2).

4. Verdade aproximada e sucesso: a “rota descendente”

Ignorando a virada referencial entre certos realistas contemporâneos, muitos realistas continuam a defender que, no fundo, o realismo epistêmico está comprometido com a ideia de que as teorias científicas bem-sucedidas, ainda que estritamente falsas, são todavia “aproximadamente verdadeiras”, “próximas da verdade” ou “verosimilhantes”.8 A tese geralmente equivale ao seguinte par:

(T1) Se uma teoria é aproximadamente verdadeira, então será explicativamente bem-sucedida; e

(T2) Se uma teoria é explicativamente bem-sucedida, então é provavelmente verdadeira.

O que o realista decerto gostaria de poder dizer é o seguinte:

(T1′) Se uma teoria é verdadeira, então será bem-sucedida.

(T1′) é atraente porque é auto-evidente. Muitos realistas recusam-se, contudo, a evocar (T1′) porque são (corretamente) relutantes em acreditar que podemos razoavelmente presumir que uma dada teoria científica seja verdadeira. Se tudo o que o realista pudesse explicar fosse o sucesso das teorias que são verdadeiras simpliciter, o seu repertório explicativo seria extremamente limitado. Como uma manobra atraente na direção de um escopo explicativo mais amplo, (T1) é bem mais atraente. Afinal, presumivelmente muitas teorias que acreditamos serem falsas (e.g., a mecânica newtoniana, a termodinâmica, óptica ondulatória) foram — e ainda são — altamente bem-sucedidas para uma ampla gama de aplicações.

Talvez possamos oferecer uma abordagem epistêmica desse sucesso pragmático se supusermos que tais teorias são “aproximadamente verdadeiras”, conjectura o realista. Temos de ser cautelosos com esse truque, todavia. Pode ser que haja uma conexão entre sucesso e verdade aproximada; mas sem um argumento independente não podemos pressupô-la . Não podemos sub-repticiamente apelar para o caráter reconhecidamente incontroverso de (T1′) — como às vezes parece — para estabelecer (T1). Quando a antecedente de (T1′) é apropriadamente enfraquecida pela noção de verdade aproximada, já não é claro que (T1) seja sólida.

Virtualmente, todos os proponentes do realismo epistêmico consideram pacífico que se uma teoria fosse aproximadamente verdadeira, seguir-se-ia dedutivamente que essa teoria é um preditor e explicador relativamente bem sucedido dos fenômenos observáveis. Infelizmente, estou ciente de poucos autores que tenham definido o que significa dizer que um enunciado ou teoria pode ser “aproximadamente verdadeira”. De acordo com isso, é impossível dizer se essa alegada implicação é genuína. Essa ressalva não é nada superficial. Na verdade, de acordo com a melhor abordagem daquilo que significa dizer que uma teoria é aproximadamente verdadeira, não se segue que uma teoria aproximadamente verdadeira será bem-sucedida do ponto de vista explicativo.

Suponha, por exemplo, que estivéssemos a dizer, numa veia popperiana, que uma teoria T1 é aproximadamente verdadeira se seu conteúdo de verdade for maior do que o seu conteúdo de falsidade, i.e.,

CtT(T1) >> CtF(T1).9

(Tal que CtT(T1) é a cardinalidade do conjunto de sentenças verdadeiras implicadas por T1 e CtF(T1) é a cardinalidade do conjunto de sentenças falsas implicadas por T1). Se interpretamos assim a verdade aproximada, não se segue logicamente que uma classe arbitrariamente selecionada a partir das implicações da teoria (a saber, algumas de suas consequências observáveis) será verdadeira. Na verdade, é perfeitamente concebível que uma teoria possa ser aproximadamente verdadeira no sentido indicado e ainda assim seja tal que todas as suas consequências até agora testadas sejam falsas.10

Alguns realistas concedem a sua incapacidade de articular uma noção coerente de verdade aproximada ou verosimilhança, muito embora insistam que essa incapacidade de modo algum comprometa a viabilidade de (T1). Newton-Smith, por exemplo, reconhece que “ninguém conseguiu oferecer uma análise satisfatória da noção de verosimilhança” (1981, p. 187), mas insiste que podemos legitimamente apelar para tal conceito “ainda que até agora ninguém tenha conseguido oferecer uma análise satisfatória sua”. Ele corretamente observa que muitos conceitos científicos foram explicativamente úteis muitos antes que uma análise filosófica deles tivesse surgido. A analogia, contudo, é imprópria, pois aquilo que está sendo desafiado não é o rigor filosófico do conceito de verdade aproximada, mas sim se ele nos é claro o bastante para que possamos verificar se ele implica aquilo que supostamente explica. Até que se ofereça uma análise mais clara da verdade aproximada, não é sequer claro se a verosimilhança explicaria o sucesso, muito menos se, como insiste Newton-Smith, “precisamos do conceito de verosimilhança a fim de oferecer uma explicação teórica satisfatória de um aspecto da atividade científica”. Para desmistificar o “milagre” (Putnam) ou o “mistério” (Newton-Smith11) do sucesso da ciência, o realista precisa mais do que uma nota promissória de que algum dia e de algum modo alguém irá mostrar que as teorias aproximadamente verdadeiras têm de ser bem-sucedidas.12

Não é claro que haja alguma definição de verdade aproximada que de fato implique que teorias aproximadamente verdadeiras serão bem-sucedidas quanto à previsão (e ainda assim provavelmente falsas).13O que pode ser dito, a despeito das promessas em contrário, é que ainda nenhum proponente do realismo articulou uma abordagem coerente da verdade aproximada que implique que as teorias aproximadamente verdadeiras serão, na medida em que possamos testá-las, previsores bem-sucedidos. As dificuldades abundam. Ainda que o realista tenha uma caracterização semanticamente adequada da verdade aproximada ou parcial, e ainda que essa semântica implique que a maioria das consequências de uma teoria aproximadamente verdadeira serão verdadeiras, ele ainda carecerá de algum critério que garanta epistemicamente a atribuição de verdade aproximada a uma teoria. O realista parece ter muitas intuições sobre a verdade aproximada, mas pouquíssima semântica ou epistemologia para oferecer.

Esses deveriam ser itens urgentes na agenda do realista; pois, a menos que tenhamos uma abordagem coerente do que é a verdade aproximada, as teses realistas centrais como (R1), (T1) e (T2) serão apenas balela.

5. Verdade aproximada e sucesso: a “rota ascendente”

A despeito das dúvidas levantadas na seção 4, aceitemos, para fins do argumento, que se uma teoria é aproximadamente verdadeira, então ela será bem-sucedida. Ainda que aceitemos (T1), haverá alguma plausibilidade na sugestão de (T2) de que o sucesso explicativo pode ser tomado como uma garantia racional de juízos de verdade aproximada? A resposta parece ser “não”.

