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Crítica
21 de Junho de 2006   Estética

Os sintomas da arte

Célia Teixeira
A Exemplificação na Arte
de Carmo D'Orey
Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, 950 pp.

Em Portugal pensa-se, geralmente, que a filosofia analítica, aquela que é maioritariamente praticada em todo o mundo, apenas se dedica ao estudo da linguagem e da lógica, esquecendo-se de áreas tão importantes como a política, a ética e a estética. Isto é um erro grosseiro por duas razões. Em primeiro lugar, todos os anos saem no mercado de língua inglesa livros novos nas áreas da ética, estética e da filosofia política. Em segundo lugar, é a tradição analítica que tem proposto novas teorias para responder aos problemas tradicionais da filosofia, em geral, e da ética, da estética e da filosofia política, em particular. Ironicamente, é a tradição continental, aquela que se pratica sobretudo no continente Europeu, que não discute seriamente nenhum dos problemas filosóficos tradicionais, em geral, e da estética, da ética e da filosofia política, em particular. O livro que hoje coloco à vossa consideração exemplifica na perfeição o modo analítico de fazer filosofia, e em particular, o modo analítico de fazer estética.

“A Exemplificação na Arte” é da autoria de Carmo d'Orey, Professora na Faculdade de Letras da UL e coordenadora do mestrado de estética. Carmo d'Orey começou por estudar filosofia continental, abandonando-a quando percebeu que esta não respondia aos problemas estéticos que a preocupavam. Passou assim a dedicar-se à leitura dos filósofos analíticos onde encontrou as respostas que procurava, nomeadamente nos trabalhos de Nelson Goodman com quem veio a estudar. Mas apesar de o livro ser sobretudo um livro dedicado ao estudo da filosofia de Goodman, a autora não se limita a apresentar as suas teorias. Como praticante de filosofia analítica, a autora apresenta, discute e critica os argumentos de Goodman, mostrando em que medida algumas das suas teorias constituem uma resposta satisfatória aos problemas abordadas.

O livro está dividido em duas partes. Uma primeira parte mais expositiva onde a teoria simbólica de Goodman é apresentada e a noção de exemplificação analisada. E uma segunda parte mais argumentativa dedicada ao estudo dos “Enigmas da Estética”. Aqui d'Orey não se limita a expor a contribuição de Goodman na resolução dos problemas estéticos, mas confronta-a e discute-a face a algumas teorias rivais, nomeadamente, aquando da discussão da natureza da arte e do valor. O livro encontra-se ainda enriquecido com três úteis apêndices — com as teses discutidas, as definições dadas e um léxico dos termos técnicos — além de um longo índice analítico.

São três os “enigmas da estética” que constituem o conjunto dos problemas tradicionais a que esta obra se dedica: o problema da definição, o problema da interpretação e o problema do valor. O problema da definição consiste em saber o que distingue aqueles objectos que classificamos como obras de arte dos outros. O problema da interpretação consiste em saber como interpretar as obras de arte. E o problema do valor consiste em saber como justificar os nossos juízos de valor, porque razão dizemos que certas obras de arte são boas, têm valor, e outras não.

É através da sua teoria simbólica que Goodman responde aos três grupos de questões tratadas: caracteriza a natureza da arte deslocando a questão de saber o que é arte para a questão de saber quando há arte, isto é, quando é que o funcionamento simbólico de um objecto é estético; responde às questões relacionadas com a interpretação das obras de arte, onde é de destacar o modo como é solucionado o funcionamento das metáforas; e responde à questão do valor da arte fundando o valor estético das obras de arte nas suas potencialidades cognitivas, no seu valor instrumental. A resposta ao segundo grupo de questões é de todas a menos satisfatória, uma vez que Goodman não responde à questão de saber o que é arte, limitando-se a caracterizar a natureza do funcionamento simbólico estético. Visto que ele defende a natureza simbólica da arte é natural que a sua preocupação seja a de saber quais as características que determinam um objecto como símbolo estético. Essas características são aquilo a que Goodman chama de “sintomas do estético”. Os “sintomas” não são nem necessários nem conjuntamente suficientes para que haja arte, de modo que apenas servem para caracterizar a natureza da arte. A ideia de “sintomas” é feita por analogia aos sintomas de uma doença. E, tal como numa doença, quando os sintomas estão presentes é provável estar perante uma obra de arte. Mas, assim como se pode ter uma doença sem os sintomas, ou apenas alguns, ou os sintomas sem a doença, a presença ou ausência de alguns deles não é suficiente para qualificar ou desqualificar algo como arte. Assim o estatuto dos sintomas é o de sinais que tendem a qualificar algo como arte de modo probabilístico, o que faz com que não seja possível produzir contra-exemplos. Isto, obviamente, torna a noção de sintomas muito frágil, assim como a sua caracterização da arte, uma vez que ao ser irrefutável não pode constituir-se como uma boa teoria acerca da natureza da arte. Todavia, por mais insatisfeitos que fiquemos com as propostas de Goodman, as secções dedicadas à exposição e discussão das várias teorias da definição valem por si mesmas.

Um dos aspectos a destacar nesta obra é a imensa elegância e extraordinária clareza com que os argumentos e as teorias de Goodman são apresentados e discutidas, algo que o próprio Goodman parece não ter sido capaz de o fazer. E como acontece na tradição analítica, ou em qualquer área do conhecimento, mesmo que discordemos das teorias podemos apreciá-las e aprender com elas. Por tudo isto, se está interessado em estética não pode deixar de ler este livro — até porque é um dos poucos livros de estética disponível em português em que se discutem os problemas da estética, se não mesmo o único.

Célia Teixeira
Livros (n.º 19, Abril de 2000).
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ISSN 1749-8457