Quem estuda lógica sabe que existem pelo menos duas maneiras de rejeitar um argumento: 1) encontrar algum defeito na passagem das premissas para a conclusão; 2) rejeitar as premissas. Aceitando as premissas e raciocinando bem, devemos também aceitar as conclusões que se seguem delas. Mas sempre podemos não aceitar as premissas ou pontos de partida de um argumento. Isto é lógica elementar.
Os filósofos em geral são largamente inconscientes de seus pontos de partida, do fato absolutamente banal de que, quando pensam, sempre o fazem desde algum lugar. São inconscientes de que os resultados obtidos, mesmo corretos e coerentes, são dependentes de pressupostos, premissas e pontos de partida que sempre podem ser racionalmente rejeitados pela outra parte. Os filósofos tendem a considerar as suas conclusões sobre algum assunto como resultados absolutos, sem consciência de que esses resultados são legítimos apenas a partir de pressupostos que sempre podem ser contestados mediante razões. Uma afirmação que se considera absoluta, que não se vê a si mesma apenas como uma perspectiva entre outras, reivindica para si uma primazia que não pode ser racionalmente justificada.
Um proceder mais racional seria reconhecer que a própria postura — mesmo quando perfeitamente fundamentada em argumentos e mesmo raciocinando de maneira válida — é sempre apenas uma perspectiva entre muitas outras sobre o assunto em pauta. Assim, diante de uma afirmação qualquer, sempre temos que considerar o referente da afirmação — aquilo acerca do qual a afirmação fala — mas também o que chamo o aferente, ou seja, a fonte a partir da qual a afirmação é feita, com suas premissas e pressupostos. Estes pressupostos devem ser claramente formulados para que os outros arguidores possam ficar em condições de aceitá-los ou rejeitá-los, mesmo quando aceitem que desses pressupostos seguem-se as conclusões pretendidas.
Assim, por exemplo, quando Ortega y Gasset afirma que Debussy é um músico revolucionário (como ele declara no livro A Desumanização da Arte), essa afirmação fala tanto sobre Debussy como sobre Ortega y Gasset. Essa afirmação refere-se a Debussy desde a aferência de Ortega. Pode ser que a afirmação seja verdadeira, mas nunca o será em termos absolutos; o será desde a particular perspectiva adotada por Ortega (desde a sua concepção de música, de arte, de revolução, de seu particular conhecimento de Debussy, etc.). Considerar a afirmação de Ortega sobre Debussy como absolutamente verdadeira ou como absolutamente falsa não parece uma atitude racional. Mais racional pareceria analisar, primeiro, se aceitamos ou não os pressupostos a partir dos quais Ortega faz a sua afirmação sobre Debussy; e, em segundo lugar, se desses pressupostos, uma vez aceitos, segue-se ou não a afirmação de que Debussy é um músico revolucionário.
Na sua incansável campanha contra o que ele chama de “pseudofilosofia”, Mario Bunge inclui persistentemente Heidegger — e o existencialismo em geral — em suas críticas. Afirma que o existencialismo é uma doutrina sombria e deprimente, que Heidegger escreve disparates, faz afirmações vazias de sentido que foram utilizadas pelo Nazismo, e que nunca fez uma filosofia genuína.1 Numa entrevista muito conhecida, Bunge chama Heidegger de esquizofrênico e patife:
Por exemplo, Heidegger tem um livro inteiro sobre O ser e o tempo. E o que ele diz sobre o ser? “O ser é ele mesmo.” O que isso significa? Nada! Mas as pessoas não entendem e pensam que deve ser algo muito profundo. […] As frases de Heidegger são próprias de um esquizofrênico. [… ele era um patife que se aproveitou da tradição acadêmica alemã, segundo o qual o incompreensível é profundo. E, consequentemente, adotou o irracionalismo e atacou a ciência porque quanto mais estúpidas forem as pessoas melhor será para controlá-las de cima. É por isso que Heidegger é o filósofo de Hitler, o seu protegido”2
Numa entrevista recente, Bunge coloca Hegel, Heidegger e Sartre no que chama “charlatanismo acadêmico”.3
O que significa tudo isto? Significa que a afirmação “Heidegger é um charlatão” é verdadeira? Significa que ela é simplesmente falsa? Ambas as coisas seriam apressadas. O único que racionalmente podemos, por enquanto, inferir, é que a afirmação “Mário Bunge considera Heidegger um charlatão” é verdadeira. Para que a primeira afirmação (“Heidegger é um charlatão”) possa também ser considerada verdadeira, o autor da frase deveria ser capaz de expor as razões pelas quais faz essa afirmação, caso for interrogado. Se Mario Bunge insiste em sua afirmação e não a justifica, não temos por que aceitá-la.