Para ver por que, precisamos explorar brevemente uma das conexões entre “referir genuinamente” e ser “aproximadamente verdadeiro”. Ainda que compreendamos essa última noção, penso que um realista nunca quereria dizer que uma teoria fosse aproximadamente verdadeira se seus termos teóricos centrais não referissem. Se não houvesse algo como os genes, então uma teoria genética, não importa o quão bem confirmada fosse, não seria aproximadamente verdadeira. Se não houvesse entidades similares aos átomos, nenhuma teoria atômica poderia ser aproximadamente verdadeira; se não houvesse partículas subatômicas, então nenhuma teoria quântica da química poderia ser aproximadamente verdadeira. Em suma, uma condição necessária — especialmente para um realista científico — para que uma teoria esteja próxima da verdade é que seus termos explicativos centrais genuinamente tenham referência. (Um instrumentalista certamente aprovaria a tese mais fraca de que uma teoria seria aproximadamente verdadeira na medida em que suas consequências diretamente testáveis fossem próximas a valores observáveis. Mas como argumentei acima, o realista tem de considerar as teses sobre a verdade aproximada como envolvendo tanto a dimensão observável de uma teoria quanto a dimensão estrutural profunda).

Ora, a história da ciência nos oferece uma abundância de teorias que foram bem-sucedidas e (tanto quanto podemos julgar) não-referenciais no que diz respeito a muitos de seus conceitos explicativos centrais. Discuti anteriormente uma família específica de teorias que se enquadram nessa descrição. Deixe-me introduzir mais alguns outros exemplos proeminente a essa lista:

Essa lista, que poderia ser estendida ad nauseam, envolve em cada caso uma teoria que já foi bem-sucedida e bem confirmada, mas que contém termos centrais que hoje acreditamos não referir. Alguém que imagine que as teorias que têm sido bem-sucedidas na história da ciência foram também, no que respeita seus conceitos centrais, teorias genuinamente referenciais, estudou apenas versões mais “whig” da história da ciência (i.e., versões que recontam apenas aquelas teorias passadas que são preferencialmente similares às teorias atualmente aceitas).

É certo que os proponentes do REC às vezes aumentam a aposta sugerindo que suas análises se aplicam exclusivamente “às ciências maduras” (e.g., Putnam e Krajewski). Essa distinção entre ciências maduras e imaturas é conveniente ao realista, uma vez que ele pode usá-la para afastar qualquer contraexemplo prima facie às teses empíricas de REC alegando que o exemplo apontado foi retirado de uma ciência “imatura”. Essa manobra isoladora é insatisfatória em dois aspectos, todavia. Em primeiro lugar, REC corre o risco de se tornar vácua, uma vez que esses autores geralmente definem uma ciência madura como aquela na qual as relações de correspondência ou de casos limite se dão invariavelmente entre quaisquer teorias sucessivas na ciência uma vez que tenha alcançado “o limiar de maturidade”. Krajewskwi concorda com o caráter tautológico dessa perspectiva ao notar que “a tese de que há [correspondência] entre teorias sucessivas se torna, na verdade, analítica” (1977, p. 91). Não obstante, ele acredita haver uma versão da tese da maturidade que “pode e tem de ser testada pela história da ciência”. A testabilidade dessa hipótese é duvidosa, para dizer o mínimo. Não há observação histórica que possa refutá-la, pois, ainda que descobríssemos que nenhuma teoria ainda possua teorias “correspondentes”, poder-se-ia insistir que todas as teorias por fim se tornarão correspondentes. É igualmente difícil confirmá-la, pois, ainda que encontrássemos uma ciência na qual as relações de correspondência entre a teoria mais recente e sua predecessora existissem, não haveria modo de sabermos se essa relação continuaria a se aplicar às mudanças teóricas subsequentes nessa ciência. Em outras palavras, a limitação às ciências maduras compromete seriamente a tão aclamada testabilidade do realismo.

Há, contudo, uma segunda dimensão desagradável à restrição do REC às ciências “maduras”. O objetivo declarado dos realistas, afinal, é explicar por que a ciência é bem-sucedida: é esse o “milagre” que eles alegam ser deixado sem explicação pelos não-realistas. Fato é que partes da ciência, incluindo muitas ciências “imaturas”, têm sido bem-sucedidas desde há muito; na verdade, muitas das teorias aludidas acima foram empiricamente bem-sucedidas de acordo com qualquer critério imaginável (incluindo a fertilidade, a confirmação intuitivamente alta, previsão bem-sucedida, etc.). Caso o realista se restrinja apenas à explicação de como as ciências “maduras” funcionam (e lembre-se que pouquíssimas teorias são de fato “maduras” na concepção realista), ele terá falhado completamente em sua ambição de explicar por que a ciência é em geral bem-sucedida. Além do mais, vários dos meus exemplos foram retirados da história da física matemática do último século (e.g., os éteres eletromagnético e óptico), que, como o próprio Putnam concorda, “se a física não contar como uma ciência “madura”, nada contará” (1978, p.21). Uma vez que os realistas presumivelmente insistiram que muitos dos termos centrais dessas teorias não referem genuinamente, segue-se que nenhuma dessas teorias poderiam ser aproximadamente verdadeira (lembrando que a primeira é uma condição necessária para a última). De acordo com isso, casos desse tipo lançarão dúvidas severas à plausibilidade de (T2), i.e., à tese de que nada é bem sucedido a menos que seja aproximadamente verdadeiro.

Ouso dizer que para cada teoria altamente bem-sucedida no passado da ciência, podemos encontrar uma meia-dúzia de teorias bem-sucedidas que presentemente são consideradas como não referenciais. Se os proponentes do REC são tão empiristas sobre questões epistemológicas quanto dizem, casos desse tipo e com essa frequência deveria fazer com que eles reconsiderassem as bases de (T2).

Não precisamos, contudo, limitar nossos contraexemplos a teorias não referenciais. Muitas teorias houveram no passado que (tanto quanto podemos dizer) referiam genuinamente e foram empiricamente bem-sucedidas, mas que nós não gostaríamos de considerá-las aproximadamente verdadeiras. Considere, por exemplo, todas as teorias geológicas anteriores aos anos de 1960 e que negavam qualquer movimento lateral aos continentes. Tais teorias foram, de acordo com qualquer padrão, altamente bem-sucedidas (e aparentemente referenciais); mas será que alguém hoje estaria preparado para dizer que suas afirmações teóricas constituintes — dado seu comprometimento com continentes lateralmente estáveis — são quase verdadeiras? Não é uma questão de fato que a geologia estrutural foi uma ciência bem-sucedida entre (digamos) 1920 e 1960, muito embora os geólogos estivessem fundamentalmente equivocados sobre muitos — para não dizer a maioria — dos mecanismos básicos da construção tectônica? E que tal as teorias químicas da década de 1920 que pressupunham que o núcleo atômico fosse estruturalmente homogêneo? Ou aquelas teorias químicas e físicas do final do século XIX que assumiam explicitamente que a matéria não era nem criada e nem destruída? Não tenho conhecimento de qualquer acepção de verdade aproximada (disponível aos realistas) de acordo com a qual tais suposições teóricas altamente bem-sucedidas, ainda que evidentemente falsas, pudessem ser consideradas como “verosímil”.

