Karl Heinrich Marx nasceu a 5 de Maio de 1818, na cidade alemã de Trier e morreu em Londres em 1883. No cemitério de Highgate, em Londres, a 17 de Março de 1883, só 11 pessoas se apresentaram no funeral de Marx. Entre elas, o seu amigo de longa data, Friedrich Engels, que não hesitou em declarar que “o nome e a obra de Marx persistirão ao longo dos tempos”. Dadas as circunstâncias, esta parecia uma previsão votada ao fracasso. Todavia, Engels tinha razão.
Dada a influência de Marx no mundo contemporâneo, não é de admirar a existência de várias biografias. Há biografias académicas e biografias populares, biografias que pretendem apresentá-lo como um génio do pensamento político e biografias que pretendem apresentá-lo como a incarnação do Mal — um mal que justificou até a intervenção da Nossa Senhora de Fátima, que apesar de parecer não se preocupar com os milhões de pessoas que morriam à fome no Terceiro Mundo, se preocupou com o facto de haver um império comunista e ateu. Prioridades católicas.
A nova biografia de Francis Wheen é um trabalho informado dirigido ao grande público, que não procura apresentar Marx como um demónio nem como um deus, mas como um simples homem. E, neste aspecto, consegue ser uma obra admirável, dando-nos a conhecer a vida de Marx, com as suas contrariedades do dia-a-dia, as suas manias, os seus defeitos e as suas qualidades.
Esta biografia compreende 12 capítulos, uma introdução e três apêndices, além das notas que referem as fontes, dos agradecimentos e do índice analítico. Apresenta-se redigida num estilo directo e despretensioso, por vezes até humorístico, o que ajuda o leitor mais tímido a vencer as páginas ligeiramente densas, onde algumas das ideias importantes de Marx são apresentadas e discutidas. Para quem nada sabe de Marx além de lugares-comuns, esta biografia é um bom ponto de partida.
Marx era filho de um advogado judeu moderadamente progressista, que se converteu ao catolicismo quando a situação política e social a isso o aconselharam. Marx deveria herdar a profissão paterna e foi com esse intuito que foi enviado para a Universidade de Bona e de Berlim. Na altura, Hegel era o santo padroeiro do pensamento de língua alemã, o expoente máximo da filosofia e da cultura, a autoridade insofismável — Marx detestou-o. Pelos mesmos motivos que qualquer pessoa sensata hoje o detesta: o seu estilo grandiloquente, a mania de dizer coisas triviais de maneiras rebuscadas e com a aparência de profundidade, e o pretensiosismo. Marx chegou mesmo a escrever um poema em que escarnece de Hegel, e que hoje poderia ser usado para escarnecer de grande parte do pensamento alemão do século XX.
Apesar de detestar Hegel, Marx cedo começou a interessar-se pela filosofia política e pelos estudos económico-filosóficos. Para consternação do pai, acabou por abandonar o estudo do Direito e dedicou-se ao estudo da Filosofia. Para sua própria consternação, acabou por achar que a filosofia de Hegel era um marco importante da filosofia ocidental, sendo no entanto necessário trazê-la do céu das abstracções espirituais para a terra das preocupações sociais e políticas.
As relações de Marx com a família eram pouco íntegras. Nas suas cartas bajulava o pai e a mãe, mas fugia sistematicamente a visitar a família ou sequer a dar-lhe atenção. Este facto desagradável acerca de Marx tem, todavia, uma atenuante: a sua mãe era extremamente dominadora e o jovem Marx sentia, aparentemente, necessidade de se distanciar da sua protecção subjugadora.
Apesar de conduzir uma vida típica de estudante que gosta de pândegas, Marx apaixonou-se por Jenny, com quem viria a casar e a viver feliz toda a vida. Todavia, só depois de muita pressão por parte de Jenny, cuja família aristocrática era bastante mais rica do que a de Marx, é que ele se decidiu a casar, depois de muitos adiamentos. Aparentemente, Marx sempre colocou a sua vida de estudante sem responsabilidades acima de praticamente tudo e só a insistência de Jenny e o seu próprio amor por ela o terá levado a casar-se, não sem alguma relutância.