Quando Bunge se refere a Heidegger — e à filosofia da existência em geral — ele é habitualmente bastante sumário. Ele diz que a filosofia da existência é “pseudofilosofia”, que é uma “doutrina sombria” que apenas serve para deprimir e destruir. Afirma que certos escritos de Heidegger são simplesmente “disparates” e que muitas de suas opiniões foram utilizadas pelo nazismo. Critica a sua concepção do humano como um ser paralisado diante do Nada, e a ideia dos existencialistas de que a lógica e a ciência são desprezíveis, já que o que realmente interessa é a existência nua. Os escritos de Heidegger seriam, segundo Bunge, uma mescla de afirmações sem sentido, jargões e falsificações, não constituindo uma genuína filosofia. Não conheço nenhum texto onde Bunge se debruce sobre um texto de Heidegger e o analise em pormenor; se o leitor conhece um texto assim, peço que me indique a fonte. Estou sempre disposto a mudar minhas opiniões à luz de nova evidência.
A essas afirmações sumárias sobre filosofia da existência poder-se-ia responder, de imediato, o seguinte. A noção de “pseudofilosofia” pressupõe uma noção anterior do que seja “filosofia”. Mesmo que — aceitando a noção de filosofia de Bunge — dela se infira que Heidegger é um charlatão, não somos obrigados a aceitar a noção de filosofia de Bunge. Podemos rejeitá-la mediante argumentos, mostrando, por exemplo, que é uma concepção cientificista demasiado estreita, que contém preconceitos ou limitações injustificadas que deixa de fora muita reflexão sobre o mundo e sobre o humano. Se assim o fizermos, poderemos então rejeitar também a sua noção de “pseudofilosofia”. De maneira análoga, para dizer que certa afirmação é um “disparate”, precisamos de um referencial do que seja ou não significativo, do que seja ou não absurdo, etc., e esses referenciais sempre podem ser postos na mesa e discutidos. Não há critérios de “significativo” que sejam absolutos, universais e definitivos. Pensar que existem estes critérios não parece mostrar numa genuína atitude científica, experimental, plural e revisável do mundo e da filosofia.
No que se refere às outras críticas sumárias de Bunge contra Heidegger, do fato de que uma filosofia seja “sombria”, “depressiva” ou destrutiva dos valores (aceitemos, por amor ao argumento, que tudo isto seja verdade), não se infere logicamente que ela seja uma filosofia falsa. Poderia ser sombria, depressiva, destrutiva e verdadeira. Para mostrar claramente que do caráter sombrio, depressivo e destrutivo de uma filosofia se infere logicamente a sua falsidade muitos outros argumentos adicionais deveriam ser agregados. Igualmente, do fato de que os nazistas tenham utilizado afirmações de Heidegger não se infere que essas afirmações sejam falsas, assim como do fato de militares se aproveitarem belicamente da dinamite não se segue que o inventor da dinamite seja um criminoso. Pretender que esta passagem inferencial é válida pode ser falacioso. Do fato histórico incontestável que Heidegger simpatizou com o Nazismo não se segue logicamente a falsidade da sua concepção do humano, por exemplo.
Leitores atentos de Heidegger, mesmo que não especialmente admiradores de sua filosofia — como é meu caso — poderiam contestar, com base em muitos textos, que Heidegger afirme em algum lugar que o ser humano deva ficar paralisado diante do Nada e de que a lógica e a ciência são completamente desprezíveis. Heidegger apresenta uma série de atitudes humanas diante do vazio da existência, uma noção de “escolha de si mesmo” que está muito longe de qualquer atitude de paralisia. Só um leitor muito descuidado dos textos de Heidegger poderia ficar com essa ideia simplória. Heidegger tampouco nega que a lógica e a ciência tenham seus escopos perfeitamente legítimos de atuação. Por exemplo, no epílogo de O Que é Metafísica?, Heidegger afirma explicitamente que a lógica simbólica é uma interpretação possível da essência do pensar, mas que não é a única; o pensar calculador não é negado, mas apenas situado entre outras possibilidades. Estas questões são complexas e se fizermos filosofia com paciência e seriedade elas não podem despachar-se mediante leituras rápidas e frases sumárias.
