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25 de Fevereiro de 2005   Ética

Abandonar o antropocentrismo

Sônia T. Felipe
Empty Cages: Facing the Challenge of Animal Rights
de Tom Regan
Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2005, 224 pp.

A experiência política de luta em defesa dos direitos animais e os argumentos éticos que a sustentam nas três décadas mais recentes da história euro-americana podem ser conhecidos em sua coerência e clareza de propósitos no livro Empty Cages, do filósofo moral norte-americano Tom Regan. Publicado em 2005 pela Rowman & Littlefield, o livro foi dedicado pelo autor a indivíduos de quaisquer partes do planeta que questionam a liberdade humana de infligir dor e sofrimento aos animais e de privá-los de direitos fundamentais. Esses direitos são os mesmos que os seres humanos não admitem perder: os direitos relativos à integridade do corpo e à liberdade de mover-se para prover seu próprio bem-estar. Empty Cages, conforme o anuncia o próprio título, defende a abolição total do aprisionamento de animais. Em vez de jaulas maiores, conforme defendido por bem-estaristas e humanitaristas, Regan estabelece um único fim para sua luta: abrir definitivamente as jaulas nas quais animais de todas as espécies se encontram aprisionados para exploração humana, porque, por mais que o disfarcem em discursos humanitários, os produtores de animais confinados jamais alcançam oferecer realmente aos animais o bem-estar próprio de sua espécie. Não é em jaulas que os animais podem encontrar conforto e viver de acordo com sua natureza.

Empty Cages, escrito num tom quase coloquial em onze capítulos distribuídos em cinco partes, relata a experiência de um filósofo educado nos melhores padrões do raciocínio moral tradicional antropocêntrico, que, ao mesmo tempo em que reluta em abandonar os mesmos sem uma boa razão está disposto a fazer de sua biografia uma trajetória coerente com os melhores princípios éticos. Insatisfeito com o fato de que os argumentos desenvolvidos para a defesa do direito à vida, à integridade e ao bem-estar humanos são descartados imediatamente assim que a vida, a integridade física e o bem-estar sejam de outros seres vivos animados que não os humanos, Regan pôs-se a caminho, há mais de trinta anos, como o fazem os retirantes nordestinos, no Brasil, abandonando aos tropeços mas com determinação a terra árida. Para Regan, a aridez expressou-se na moralidade que se mostra cruel e indiferente a todo sofrimento não-humano, a mesma que desqualifica a vida de seres de outras espécies animais.

Na Parte I, “Americanos de Norman Rockwell”, Regan relata a experiência moral e política na condição de homem e filósofo contemporâneo nascido, crescido e formado na cultura de criação, exploração e abuso dos animais em nome do benefício humano. O jovem Tom Regan chegou a trabalhar no corte de carnes. Mas, precedido em sua evolução moral pessoal por sua esposa Nancy, transpõe, de forma cautelosa mas determinada, os limites da moralidade tradicional, instituída no costume da matança de animais para alimentar, divertir, adornar e testar todo tipo de venenos, benéficos ao ser humano. Nessa cultura nasceu o autor, dela tomou parte e foi até mesmo seu defensor... até ler Gandhi.

Cauteloso mas determinado o jovem filósofo reluta no que diz respeito ao estatuto moral dos animais. Seguiu passo a passo o caminho de um retirante, de alguém que se afasta para sempre do lugar árido onde a vida perece de forma cruel, não pela falta d’Água, como ocorre com os retirantes nordestinos no Brasil, mas sob o domínio de interesses humanos indefensáveis e igualmente áridos, do ponto de vista ético, tais como os de divertir-se atirando em pássaros e em mamíferos de todo tipo ou confinando milhares de indivíduos de uma mesma espécie em galpões fétidos, verdadeiros campos de concentração em massa de animais sensíveis e conscientes, cujas vidas e bem-estar não contam, a menos que sejam favoráveis aos cálculos da indústria da carne e derivados animais.

O percurso moral da metamorfose relutante do jovem filósofo Tom Regan, de convicto especista no mais conhecido filósofo contemporâneo defensor de direitos para os animais, pode ser conhecido em todas as suas nuances, sem máscaras. Nos dois primeiros capítulos, nos quais Regan dá resposta à pergunta “Afinal, quem são os defensores dos animais em toda parte?”, podemos conhecer os três tipos de caráter predominantes no movimento ético e político de defesa dos animais: os DaVincianos, os Damacenos e os Relutantes. Neste último, reconhecemos o carácter de alguém que pode muito bem ser qualquer um de nós. Sem máscaras, Regan nos relata que trabalhou no corte de carnes, que admirava, quando criança, os jovens caçadores, que comeu muita carne, levou os filhos a visitarem zoológicos, e chegou até mesmo a dar um chapéu de pele à Nancy, sua esposa, certo de poder realçar com ele ainda mais sua beleza.