Mais geralmente, o realista precisa rebater a alegação prima facie plausível de que não há uma conexão necessária entre o aumento da exatidão das nossas caracterizações estruturais profundas da natureza e os aperfeiçoamentos no nível das explicações fenomenológicas, das previsões e manipulações. Parece perfeitamente concebível do ponto de vista intuitivo que os mecanismos teóricos de uma nova teoria, T2, pudessem estar mais próximos do alvo do que os mecanismos teóricos de sua rival T1, e ainda assim T1 poderia ser mais acurada no nível das previsões testáveis. Na falta de um argumento a favor de que uma maior correspondência ao nível das afirmações sobre inobserváveis provavelmente se traduzirá numa exatidão ao nível experimental, estamos obrigados a dizer que o palpite do realista de que a fidelidade estrutural profunda se manifestará pragmaticamente na forma de grande exatidão experimental ainda carece de cogência. (Igualmente problemático, é claro, é o argumento a favor de que o aumento da exatidão experimental indica uma maior verosimilhança no nível teórico, i.e., nos comprometimentos estruturais profundos).

6. Confusões sobre convergência e retenção

Até agora tenho discutido apenas versões estáticas ou sincrônicas do REC, versões que fazem juízos absolutos, e não relativos, sobre a verosimilhança. De igual apelo têm sido as variantes do REC que usam uma noção daquilo que é comummente chamado de convergência, correspondência ou acúmulo. Os proponentes da versão diacrônica do REC suplementam os argumentos discutidos acima ((S1)-(S4) e (T1)-(T2)) com um conjunto adicional, que costuma tomar a seguinte forma:

C1) Se as teorias anteriores num domínio científico são bem-sucedidas e, por isso, de acordo com os princípios realistas (e.g., (S3)), aproximadamente verdadeiras, então os cientistas deveriam aceitar apenas as teorias posteriores que retêm a porções apropriadas das teorias anteriores;

C2) Como questão de fato, os cientistas adotam a estratégia de (C1) e procuram produzir teorias novas e mais bem-sucedidas;

C3) O “fato” de as partes apropriadas das teorias anteriores terem sido retidas nas suas sucessoras bem-sucedidas mostra que as teorias anteriores referiam genuinamente e que eram aproximadamente verdadeiras. Assim, a estratégia proposta em (C1) é sólida.14

Talvez a perspectiva prevalecente aqui seja a de Putnam e (implicitamente) a de Popper, de acordo com a qual as teorias sucessoras racionalmente garantidas numa ciência “madura” têm de (a) fazer referência às entidades que aparentemente referiam na teoria predecessora (uma vez que, por hipótese, os termos da teoria anterior referiam); e (b) conter as “leis teóricas” e “mecanismos” da teoria predecessora como casos limites. Como nos diz Putnam, um “realista” deveria insistir que qualquer sucessora viável a uma teoria anterior T1 deve “conter as leis de T1 como um caso limite” (1978, p. 21). John Watkins, um convergentista de mesma opinião, diz o seguinte:

É típico na história da ciência que quando uma teoria, T, até então dominante, seja substituída por T1, T1 esteja em relação de correspondência com T [i.e., T é um “caso limite” de T1] (1978, pp. 376-377).

Inúmeros filósofos da ciência contemporâneos têm subscrito um ponto de vista similar, incluindo Popper, Post, Krajewski e Koertge.15

Essa forma de retenção não é a única a ter sido amplamente discutida. De fato, os realistas têm defendido uma ampla variedade de teses sobre aquilo que é ou deveria ser retido na transição de uma teoria predecessora (T1) até então bem-sucedida para a sua sucessora T2. Dentre as formas mais importantes da retenção realista estão as seguintes: (1) T2 implica T1 (Whewell); (2) T2 retém as consequências verdadeiras ou o conteúdo de verdade de T1 (Popper); (3) T2 retém as porções “confirmadas” de T1 (Post, Koertge); (4) T2 preserva as leis teóricas e mecanismos de T1 (Boyd, McMullin, Putnam); (5) T2 preserva T1 como um caso limite (Watkins, Putnam, Krajewski); (6) T2 explica por que T1 foi tão bem-sucedida (Sellars); (7) T2 retém a referência dos termos centrais de T1 (Putnam, Boyd).

Será que as teses realistas sobre convergência e retenção se mostrarão corretas quando a retenção for entendida em algum dos sentidos acima?

6.1. Os cientistas adotam a estratégia “retencionista” do REC?

Uma parte do argumento realista convergente consiste na afirmação de que os cientistas geralmente adotam a estratégia de procurar preservar as teorias anteriores nas posteriores. Como dito por Putnam:

preservar os mecanismos das teorias anteriores tanto quanto possível, que é aquilo que os cientistas tentam fazer [...] Que os cientistas tentam fazer isso [...] é fato, e que essa estratégia tem levado a descobertas importantes [...] é também um fato (1978, p. 20).16

No mesmo espírito, Szmulewicz (embora não dando ênfase ao realismo) insiste que muitos cientistas eminentes têm como exigência heurística central de seus programas de pesquisa que uma nova teoria mantenha uma relação de “correspondência” com a teoria anterior (1977, p. 348). Se Putnam e os outros retencionistas estiverem corretos sobre a estratégia que muitos cientistas têm adotado, deveríamos esperar que a literatura histórica da ciência fornecesse abundantemente (a) provas de que as teorias posteriores de fato incluem a teoria anterior como caso limite, ou (b) rejeições imediatas daquelas teorias posteriores que não contêm as teorias anteriores. Exceto em raras ocasiões (primariamente provindas da história da mecânica), não encontramos nenhuma dessas preocupações na literatura da ciência. Por exemplo, tanto quanto sei, literalmente ninguém até hoje criticou a teoria ondulatória da luz por ela não preservar os mecanismos teóricos da teoria anterior, a teoria corpuscular. Ninguém culpou a geologia uniformitarista de Lyell por dispensar vários dos processos causais proeminentes na geologia catastrofista; a teoria de Darwin não foi criticada pelos geólogos por não reter muitos dos mecanismos da “teoria evolutiva” lamarckiana.

Para cada uma das confiantes afirmações realistas sobre a prevalência da estratégia retencionista nas ciências, desconheço quaisquer estudos históricos que sustentem como tese geral tal hipótese sobre as estratégias avaliativas utilizadas na ciência. Ademais, na medida em que Putnam e Boyd dizem estar oferecendo “uma explicação do comportamento [retencionista] dos cientistas” (Putnam 1978, p. 21), eles se equivocam quanto ao explanandum, pois, se há uma estratégia difundida na ciência, é aquela que diz “aceite uma teoria empiricamente bem-sucedida, não importa se contenha ou não as leis e os mecanismos teóricos de suas predecessora”.17 Na verdade, poderíamos seguir o exemplo da tese realista (C2) e afirmar que o sucesso da estratégia de supor que as teorias anteriores geralmente não referem mostra que é o caso que as teorias anteriores geralmente não referem!

(Poderíamos notar, de passagem, o quão frequentemente os realistas imaginam estar falando pela maioria científica. Putnam, por exemplo, afirma que “o realismo é, por assim dizer, a filosofia da ciência oficial da ciência” e que “a ciência “considerada seriamente” implica o realismo” (1978, p. 37).18 Hooker insiste que ser um realista é “levar a ciência a sério” (1976, pp. 467-472), como se os convencionalistas, os instrumentalistas e positivistas como Duhem, Poincaré e Mach não levassem a ciência a sério. A disposição que alguns realistas têm em atribuir estratégias realistas ao cientistas em ação — sem virtualmente qualquer pesquisa empírica sobre quais princípios de fato têm regido a prática científica — levanta dúvidas sobre a seriedade de seu comprometimento manifesto com o caráter empírico de suas teses epistêmicas).