Se Bunge ou qualquer outro crítico diz que não vale a pena perder tempo analisando com cuidado textos de Heidegger porque é evidente para qualquer um que Heidegger é um charlatão, nós, seus interlocutores no diálogo, podemos sempre negar essa suposta “evidência”. Podemos declarar que, para nós, não é evidente que Heidegger seja um charlatão, que não nos convencem as frases rápidas e os juízos sumários, que precisamos de mais provas, de mais análise de textos, de mais considerações específicas e detalhadas. Pode até ser verdade que Heidegger seja um charlatão, e pode ocorrer que efetivamente nos convençamos disso no final de uma argumentação; mas não podemos aceitar simplesmente essa afirmação como sendo evidentemente verdadeira sem quebrar elementares critérios racionais de argumentação em filosofia.
Voltando à reflexão inicial, cada vez que nos deparamos com uma afirmação do tipo “Mario Bunge declara que Heidegger é um charlatão”, nós deveríamos ficar cientes de que essa afirmação fala tanto de Heidegger quanto de Mario Bunge. Temos que considerar, logicamente, dois elementos, e não apenas um: referente e aferente. Em geral, o autor do enunciado considera apenas a referência, o que o enunciado diz, o seu destino. Mas é fundamental perguntar-se também pela fonte da enunciação, desde qual lugar teórico e vital a afirmação está sendo enunciada, desde quais critérios, quais definições, quais concepções. Se não, corremos o risco de identificar o enunciado: “Mario Bunge declara que Heidegger é um charlatão” com o enunciado “Heidegger é um charlatão”, que são dois enunciados com diferentes condições de verdade. Mostrar que o primeiro enunciado é verdadeiro não serve para mostrar que o segundo enunciado é verdadeiro (nem vice-versa, é claro).
Em geral: “X declara que Y” não é um enunciado somente acerca de Y; ele diz algo também acerca de X. Acontece que, em geral, pela força de poderosos mecanismos psicológicos (e talvez biológicos), X se autoapaga como fonte do enunciado e considera o que ele enuncia como sendo simplesmente a verdade sobre Y. Lançando mão de uma imagem: quando colocamos um líquido num recipiente o líquido se acomoda à forma do recipiente. Nunca compramos apenas whisky, sempre compramos uma garrafa de whisky. E o whisky adota a forma da sua garrafa; é o mesmo whisky, mas a sua recepção é diferente. Por analogia, podemos dizer que quando alguém faz uma declaração, o conteúdo do declarado se acomoda à forma de quem está fazendo a afirmação.
No caso particular, podemos dizer: “Para alguém da formação, os valores, as crenças, a trajetória, as convicções, os conhecimentos, a sensibilidade, etc., de Mario Bunge, os textos de Heidegger podem (ou talvez devem) aparecer como escritos por um charlatão”. O líquido heideggeriano adota a forma do recipiente bungiano. E realmente quando nos colocamos os óculos de Bunge, é quase impossível não ver Heidegger como um charlatão. O problema é que esse recipiente não é o único capaz de receptar Heidegger. O Heidegger contido nesse recipiente não é o único Heidegger possível, a única maneira possível de receber Heidegger (apesar da forte persuasão psicológica que leva o autor da declaração a pensar assim). O whisky heideggeriano pode ser acomodado nas mais diversas garrafas, e a garrafa bungiana é apenas uma delas. Pretender que essa única garrafa nos dá a única e definitiva maneira de julgar o conteúdo, não é uma postura racional.