A moralidade que sustenta os hábitos de consumo dos Americanos de Norman Rockwell não difere da moralidade mal-acostumada, vigente ao redor do planeta. E é disso que Regan fala. Do facto de que não é necessário nascer com uma percepção DaVinciana, sensível aos direitos dos animais, nem passar por qualquer experiência Damacena, reveladora da maldade humana contra os animais, para que alguém possa tornar-se defensor dos direitos animais. Basta que seja tão relutante em aceitar como dogma os ditames de uma moralidade mal-acostumada quanto em aceitar que temos o direito de fazer mal a outros animais. Essa relutância nos faz questionar os motivos que nos levam a consumir isso ou aquilo, e a investigar as conseqüências do ato de satisfazer nossos desejos e impulsos às custas do bem-estar e da vida de outros seres sujeitos-de-uma-vida.

Enquanto os DaVincianos nascem com uma espécie de convicção profunda e cristalina a respeito do direito à vida e ao bem-estar de seres destituídos de linguagem e de poder, conforme Leonardo Da Vinci, do qual Regan deriva um dos três tipos de carácter dos defensores dos animais, os Damacenos, mais parecidos com Saulo (Paulo de Tarso), para se tornarem defensores dos animais, precisam de uma experiência de grande impacto, que os coloque frente a frente com sua própria moralidade e os faça reconhecer nos demais animais, por detrás das diferenças na aparência, a mesma condição de fragilidade e necessidade de proteção.

No terceiro tipo de defensor de direitos para os animais, grupo no qual Tom Regan se inclui, encontram-se indivíduos de todas as partes do planeta, que chegam não de súbito e sim aos pouquinhos, por própria conta e risco e de forma relutante, ao movimento. Não se trata, para esses, de converter outros, mas de transformar sua própria biografia. Os que relutam, porém, questionam os costumes vigentes e os argumentos morais que os sustentam. Reconhecem quão absurdo um determinado costume pode ser do ponto de vista de sua possibilidade de legitimação moral, e por essa razão o abolem de suas vidas. Ao mesmo tempo, dominados e condicionados em sua matriz cognitiva pela cultura na qual vivem, são capazes de continuar completamente cegos e de não reconhecer, pelo menos não de imediato, os demais hábitos de uso e exploração de animais, como igualmente absurdos. Os relutantes seguem, desse modo, meio aos tropeços, embora sua determinação moral seja firme, em direção à total abolição da crueldade contra os animais. É a esses que Regan dedica Empty Cages. Para os apoiar, orientar e ajudar a solidificar sua vontade.

Os Relutantes, termo que julgo melhor apropriar-se em seu sentido para traduzir do inglês Muddlers, necessitam reformular primeiro suas próprias convicções, algo nem sempre possível de ser feito de um dia para o outro. Necessitam, ainda, de um espaço cultural no qual possam questionar os argumentos tradicionais em pontos mais difíceis. Assim, o terceiro grupo de defensores dos animais, um grupo que Regan reconhece, no último capítulo de Empty Cages, ser definitivamente importante para o futuro da causa animal, segue devagarinho mas com passos determinados, em direção à abolição de todos os costumes de uso e exploração de animais, atento aos erros que podem ser cometidos por extremistas que representam a absoluta minoria entre os defensores dos animais, na luta em defesa de seus direitos.

Os Relutantes seguem determinados a abolir cautelosamente a violência contra todos os seres vivos, humanos e não-humanos, pois receiam cometer erros tão graves ou ainda piores do que os dos conservadores. São, ao mesmo tempo, defensores dos direitos humanos e dos direitos animais. Sabem que essa luta, a exemplo do que sucedeu na luta pela abolição da escravização de africanos e também pelo fim da discriminação contra as mulheres, demora a completar-se, e, além do mais, nunca se realiza por completo em todas as partes do mundo. A exemplo daquelas duas lutas, o mesmo acontece na luta pelos direitos dos animais. Ainda que não consigamos a igualdade sonhada, o sonho da igualdade não pode ser abolido. A condição dos africanos e das mulheres é mais favorável a seus interesses, hoje, sob a proteção de leis e costumes estabelecidos nas últimas décadas, do que o foi nos milênios que antecederam o presente momento de nossa história moral e política.

A história do gato vivo oferecido no cardápio de restaurantes asiáticos e a de outros animais mortos oferecidos nos cardápios dos restaurantes ocidentais, um dia, disso Regan tem a mais serena convicção, não passará de anedocta, relato de uma moralidade superada pela luta em favor da igualdade de direitos morais fundamentais indiscriminados, humanos e animais.