6.2. As teorias posteriores preservam os mecanismos, os modelos e as leis das teorias anteriores?

A despeito das estratégias explícitas utilizadas pelos realistas, será que Putnam e vários outros retencionistas estão certos quanto às teorias posteriores “tipicamente” implicarem as teorias anteriores e “as teorias anteriores em geral serem casos limites das teorias posteriores?”.19 Infelizmente é difícil responder essa pergunta, pois “tipicamente” é uma daquelas palavras escorregadias que servem a muitas manobras. Vou supor que Putnam e Watkins queiram dizer que “na maioria das vezes (ou talvez na maior parte dos casos importantes) as teorias sucessoras contêm as teorias predecessoras como caso limite”. Assim interpretada, a afirmação é claramente falsa. A astronomia copernicana não reteve todos os mecanismos centrais da astronomia ptolemaica (e.g., o movimento ao longo de um equante); a física de Newton não reteve todos (nem mesmo a maioria) das “leis teóricas” da mecânica, da astronomia e da óptica cartesianas; a teoria da eletricidade de Franklin não contém sua predecessora (a teoria de Nollet) como caso limite. A física relativista não reteve o éter e nem a mecânica a ele associada; a mecânica estatística não incorporou todos os mecanismos da termodinâmica; a moderna genética não têm a pangênese darwiniana como caso limite; a teoria ondulatória da luz não se apropriou dos mecanismos da óptica corpuscular; a embriologia moderna não incorporou os mecanismos proeminentes na teoria embriológica clássica. Como já mostrei em outro artigo,20 há perdas em virtualmente todos os níveis: as previsões confirmadas das teorias anteriores às vezes não são explicadas pelas teorias posteriores; nem mesmo as leis “observáveis” explicadas pelas teorias anteriores são sempre retidas, mesmo que como casos limite; os processos e os mecanismos teóricos das teorias anteriores não infrequentemente são tratados como detritos.

O ponto é que algumas das inovações teóricas mais importantes devem-se à disposição dos cientistas para violar as restrições cumulativistas e retencionistas que os realistas impõem aos cientistas.

Há uma razão profunda para o erro do realista convergente sobre essas questões. Em parte, tem a ver com o papel dos enquadramentos ontológicos na ciência e com a natureza das relações dos casos limite. De acordo com o uso que os cientistas fazem da expressão “caso limite”, T1 pode ser um caso limite de T2 somente se (a) a todas as variáveis (observáveis e teóricas) que recebem um valor em T1 são atribuídas um valor em T2 e (b) os valores atribuídos a cada variável de T1 são os mesmos valores, ou valores bastante próximos, aos valores que T2 atribuí às variáveis correspondentes quando certas condições iniciais e de limite — consistentes com T221 — são especificadas. Parece então que T1 será um caso limite de T2 pelo menos se todas as entidades postuladas por T1 ocorrerem na ontologia de T2. Quando uma mudança de ontologia acompanha uma transição teórica tal que T2 (conjuntada às condições iniciais e de limite adequadas) falha em captar a ontologia de T1, então T1 não pode ser um caso limite de T2. Mesmo quando as ontologias de T1 e T2 se sobrepõem apropriadamente (i.e., quando a ontologia de T2 abarca toda a ontologia de T1), T1 será um caso limite de T2 somente se todas as leis de T1 puderem ser derivadas de T2, dadas as condições de limite apropriadas. É importante realçar que ambas as condições (dentre outras) têm de ser satisfeitas antes que uma teoria possa ser um caso limite da outra. Embora um “positivista enrustido” pudesse se contentar em captar apenas as relações matemáticas formais ou apenas as consequências observacionais de T1 na sucessora T2, um realista genuíno terá de insistir que a ontologia subjacente de T1 é preservada na ontologia de T2, pois é essa ontologia acima de tudo que supostamente é aproximadamente verdadeira.

É bastante frequente que filósofos (e físicos) infiram a existência de uma relação de caso limite entre T1 e T2 a partir de muito menos. Por exemplo, muitos autores têm afirmado que uma teoria é um caso limite de outra apenas quando algumas, mas não todas, das leis da primeira são “deriváveis” da segunda. Em outros casos, diz-se que uma teoria é um caso limite de uma sucessora quando as leis matemáticas da primeira têm homologias na segunda, muito embora a ontologia da primeira não possa ser completamente extraída da ontologia da segunda.

Considere um proeminente exemplo, geralmente descrito de maneira errada, a saber, a transição da teoria clássica do éter para a mecânica quântica e relativista. É claro que é possível mostrar que algumas “leis” da mecânica clássica são casos limite da mecânica relativista. Mas há outras leis e asserções gerais feitas pela teoria clássica (e.g., afirmações sobre a densidade e a estrutura fina do éter, leis gerais sobre o caráter da interação entre o éter e a matéria, modelos e mecanismos que detalham a compreensibilidade do éter) que concebivelmente poderiam não ser casos limite da mecânica moderna. A razão é simples: uma teoria não pode atribuir valores a uma variável que não ocorre na linguagem dessa teoria (ou, dito mais coloquialmente, ela não pode atribuir propriedades a entidades cuja existência ela não comporta). A física do éter continha diversos mecanismos postulados para lidar inter alia com a transmissão da luz através do éter. Tais mecanismos talvez não pudessem aparecer numa teoria sucessora como a teoria especial da relatividade, que nega a própria existência de um meio etéreo e que realiza as tarefas explicativas antes desempenhadas pelo éter através de mecanismos bastante diferentes.

A física matemática do século XIX está repleta de exemplos similares de teorias matemáticas evidentemente bem-sucedidas que, pela razão de algumas de suas variáveis se referirem a entidades cuja existência nós agora negamos, não podem ser consideradas casos limite da nossa física. Como Adolf Grünbaum argumentou cogentemente, quando somos confrontados com duas teorias incompatíveis, T1 e T2, tal que T2 não “contém” toda a ontologia de T1, nem todos os mecanismos e leis teóricas de T1 que envolvem aquelas entidades de T1 não postuladas por T2 poderão ser retidos — nem mesmo como casos limite — em T2 (1976, pp. 1-23). Esse resultado é bastante significativo. A pouca plausibilidade da qual desfruta o realismo convergente ou retentivo deriva da presunção de que ele descreve corretamente a relação entre a mecânica clássica e pós-clássica e a teoria gravitacional. Como já vimos, mesmo no caso prima facie mais favorável ao realista (em que algumas das leis da teoria predecessora são genuinamente casos limite da teoria sucessora), a mudança na ontologia ou nos enquadramentos conceituais torna impossível a captura de muitas das leis teóricas centrais e mecanismos postulados pela teoria anterior; desse modo, podemos ver o quão enganadora é a afirmação de Putnam de “aquilo que os cientistas tentam fazer” é preservar

os mecanismos da teoria anterior tanto quanto possível — ou mostrar que são “casos limite” dos novos mecanismos [...] (1978, p. 20).

Quando os mecanismos da teoria anterior envolvem entidades cuja existência é negada pela teoria posterior, os cientistas não têm (ou não deveriam ter) qualquer escrúpulo em repudiar por completo os mecanismos da teoria anterior.