Entretanto, isto não nos leva para um “subjetivismo” insondável (do tipo “Bunge está sendo subjetivo ao julgar Heidegger”), mas para perspectivas diversas capazes de mostrar diferentes aspectos — perfeitamente objetivos — de uma filosofia ou de um autor. O que essas perspectivas descobrem sobre algo ou sobre alguém (por exemplo, sobre Heidegger) não é subjetivo; é perfeitamente objetivo. Só que não é único, pois o mundo pode ser objetivamente visto desde distintas perspectivas. Há numerosas perspectivas a partir das quais pode ser vista a filosofia de alguém. E parece perfeitamente razoável pensar que, pelo menos desde uma dessas outras perspectivas, os escritos de Heidegger podem aparecer como filosoficamente valiosos. Seria irracional declarar que “Heidegger é um charlatão” é uma conclusão que se deriva universalmente de toda e qualquer perspectiva, como um fato absolutamente objetivo e definitivo. (Isto é, às vezes, pretendido mediante frases como: “Qualquer pessoa razoável pensaria da mesma forma”, ou “Ninguém que faça filosofia séria deixaria de ver isso”, e semelhantes, onde o autor da frase tenta angariar simpatizantes e defender a ideia de que a sua declaração é objetiva, absoluta e definitiva desde qualquer ponto de vista).
Um dos alvos de crítica de Bunge tem sido sempre o “relativismo” em filosofia. Sempre poderíamos nos perguntar por que o relativismo seria mais falso ou mais nefasto ou mais perigoso que o dogmatismo; por que a ideia de que a verdade pode ser atingida de muitas maneiras seria mais perigosa que a ideia de que a verdade pode ser atingida de uma única maneira. Por que a multiplicidade seria mais perigosa que a unicidade? Por que declarar que há muitas verdades seria mais perigoso que declarar que existe apenas uma única verdade? Ambas as coisas podem ser perigosas. De fato, os totalitarismos do século XX, tanto de direita como de esquerda, nunca foram relativistas ou céticos, sempre foram fortemente dogmáticos, fanaticamente convictos de uma verdade única e incontestável.
Mas deixando isso de lado e supondo que o relativismo represente um perigo, a consideração de outras perspectivas além da própria não leva para um relativismo subjetivo ou para um ceticismo vulgar, mas, em todo caso, para um relativismo objetivo ou um relativismo lógico que afirma, simplesmente, que nossas conclusões são sempre relativas às premissas que assumimos anteriormente, e que pretender dizer nas conclusões mais do que havia nas premissas é uma falácia. Não sabemos como raciocinam os deuses, mas seres finitos como os humanos só podem argumentar a partir de pressupostos e premissas.
Dizer que o que se conclui depende das premissas de que se parte não é uma afirmação “relativista”, é algo que os lógicos de todos os tempos vêm repetindo. Isto quer dizer algo muito importante: que a perspectiva de Mario Bunge sobre Heidegger ser um charlatão não é absolutamente falsa. É algo que se pode legitimamente concluir aceitando os pressupostos a partir dos quais Bunge e adeptos fazem tal declaração. Na medida em que não seja uma mera declaração emocional, e se Bunge tem argumentos para defender a sua postura, o que ele declara sobre Heidegger não é falso; pode ser racionalmente defensável. Isto significa que se aceitarmos todos os pressupostos de Bunge, a conclusão poderia (ou talvez deveria) ser que Heidegger é um charlatão. Mas a questão crucial é sempre a mesma: ninguém é obrigado a aceitar os pressupostos de Bunge; sempre temos o direito — pelo menos numa genuína democracia intelectual — de ter outra formação filosófica, outra sensibilidade, outras crenças, outros valores, outros interesses, outra noção de filosofia, etc., segundo os quais Heidegger não é um charlatão, mas um filósofo importante.
Pretender que a conclusão de que Heidegger é um charlatão se deriva logicamente de toda e qualquer perspectiva que assumirmos, de toda e qualquer premissa que aceitemos, é uma postura irracional, assumida apenas de maneira emocional e guiada pela raiva ou pelo desprezo, ou talvez pela irritação de não entender. A postura racional consistiria em afirmar a conclusão obtida (Heidegger é um charlatão) como o resultado — perfeitamente legítimo — de apenas uma linha de argumentação possível entre muitas outras. Numa maneira racional de filosofar numa sociedade aberta, as diversas linhas de argumento se criticarão mutuamente sem descartar-se como absurdas ou incabíveis, na medida em que cada linha tenha apresentado claramente seus pressupostos, suas definições, os tipos de sequitur lógico que irá aceitar (dedutivo, indutivo, abdutivo, associativo, etc.), e o resto de sua bagagem argumentativa.