Na Parte II, “Direitos Morais: O que são e porque importam”, Regan confronta os argumentos em favor dos Direitos Humanos, com os argumentos em favor dos Direitos Animais. Em dois capítulos, Regan reconstitui, de forma clara e concisa, argumentos morais que permitem reconhecer direitos fundamentais de forma não discriminatória para humanos e animais. Direitos relativos, obviamente, às necessidades específicas de cada forma de vida. O que há em comum na condição de seres biológicos sujeitos-de-uma-vida humanos e não-humanos, deve ser resguardado pelos mesmos direitos. O que há de específico, por direitos também específicos.

Na Parte III, “Dizendo e fazendo”, Regan critica a duplicidade de princípios morais e a falsidade do discurso veiculado pelos media, no qual se afirma que animais destinados ao abate e a experimentos em testes venenosos e letais são tratados humanitariamente. O discurso do tratamento humanitário apóia-se no discurso jurídico. Este, ao definir os direitos animais, faz parecer que os direitos definidos já se encontram respeitados pelos empresários da produção de animais em larga escala. Ao sancionar uma lei, todo governo estabelece que as práticas antigas devem ser revistas e reformuladas, por vezes até mesmo completamente abolidas, adequando-se ao espírito da lei sancionada. A lei aparece ao público como algo dado, estabelecido, assegurado em seus detalhes. Quando os porta-vozes da indústria da carne e dos laboratórios de pesquisa em modelo animal ocupam os media, seu discurso reproduz fielmente o texto das leis. O público leitor, ouvinte e telespectador desavisado crê que esse teor da lei de facto é respeitado pelos produtores de animais em larga escala, dado que isso é o que eles afirmam diante das câmeras e com todas as letras impressas.

Outra coisa é o que se passa nas gaiolas e jaulas dos laboratórios, galpões e abatedouros ao redor do planeta. Mas, devido ao facto de que as imagens dos animais confinados em massa, doentes, feridos e deprimidos, e a imundície do ambiente no qual comem, dormem e defecam todos os dias de suas vidas, não podem ser veiculadas por esses mesmos meios de comunicação de massa, devido ao direito à privacidade garantido por lei aos empresários desses negócios, os telespectadores, leitores e ouvintes têm diante de si apenas a imagem do porta-voz da indústria da carne e da indústria química, que aparece arrumadinho, limpinho e risonho para atestar ao público que são o retrato fiel dos animais em seus galpões e abatedouros, cujas imagens, aliás, nunca oferecem ao escrutínio do público espectador.

Uma metamorfose ocorre. A vida miserável oferecida pelos produtores e consumidores de animais e de seus derivados é metamorfoseada pelo porta-voz da indústria de animais. Ele nos assegura que os animais vivem limpinhos, felizes e gratos pelo tratamento humanitário que lhes é dispensado, e até mesmo por terem sido trazidos àquela vida pelo empresário que os negociará em poucos dias.

Na Parte IV, “A metamorfose”, Regan revela a outra face da imagem, jamais vista pelo telespectador ou leitor, escondida por detrás de câmeras e paredes dos alojamentos de todo tipo. Como bom relutante que é, Regan examina cinco das incontáveis práticas de uso e exploração de animais, defendidas ao redor do planeta como humanitárias. Regan percorre o trajeto ocultado pelos media. Vai aos galpões de confinamento, aos abatedouros, às usinas de peles, aos circos e zôos, às arenas e raias de competição animal e aos centros de pesquisas experimentais em modelo animal. As cenas reais desmentem o humanismo apregoado pelos vendedores de benefícios obtidos às custas dos animais. Elas confirmam, por sua vez, a ineficácia e inoperância dos textos legais de proteção aos direitos animais. Resta ao leitor relutante desfazer as próprias defesas morais, livrar-se de suas dúvidas, desvencilhar-se das armas de captura, aprisionamento e de todos os meios de inflição de sofrimento aos animais, representados e fomentados por seus hábitos aparentemente inocentes de vida.

Na Parte V, “Muitas mãos em muitos remos”, Regan dá voz às críticas feitas ao redor do planeta, por relutantes, aos defensores dos animais e permite àquele que deseja livrar-se da própria condição de cúmplice da moralidade que sustenta as mais abjetas atrocidades contra os animais percorrer em sua companhia o caminho de um raciocínio que não pode ser conduzido em linha reta, um raciocínio que, justamente por questionar a própria relutância, quando traça rumos, os traça definitivamente, sem volta. O autor convida a todos, cada um de acordo com o que é possível no momento presente de sua condição de vida e existência, a fazerem parte do grupo de relutantes ativos que questionam a um só tempo a moralidade vigente e a própria relutância. O desafio é a abolição de hábitos triviais de consumo de animais e de seus derivados. Para Regan, não vem ao caso alguém dizer que por não poder abolir absolutamente de sua vida pessoal todas as práticas de consumo animal, então não abolirá nenhuma delas. O tudo ou nada não ajuda os animais nem permite a evolução moral humana.