Mesmo quando não há mudança na ontologia básica, muitas teorias (mesmo em “ciências maduras” como a física) não retêm todo o sucesso explicativo de suas predecessoras. É bem sabido que a mecânica estatística ainda não capturou a irreversibilidade da macro-termodinâmica como caso limite. A mecânica clássica do contínuo ainda não foi reduzida à mecânica quântica ou à relatividade. A teoria de campo contemporânea ainda não replicou a tese clássica de que as leis físicas são invariantes sob reflexo no espaço. Se os cientistas tivessem aceitado as restrições do realista (a saber, de que as novas teorias têm de ter as velhas como caso limite), nem a relatividade nem a mecânica estatística teriam sido vistas como teorias viáveis. Embora já dito, não custa repetir: uma prova da existência de relações de limite entre componentes selecionados de duas teorias está longe de ser uma prova sistemática de que uma teoria é um caso limite da outra. Ainda que as físicas clássica e moderna se relacionem da maneira na qual o realista convergente erroneamente imagina que se relacionam, a generalização apressada de que as sucessões teóricas em todas as ciências avançadas mostram relações de casos limite é patentemente falsa.22 Mas, como mostra essa discussão, nem mesmo o argumento paradigmático do realista sustentará as afirmações que ele está disposto a fazer.

Essa análise destaca o quão reacionárias são muitas formas de realismo epistemológico convergente. Se levarmos a sério o conselho do REC para rejeitarmos qualquer teoria nova que não tome as teorias maduras existentes como referenciais e as leis e mecanismos existentes como aproximadamente autênticas, então não haverá espaço para mudanças teóricas, de estrutura profunda, em nossas teorias. Igualmente banida estaria qualquer rejeição de nossos modelos teóricos. A despeito de seu comprometimento com o desenvolvimento do conhecimento, o realista estaria inadvertidamente congelando a ciência em seu estado presente ao forçar todas as teorias futuras a acomodar a ontologia da ciência contemporânea (“madura”) e ao excluir a possibilidade de que alguma geração futura chegue à conclusão de que alguns (ou até mesmo a maioria) dos termos centrais de nossas melhores teorias não sejam mais referenciais do que foram “lugar natural”, “flogisto”, “éter” ou “calórico”.

6.3. Poderiam as teorias convergir da maneira exigida pelo realista?

Esses exemplos de violações na ciência genuína dos tipos de continuidade geralmente exigidos pelos realistas são suficientes para mostrar que a forma do desenvolvimento científico que o realista convergente toma como explicandum raramente ocorre, mesmo nas ciências maduras. Podemos, contudo, ir além desses casos específicos para mostrar em princípio que o tipo de acúmulo exigido pelos realistas é insustentável. Especificamente, com base em alguns resultados estabelecidos por David Miller e outros, podemos mostrar o seguinte:

  1. A exigência familiar de que uma teoria sucessora, T2, tem de preservar como verdadeiras as consequências verdadeiras de sua predecessora, T1, e explicar as anomalias de T1 é contraditória;
  2. Se uma nova teoria, T2, envolve uma mudança na ontologia ou no enquadramento conceitual de uma predecessora, T1, então T1 terá consequências verdadeiras e determinadas que T2 não possui;
  3. Se duas teorias, T1 e T2, discordam, então cada uma delas terá consequências verdadeiras e determinadas que a outra não terá.

A fim de estabelecer essas conclusões, precisamos utilizar a perspectiva “sintática” das teorias, de acordo com a qual uma teoria é uma conjunção de enunciados e suas consequências são definidas à la Tarski em termos de classes de conteúdo. É desnecessário dizer que essa não é a única e nem necessariamente a melhor maneira de pensar sobre teorias; acontece, todavia, que é desse modo que a maioria dos filósofos que defendem a convergência e a retenção (e.g., Popper, Watkins, Post, Krajewski e Niiniluoto) tende a conceber as teorias. O que se pode dizer é que caso se utilize a concepção tarskiana do conteúdo de uma teoria e suas consequências como fazem esses filósofos, então as teses convergentistas familiares aludidas em (a)-(c) não fazem sentido.

As consequências elementares mas devastadoras da análise de Miller estabelecem que virtualmente qualquer esforço para conectar o progresso ou desenvolvimento científico à retenção do conteúdo tarskiano ou das consequências lógicas ou das consequências verdadeiras ou das consequências observadas ou das consequências confirmadas da teoria predecessora está fadado ao fracasso. Os realistas não só entendem equivocadamente a história na medida em que imaginam a retenção cumulativa como prevalecente na ciência, mas também podemos ver — dadas suas opiniões sobre aquilo que deveria ser mantido através da mudança teórica — que a história não poderia ser do modo como os modelos realistas exigem. As restrições que os realistas impõem à cumulatividade além de normativamente insensatas são também historicamente falsas.

Junto de muitos outros realistas, Putnam afirma que “as ciências maduras convergem [...] e que essa convergência tem grande valor explicativo para a teoria da ciência” (1978, p. 37). Como essa seção deveria mostrar, Putnam e seus colegas realistas estão equivocados duplamente. Popper uma vez observou que “nenhuma teoria do conhecimento deveria tentar explicar por que somos bem-sucedidos em nossas tentativas de explicar as coisas” (1973, p. 23). Tal dogma é demasiado forte. Mas aquilo que mostra a análise precedente é que a epistemologia recente corre o risco de imaginar que explicações convincentes do nosso sucesso são fáceis e baratas.

6.4. Deveriam as novas teorias explicar por que as suas predecessoras foram bem-sucedidas?

Um realismo aparentemente mais modesto do que o delineado acima é familiar na forma da exigência (R4) geralmente atribuída a Sellars — que toda nova teoria satisfatória tenha de ser capaz de explicar por que sua predecessora foi bem-sucedida na medida em que foi bem-sucedida. De acordo com essa perspectiva, teorias novas viáveis não precisam preservar todo o conteúdo de suas predecessoras, nem abarcá-las como casos limite. Em vez disso, insiste-se apenas que uma nova teoria viável, TN, tem de explicar por que, quando concebemos o mundo de acordo com a antiga teoria, TO, há uma gama de casos em que as nossas expectativas guiadas por TO foram corretas ou aproximadamente corretas.

O que fazer com essa exigência? Em primeiro lugar, ela é claramente gratuita. SE TN tem mais consequências confirmadas (e maior simplicidade conceitual) do que TO, então TN é preferível a TO ainda que TN não possa explicar por que TO é bem-sucedida. Por outro lado, se TN tem menos consequências confirmadas do que TO, então TN não pode ser racionalmente preferida a TO, ainda que TN explique por que TO é bem-sucedida. Em suma, a capacidade de uma teoria de explicar por que uma rival é bem-sucedida não é nem uma condição necessária nem suficiente para dizermos que ela é melhor do que sua rival.

Outras dificuldades confrontam igualmente a afirmação de que novas teorias deveriam explicar por que suas predecessoras foram bem-sucedidas. Dentre elas está principalmente a ambiguidade da própria noção. Uma maneira de mostrar que uma teoria anterior, TO, foi bem-sucedida é mostrar que ela compartilha muitas das consequências confirmadas com a teoria mais recente, TN, que é altamente bem-sucedida. Mas essa não é uma “explicação” que o realista pudesse aceitar, uma vez que não faz referência a — e, por conseguinte, não depende de — uma avaliação epistêmica nem de TO nem de TN. (Afinal, um instrumentalista poderia muito bem aceitar que se TN “salva os fenômenos”, então TO — na medida em que algumas de suas consequências observáveis se sobrepõem ou são experimentalmente indistinguíveis das de TN — também deveria ser bem-sucedida em salvar os fenômenos).