Toda vez que um texto filosófico nos irrita ou não o entendemos ou não nos parece relevante, nos defrontamos com uma situação na qual existem pelo menos duas alternativas: 1) o texto filosófico não tem valor; 2) o leitor não possui — por um motivo ou outro — as condições para captar o valor do texto. Não seria racional descartar a priori esta segunda alternativa. A atitude mais sadia e razoável, diante da situação de não conseguir ver o valor de um texto, pareceria ser: “Isto escapa a meu entendimento; não é um texto para mim; não é o tipo de filosofia que eu prefiro ler”, ou algo do gênero. Não parece razoável declarar que um texto filosófico não tem nenhum valor apenas pelo fato de que eu não consiga captar seu valor, ou me deixe indiferente ou me irrite. Não é um disparate tudo o que eu não consigo captar com a minha formação, minhas ferramentas intelectuais, a minha cultura, etc. Como certa vez Wittgenstein disse a Russell: “Não penses que tudo o que você não entende é absurdo”.
Alguém poderia alegar (e é bem possível que Bunge alegue) que esta atitude demasiado tolerante deixaria o caminho aberto para todo tipo de charlatães, mistificadores, mentirosos e desonestos. Quem assim se manifesta, entende que ele assume uma espécie de cruzada em favor da racionalidade em filosofia, já tendo perfeitamente definido a racionalidade e identificado seus transgressores. Eu concordo plenamente na defesa de um filosofar racional, mas penso que, em lugar de afirmações sumárias, é mais racional desenvolver linhas de argumento cuidadosas e demoradas para tentar mostrar que um escrito filosófico carece de valor ou é produto de charlatanice ou desonestidade, dando oportunidade à outra parte de se defender e replicar. Certamente, muitos leitores sérios de Heidegger (é racional pensar que são todos desonestos?) podem perfeitamente apresentar contra-argumentos para mostrar que Heidegger é um filósofo que tem algo importante a dizer. E os bungianos poderão replicar e assim seguindo.
Não temos por que organizar cruzadas em favor de um modo específico de fazer filosofia como se tivéssemos recebido uma iluminação do Bem absoluto. Pois o único que temos em filosofia — pelo menos após a queda dos referenciais religiosos e metafísicos do passado — são argumentos e contra-argumentos. Não podemos partir numa missão redentora já de antemão guiada por uma ideia absoluta e não argumentada — e talvez muito limitada — do que seja racional e do que seja charlatanice em filosofia.
Se Bunge replicasse que concorda com tudo o aqui exposto e que quando ele faz declarações sobre Heidegger está sempre implícito, de maneira elíptica, que ele está apenas afirmando isso desde a sua própria perspectiva, sem nenhum intuito de desqualificar Heidegger de maneira absoluta e definitiva, então estamos de acordo e podemos beber cerveja juntos (ou café ou o que quiserem). Se Bunge reconhece que a sua frase foi simplesmente um desabafo emocional sem justificativa racional, que Heidegger simplesmente o irrita de uma maneira impossível de conter, pois que seja. Podemos entender isto, mesmo num filósofo que se caracterizou a vida toda pela defesa da racionalidade e da ciência, contra meras atitudes emocionais. Mas se ele alegar que não se trata de nenhum simples desabafo emocional, mas de um conteúdo que pode ser defendido por argumentos, então ficamos esperando por esses argumentos.
Não creio que construamos um mundo melhor rejeitando sumariamente, de maneira emocional e sem argumentos, tudo aquilo que não compreendemos ou não temos paciência para estudar. Se acharmos que uma ideia é perniciosa ou prejudicial, a única maneira de combatê-la é argumentar contra ela com conhecimento de causa, em lugar de descartá-la como obviamente falsa ou desonesta depois de ter lido algumas poucas frases, e assumindo-se como uma espécie de guardião da racionalidade. Já vimos neste texto que esta atitude tem muito pouco de racional. Quando os embates não são argumentativos, eles só podem basear-se na violência, mesmo que esta seja cordial ou irônica. Pois rejeitar uma filosofia ou um filósofo sem justificar a rejeição é, sim, um ato de violência intelectual, que deverá ser denunciada também quando heideggerianos e existencialistas se recusam a reconhecer a importância da lógica formal, o método científico e a análise filosófica sem conhecer nada sobre o assunto.