Não poder tudo não é o mesmo que nada poder. Alguma mudança nos próprios hábitos de consumo é possível a todos os seres humanos. Assim, por exemplo, se alguém não consegue imaginar-se comendo apenas alimentos derivados de vegetais, pode muito bem viver sem visitar circos, rodeios e demais espetáculos, nos quais animais são maltratados para diversão do público. Esse é apenas um pequeno exemplo de algo que está ao alcance de qualquer relutante.

A luta em defesa dos direitos animais por vezes é levada a efeito de modo não aceitável, quando por exemplo o limite entre vandalismo e violência se torna nebuloso. Mas, assim o afirma Regan, a luta em defesa dos direitos animais tem produzido um número insignificante de delitos, praticados, por sua vez, por um número absolutamente minoritário de militantes. Embora o número de delitos seja pequeno, comparado ao número dos biliões de crimes praticados diariamente ao redor do planeta contra os direitos e interesses dos animais, os media mostram ao público apenas esses atos, escondendo a atrocidade praticada contra os animais que dá origem a essa luta.

Os defensores dos animais não são psicopatas, desajustados sociais e incapazes morais, nem fanáticos ou desestruturados emocionais, embora no movimento possa haver um ou outro indivíduo com tais características. Os movimentos políticos são abertos, não clubes de ingresso exclusivo, seletivo. Não há como selecionar defensores dos animais. Essa é uma das razões pelas quais terroristas acabam por infiltrar-se no movimento. Os media ficam à espreita para desqualificar todos os defensores dos animais, DaVincianos, Damacenos e Relutantes, por conta desses poucos.

Regan inicia o livro descrevendo sua experiência moral como um sério relutante na adoção de argumentos em favor dos direitos animais e em direção à defesa da abolição de todas as formas de uso, exploração e destruição de vidas animais para benefício humano. No relato de sua própria trajetória moral, o autor descreve os tropeços de um retirante, de alguém que se afasta de tudo o que conhece bem, da moralidade vigente, passo a passo, substituindo, da alimentação ao vestuário e lazer, o que vem da indústria de animais, por algo que não resulta de sua exploração. Sua relutância e tropeços duraram quase uma década, ao final da qual, em certo dia, ao olhar-se ao espelho, reconheceu ali, finalmente, a imagem de um abolicionista radical, alguém que provou, na própria escolha biográfica, ser possível dispensar até a raiz a indústria da produção animal.

Tenaz, Regan mantém-se firme no propósito e ouve agora as sete queixas e alegações mais freqüentes de outros relutantes, de quem ainda hesita em dar o primeiro passo, os passos intermediários ou o definitivo, em direção à abolição de uma moralidade mal-acostumada. Por ter sido um deles e ter percorrido o caminho dos retirantes por mais de três décadas, Tom Regan traça o itinerário que espera será seguido nas próximas décadas por milhões de outros relutantes ao redor do planeta. Ele sabe que não viverá para ver o dia da abolição. Sabe, porém, que um dia ela chegará, e que seu percurso de retirante relutante terá sido uma luz para todos os que desejam viver sem transformar sua biografia numa novela de carnificina animal.

Fiel à convicção de que não poder tudo não quer dizer nada poder, Regan indica, ainda, na Parte V de seu livro, onze práticas contemporâneas de abuso e exploração de animais que qualquer relutante pode abolir. O fim dessas poucas práticas já representa um avanço no percurso da defesa de direitos animais, para os humanos que as abolirem e para os animais poupados. São elas: o uso de animais em espetáculos; o aprisionamento de golfinhos em parques aquáticos; a caça em cercados; a indústria de galgos para corridas; os curtumes e engenhos de peles; o abate de focas; a dissecação obrigatória; as experiências de laboratório com cães; os testes de toxicidade em animais, a começar pelo LD50; a detenção de animais; os comerciantes clandestinos de animais.

Não é preciso ser DaVinciano nem Damaceno, basta ser algo Relutante para reconhecer que essas práticas e muitas outras, triviais para a existência humana, são fatais para milhões de animais. Jaulas Vazias é leitura instigante e elucidativa para todos os relutantes de qualquer parte do mundo.

Sônia T. Felipe

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ISSN 1749-8457