A intuição explorada nessa abordagem persuasiva é a de que o sucesso pragmático de uma nova teoria, combinado com uma comparação parcial das respectivas consequências da nova teoria e sua predecessora, às vezes nos deixará em posição de dizer quando a teoria anterior funcionou e quando falhou. Mas tais comparações, tanto quanto podem ser feitas, não envolvem avaliações epistêmicas nem da nova nem da teoria anterior qua teorias. De acordo com isso, a possibilidade de tais comparações não fornece qualquer argumento a favor do realismo epistêmico.

O que o realista aparentemente precisa é de um sentido epistemicamente robusto de “explicar o sucesso de uma predecessora”. Tal caracterização epistêmica presumivelmente começaria com a afirmação de que TN, a teoria nova, era aproximadamente verdadeira e prosseguiria mostrando que os enunciados “observacionais” de sua predecessora, TO, desviaram-se apenas levemente de algumas das consequências “observacionais” de TN. Alegar-se-ia, então, que a (presumida) verdade aproximada de TN e as consequências parcialmente sobrepostas de TO e TN conjuntamente explicam por que TO foi bem-sucedida na medida em que foi bem-sucedida. Mas isso é um non-sequitur. Como mostrei anteriormente, o fato de que uma TN é aproximadamente verdadeira nem sequer explica por que ela é bem-sucedida; como, em tais circunstâncias, a verdade aproximada de TN pode explicar por que alguma teoria diferente de TN é bem-sucedida? Qualquer que seja a natureza das relações entre TN e TO (implicação, caso limite, etc.), a atribuição epistêmica da verdade aproximada de TO ou TN (ou ambas) aparentemente deixa intocadas questões acerca do quão bem-sucedidas são TO ou TN.

A ideia de que novas teorias devessem explicar por que as teorias anteriores foram bem-sucedidas (na medida em que o foram) surgiu originalmente com uma rival da imagem de “níveis” da explicação, de acordo com a qual as novas teorias explicam completamente — porque implicam — suas predecessoras. Ela é claramente uma melhoria sobre a imagem de níveis (pois reconhece que as teorias posteriores geralmente não implicam suas predecessoras). Mas quando formulada como uma tese geral sobre as relações inter-teoria, visando apoiar uma epistemologia realista, fica difícil ver como essa posição evita dificuldades similares àquelas discutidas nas seções anteriores.

7. A derradeira Petitio Principii do realista

É chegada a hora de nos distanciarmos dos detalhes do argumento realista e prestar atenção em sua estratégia geral. Como vimos, o realista está fundamentalmente se utilizando de uma inferência abdutiva que parte do sucesso da ciência à conclusão de que a ciência é aproximadamente verdadeira, verosimilhante ou referencial (ou qualquer combinação dessas). Esse argumento visa mostrar ao cético que as teorias não são ilícitas; ao positivista que as teorias não são redutíveis às suas consequências observacionais, e ao pragmatista que as categorias epistêmicas clássicas (e.g., “verdade” e “falsidade”) são parte relevante do discurso meta-científico.

É impressionante que os realistas pensem que tal argumento convencerá seus críticos. Como já mostrei (1978), desde a antiguidade os críticos do realismo epistêmico têm baseado seu ceticismo numa profunda convicção de que a falácia da afirmação do consequente é de fato falaciosa. Quando Sexto, Belarmino ou Hume duvidaram de que certas teorias que salvavam os fenômenos tivessem alguma garantia da verdade, a dúvida deles estava baseada na crença de que mostrar que uma teoria tem algumas consequências verdadeiras deixa completamente em aberto o status de verdade dessa teoria. Na verdade, muitos não-realistas eram não-realistas precisamente porque acreditavam que teorias falsas, tanto quanto as verdadeiras, poderiam ter consequências verdadeiras.

E é aqui que entram os novos realistas (e.g., Putnam, Boyd e Newton-Smith) que defendem que o realismo epistêmico pode ser razoavelmente presumido como verdadeiro em virtude do fato de ter consequências verdadeiras. O não-realista se recusa a admitir que uma teoria científica possa justificadamente ser julgada como verdadeira simplesmente por ter algumas consequências verdadeiras. Tais não-realistas provavelmente não se deixarão impressionar pela afirmação de que uma teoria filosófica como o realismo possa ser justificada como verdadeira por conta dela defensavelmente ter consequências verdadeiras. Uma vez que os não-realistas desconfiam que as abduções de primeira ordem produzam conclusões verdadeiras, dificilmente se impressionarão com as abduções de segunda ordem, principalmente quando suas premissas e conclusão, como tentei mostrar, são bastantes indeterminadas.

Poder-se-ia argumentar, contudo, que o realista não tenta converter o cético intransigente ou o instrumentalista determinado.23 Talvez ele esteja unicamente tentando mostrar que o realismo pode ser testado assim como outras hipóteses científicas, e que o realismo é pelo menos tão bem confirmado quanto as nossas melhores teorias científicas. Tal análise, ainda que inicialmente plausível, não resiste ao escrutínio. Não sei de qualquer realista que esteja disposto a dizer que uma teoria científica possa ser tomada como verdadeira ou mesmo considerada bem confirmada só porque suas consequências até agora testadas são verdadeiras. Há muito que os realistas têm estado na vanguarda daqueles que se opõem a teorias ad hoc e post hoc. Antes de aceitar uma hipótese científica, o realista geralmente quer saber se ela tem explicado e previsto mais do que originalmente foi pretendido; ele quer saber se ela foi submetida a uma bateria de testes controlados; se há evidência independente a seu favor.

O que dizer então do realismo enquanto hipótese “científica”?24 Ainda que concedamos (contrário à minha argumentação na seção 4) que o realismo implique e, por conseguinte, explique o sucesso da ciência, será que esse sucesso (hipotético) — de acordo com a aceitabilidade científica proposta pelos próprios realistas — garante a aceitação do realismo? Uma vez que o realismo fora proposto para explicar o sucesso da ciência, ele permanece puramente ad hoc no que diz respeito a esse sucesso. Se o realismo fez novas previsões ou foi submetido a testes cuidadosamente controlados é algo que ainda não encontramos na bibliografia sobre o realismo contemporâneo. Sob o risco de aparente inconsistência, o realista repudia a perspectiva instrumentalista de que salvar os fenômenos seja uma forma significativa de apoio probatório, ao mesmo tempo que endossa o realismo em bases transparentemente instrumentalistas, confirmadas pelos próprios fatos para os quais foi projetado para explicar. Nenhum proponente do realismo tem procurado mostrar que o realismo satisfaz as fortes exigências empíricas que o próprio realista, ao avaliar as teorias científicas, exige minimamente. O realista dos dias atuais costuma chamar o realismo de hipótese “científica” ou “bem testada”, muito embora pareça curiosamente relutante em submetê-lo àqueles testes que, em outras ocasiões, ele considera ser sine qua non para fundamentação empírica.

8. Conclusão.

Os argumentos e exemplos discutidos acima parecem garantir as seguintes conclusões:

  1. O fato de os termos centrais de uma teoria referirem não implica que ela será bem-sucedida; e o sucesso de uma teoria não é garantia para a afirmação de que todas ou a maioria de seus termos centrais referem.
  2. A noção de verdade aproximada é atualmente demasiado vaga para permitir que alguém julgue se uma teoria consistindo inteiramente ou aproximadamente de leis verdadeiras seja empiricamente bem-sucedida; o que é claro é que uma teoria pode ser empiricamente bem-sucedida ainda que não seja aproximadamente verdadeira.
  3. Os realistas não têm qualquer explicação para o fato de que muitas teorias que não são aproximadamente verdadeiras e cujos termos “teóricos” aparentemente não referem são, não obstante, frequentemente bem-sucedidas.
  4. A asserção do convergentista de que os cientistas numa disciplina “madura” geralmente preservam, ou procuram preservar, as leis e os mecanismos das teorias anteriores nas teorias posteriores é provavelmente falsa; a asserção de que quando tais leis são preservadas numa sucessora bem-sucedida, que podemos explicar o sucesso da última em virtude da verosimilhança das leis e mecanismo preservados, sofre de todos os defeitos apontados anteriormente sobre a verdade aproximada.
  5. Ainda que pudéssemos mostrar que as teorias referenciais e aproximadamente verdadeiras seriam bem-sucedidas, o argumento dos realistas de que as teorias bem-sucedidas são aproximadamente verdadeiras e genuinamente referenciais toma por garantido precisamente aquilo que o não-realista nega (a saber, que o sucesso explicativo indica a verdade).
  6. Não é claro que as teorias aceitáveis expliquem ou devam explicar por que suas predecessoras foram bem-sucedidas ou falharam. Se uma teoria é melhor apoiada do que suas rivais e predecessoras, então não é epistemicamente decisivo se ela explica por que suas rivais funcionaram.
  7. Se uma teoria já foi falseada, não é razoável esperar que uma sucessora devesse reter todo seu conteúdo, suas consequências confirmadas ou seus mecanismos teóricos.
  8. Em nenhum lugar o realista estabeleceu — a não ser por decreto — que os epistemólogos não-realistas carecem de recursos para explicar o sucesso da ciência.

Com essas conclusões específicas em mente, podemos avançar a uma conclusão global: ainda não foi estabelecido — a despeito de Putnam, Newton-Smith e Boyd — que o realismo pode explicar alguma parte do sucesso da ciência. O que é muito claro é que o realismo não pode, mesmo por seus próprios critérios, explicar o sucesso daquelas muitas teorias cujos termos centrais evidentemente não referem e cujas leis e mecanismos teóricos não são aproximadamente verdadeiros. A conclusão inescapável é que na medida em que muitos realistas estão interessados em explicar como a ciência funciona e como avaliar a adequação de sua epistemologia através desses critérios, eles têm até agora falhado em explicar tudo isso. A sua epistemologia é confrontada por anomalias que parecem estar além de seus recursos.

É importante precaver-se de uma possível má interpretação deste ensaio. Nada do que eu disse aqui refuta a possibilidade em princípio de uma epistemologia da ciência realista. Concluir mais do que isso seria ceder à mesma prematuridade inferencial com a qual os realistas têm rejeitado em princípio a possibilidade de uma explicação não-realista da ciência. A minha tarefa aqui, por outro lado, é a de lembrar que uma diferença entre querer acreditar em algo e ter boas razões para acreditar. Todos nós gostaríamos que o realismo fosse verdadeiro; gostaríamos de pensar que a ciência funciona porque compreende como as coisas realmente são. Mas tais afirmações ainda não foram estabelecidas. Dado o estado atual da discussão, apenas o pensamento desejoso poderia justificar a afirmação de que o realismo, e apenas o realismo, explica por que a ciência funciona.

Larry Laudan
Philosophy of Science Vol. 48, No. 1 (Mar., 1981), pp. 19–49

Referências

Notas

  1. Putnam, claramente seguindo Boyd, sumariza (R1)-(R3) nas seguintes palavras: “1) Os termos numa ciência madura tipicamente referem. 2) As leis de uma teoria pertencente a uma ciência madura são tipicamente aproximadamente verdadeiras. [...] Considerarei apenas as [novas] teorias [...] que têm esta propriedade — contêm as leis [teóricas] de [suas predecessoras] como caso limite” (1978, pp. 20-21).
  2. Putnam insistem, por exemplo, que se o realista estiver errado sobre as teorias serem referenciais, então “o sucesso da ciência será um milagre” (Putnam 1975, p. 69). ↩︎
  3. Boyd observa: “o realismo científico oferece uma explicação para a legitimação do comprometimento ontológico com entidades teóricas” (Putnam 1978, nota 10, p. 2). E isso é supostamente feito através da explicação de por que as teorias que contêm entidade teóricas funcionam tão bem: porque tais entidades genuinamente existem. ↩︎
  4. Para o argumento central deste ensaio é irrelevante qual das versões do realismo de Putnam está sendo utilizada, se as iniciais ou as mais recentes. ↩︎
  5. Veja também p. 3: “a evidência experimental para uma teoria é também evidência para as suas leis não-observacionais”. Veja também (Sellars 1963, p. 97). ↩︎
  6. Há aqui uma ressalva. Ainda que todos os termos centrais de uma teoria refiram, não é óbvio que toda sucessora racional sua tenha de preservar todos os termos referências de sua predecessora. Podemos facilmente imaginar circunstâncias nas quais a nova teoria é preferível à anterior a despeito de seu alcance de aplicação menos amplo do que o da anterior. Quando o alcance é assim restrito, pode muito bem ser apropriado abrir mão da referência de algumas das entidades que figuravam na teoria anterior. ↩︎
  7. Tanto para Putnam quanto para Boyd “será uma restrição a T2 [i.e., a qualquer nova teoria num domínio] [...] que T2 tenha de ter esta propriedade, a propriedade que de sua perspectiva alguém possa atribuir referentes aos termos de T1 [i.e., uma teoria anterior no mesmo domínio]” (Putnam 1978, p. 22). Para Boyd, veja (1973, p. 8): “as novas teorias deveriam prima facie se assemelhar às teorias atuais no que diz respeito às suas abordagens às relações causais entre as entidades teóricas”. ↩︎
  8. Para apenas uma pequena amostra dessa perspectiva, considere o seguinte: “A tese realista quanto à ontologia da ciência é que a única maneira de explicar por que os modelos da ciência funcionam de maneira tão bem-sucedida [...] é que tais modelos de alguma forma se aproximam da estrutura do objeto” (McMullin 1970, pp. 63-64); “o sucesso continuado [das teoria confirmadas] pode ser explicado pela hipótese de que elas de fato estão próximas da verdade [...]” (Niiniluoto, no prelo, p. 21); a afirmação de que “as leis de uma teoria pertencente à ciência madura são tipicamente aproximadamente verdadeiras [...] [oferece] uma explicação do comportamento dos cientistas e do sucesso da ciência” (Putnam 1978, pp. 20-21). Smart, Sellars e Newton-Smith, dentre outros, partilham de uma opinião similar. ↩︎
  9. Embora Popper seja em geral cuidadoso de não afirmar que as teorias históricas reais apresentem conteúdo de verdade crescente (para uma exceção veja o seu (1963, p. 220), outros autores têm sido mais audaciosos. Newton-Smith escreve que “a sequência de teorias na ciência madura historicamente gerada” é uma sequência na qual as teorias sucessoras aumentam seu conteúdo de verdade sem aumentar seu conteúdo de falsidade (no prelo, p. 2). ↩︎
  10. Do lado mais técnico, Niiniluoto mostrou que o grau de corroboração de uma teoria co-varia com sua “verosimilhança estimada” (1977, pp. 121-147 e no prelo). Aproximadamente falando, a “verosimilhança estimada” é uma medida do qual proximamente (o conteúdo de) uma teoria corresponde àquilo que consideramos como os melhores sistemas conceituais que fomos capazes de encontrar até agora (1980, pp. 443ss.). Se as medidas de Niiniluoto funcionarem, seguir-se-á da covariância acima mencionada que uma teoria empiricamente bem-sucedida terá um alto grau de verosimilhança estimada. Mas como a verosimilhança estimada e a verosimilhança genuína não estão necessariamente relacionadas (sendo a primeira parasitária à evidência existente e os sistemas conceituais disponíveis), é uma questão em aberto se — como afirma Niiniluoto — o sucesso continuado de teorias altamente confirmadas pode ser explicado pela hipótese de que elas de fato estão próximas da verdade pelo menos nos aspectos relevantes. A menos que eu esteja equivocado, tal observação revela uma confusão entre “verosimilhança real” (à qual não temos acesso epistêmico) e “verosimilhança estimada” (que é acessível mas não-epistêmica). ↩︎
  11. Newton-Smith afirma que o crescente sucesso preditivo da ciência ao longo do tempo “seria um misticismo total [...] se não fosse o fato de as teorias captarem cada vez mais verdades sobre o mundo (no prelo, p. 15). ↩︎
  12. Saliento uma vez mais que não estou negando que possa haver uma conexão entre verdade aproximada e sucesso preditivo. Estou apenas observando que até que os realistas nos mostrem qual é essa conexão, eles deveriam ser mais reticentes em afirmar que o realismo pode explicar o sucesso da ciência. ↩︎
  13. Um não-realista poderia argumentar que uma teoria é aproximadamente verdadeira apenas no caso de suas consequências observáveis serem verdadeiras ou estarem dentro de um intervalo específico de valor de verdade. As teorias que fossem “aproximadamente verdadeiras” nesse sentido de fato seriam demonstrativamente bem-sucedidas. No entanto, o comprometimento do realista (de outro modo louvável) em considerar seriamente as afirmações teóricas de uma teoria o impedem de utilizar tal interpretação da verdade aproximada, uma vez que ele quer dizer que tanto as consequências teóricas quanto as observacionais são aproximadamente verdadeiras. ↩︎
  14. Se esse argumento, que atribuo aos realistas, parecer um pouco obscuro, desafio o leitor a encontrar na bibliografia um argumento mais claro! Formulações nítidas dessa posição podem ser encontradas em Putnam, Boyd e Newton-Smith. ↩︎
  15. Popper: “uma teoria que tem sido bem corroborada pode ser substituída apenas por outra [que] contenha a teoria bem corroborada antiga — ou pelo menos uma boa aproximação dela” (1959, p. 276).

    Post: “Devo ainda afirma que, como questão de fato histórica, as teorias [sucessoras têm] sempre explicado toda [a parte bem confirmada de suas predecessoras]” (1971, p. 229).

    Koertge: “praticamente todo par de teorias sucessivas na história da ciência está em relação de correspondência e, [...] a princípio, quando não há correspondência, a nova teoria será desenvolvida de tal modo que se aproxime tanto quanto possível de uma correspondência com a teoria anterior” (1973, p. 176-177).

    Dentre os autores que têm defendido uma perspectiva similar, é preciso mencionar (Fine 1967, p. 23, 231 ss.), (Kordig 1971, pp. 119-125), (Margenau 1950) e (Sklar 1967, pp. 190-224).

  16. Putnam não menciona que também é um fato que muitos cientistas não procuram preservar mecanismos anteriores e que as teorias que não preservaram mecanismos teóricas anteriores (seja a teoria microbiana das doenças, a tectônica de placas ou a óptica ondulatória) levaram a descobertas importantes. ↩︎
  17. Escrevi um livro sobre essa estratégia (Laudan 1977). ↩︎
  18. Após as batalhas epistêmica e metodológicas sobre a ciência durante os últimos três séculos deveria ser bastante claro que a ciência, considerada à primeira vista, não implica qualquer epistemologia particular. ↩︎
  19. (Putnam 1978, pp. 20, 123). ↩︎
  20. (Laudan 1976, pp. 467-472). ↩︎
  21. Essa questão das condições de limite consistentes com a teoria “redutora” é curiosa. Algumas das exposições mais bem conhecidas de relações de casos limites dependem (como observado por Krajewski) de que mostremos que a teoria anterior é um caso limite da teoria posterior apenas através da adoção de suposições de limite explicitamente negadas pela teoria posterior. Por exemplo, várias discussões encontradas em manuais apresenta (parte) da mecânica clássica como um caso limite da relatividade especial, desde que c se aproxime do infinito. Mas a relatividade especial está comprometida com a afirmação de que c é uma constante. Não há algo de errado com uma “derivação” de T1 a partir de uma T2 que essencialmente envolve uma suposição inconsistente com T2? Se T2 estiver correta, então ela proíbe a adoção de uma premissa comumente usada para derivar T1 como um caso limite. (Deve-se notar que a maioria de tais provas pode ser reformulada de maneira aceitável, e.g., no caso da relatividade, adotando-se vo em vez de c ⟶ ∞). ↩︎
  22. Como dito de maneira convincente por Mario Bunge: “A perspectiva popular sobre as relações inter-teóricas [...] de que toda nova teoria inclui (no que diz respeito à sua extensão) suas predecessoras [...] é filosoficamente superficial, [...] e falsa enquanto hipótese histórica acerca do desenvolvimento da ciência” (1970, pp. 309-310). ↩︎
  23. Devo a sugestão dessa resposta realista a Andrew Lugg. ↩︎
  24. Sinto-me bastante perplexo frente às perspectivas de Putnam sobre o caráter “empírico” ou “científico” do realismo. Em alguns pontos ele parece sugerir que o realismo é empírico e científico. Ele escreve: “Se o realismo é uma explicação deste fato [a saber, que a ciência é bem-sucedida], ele próprio tem de ser uma hipótese científica abrangente (1978, p. 19). Uma vez que Putnam claramente afirma a antecedente, ele parece comprometido com a consequente. Em certa altura ele se refere a certos compromissos realistas como sendo “as nossas generalizações empíricas de mais alto nível sobre o conhecimento” (p. 37). Ele diz, além disso, que o realismo “poderia ser falso” e que “os fatos são relevantes o seu apoio (ou para a sua crítica)” (pp. 78-79). No entanto, por razões que não estão claras, Putnam quer negar que o realismo seja uma ou científico ou uma hipótese (p. 79). Permanece por esclarecer como o realismo pode consistir em doutrinas que 1) expliquem fatos sobre o mundo, 2) sejam generalizações empíricas sobre o conhecimento e 3) possam ser confirmadas ou falsificadas pela evidência e ainda assim não sejam nem científicas e nem hipotéticas. ↩︎
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