Quando Marx terminou o seu doutoramento o clima político tornara impossível que conseguisse ensinar numa Universidade de língua alemã. Apesar de o seu doutoramento versar sobre um tema aparentemente inócuo da filosofia grega antiga, as suas ideias progressistas eram já conhecidas, dadas as suas intervenções públicas em vários jornais, o que lhe arruinou uma possível vida académica. Hoje é irónico pensar que Marx não tenha conseguido ensinar numa Universidade; as iminências pardas que lhe recusaram a vida académica não são hoje mais do que pó que ninguém recorda, ao passo que as ideias e a influência de Marx dificilmente poderia ter sido maior. Uma lição para as más universidades do mundo inteiro — e para as portuguesas onde ainda hoje um pensador inovador jamais seria admitido como professor.
O jornalismo foi a carreira de recurso a que Marx deitou mão. Mas a sua paixão pelas ideias políticas não lhe permitiam um jornalismo confortável; de modo que todos os jornais que dirigiu eram mal vistos pelo poder político, acabando por agravar a sua situação pública.
A escrita de Marx era extremamente persuasiva. Baseada em argumentos por vezes bastante elaborados do ponto de vista lógico, Marx tinha no entanto uma maneira vívida de os apresentar. A sua retórica era calorosa, mas geralmente desastrosa, violando uma das regras fundamentais da escrita argumentativa: Marx era incapaz de escrever sem insultar uma parte substancial do seu próprio público. Na verdade, Marx tinha uma capacidade especial para fazer inimigos, tendo perdido grande parte do seu tempo a escrever diatribes contra personalidades pardas que só ficaram na história precisamente porque Marx escreveu contra elas.
Apesar da sua extraordinária capacidade para fazer inimigos, dado o seu gosto pelo conflito, Marx era capaz de ser tolerante com ideias que ele considerava erradas e disparatadas. Mal se mudou para Paris fez amizade com o poeta romântico Heinrich Heine (1797–1856), uma autoridade no mundo das letras, cujos poemas foram musicados por Schubert e Schumann. Marx tinha desde a juventude uma grande admiração por Heine e não deixou que a religiosidade hesitante de Heine, nem as suas ingenuidades políticas, destruíssem a sua admiração. Eleanor Marx viria a explicar que o seu pai pensava que os poetas eram “excêntricos e temos de permitir que possam ir pelos seus próprios caminhos; não devem ser avaliados pelos mesmos padrões com que avaliamos os homens comuns e nem mesmo pelos padrões com que avaliamos os homens extraordinários”.
Um dos primeiros sinais do rumo que haveria de conduzir Marx ao pensamento progressista mais radical do século XX foi o seu ateísmo. Marx rapidamente se apercebeu não apenas das falácias da religião, mas também do facto de estas serem usadas como instrumento político e social para fazer calar os mais pobres e os mais desfavorecidos: “O sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo”.
Uma das características dos escritos de Marx é a sua lógica, que desarma os leitores menos sofisticados, levando-os a cair no erro comum de pensar que só porque algo é logicamente coerente é verdadeiro. Isto, claro, é falso. A teoria de Ptolomeu é logicamente coerente mas falsa; a coerência não é garantia da verdade. Mas é um facto que qualquer teoria verdadeira tem de ser coerente.
Os escritos de Marx revelam uma boa capacidade de análise das situações políticas e sociais do seu tempo, mas uma capacidade inferencial limitada. Ora, a capacidade para traçar inferências correctas a partir dos dados da experiência ou a partir dos resultados da nossa avaliação de situações dadas é fundamental na construção de teorias. É talvez esta capacidade limitada para traçar inferências que explica o insucesso da doutrina marxista. Todavia, a ideia geral que hoje corre — nomeadamente, a de que o pensamento de Marx nada tem para nos ensinar — é curiosamente falsa.
A ideia de que as sociedades democráticas ocidentais vieram para ficar, paralisando assim a história, que nada mais teria para nos mostrar em termos políticos e sociais, parece condenada ao fracasso. E algumas das razões pelas quais essa ideia parece condenada ao fracasso prendem-se com aspectos já entrevistos por Marx. As sociedades democráticas actuais estão dominadas pelos meios de comunicação de massas, eleições que fazem lembrar concursos televisivos, multinacionais mais poderosas do que Estados, e uma irracionalidade notória na gestão da riqueza e dos recursos naturais. Mas ao contrário do que Marx parecia dizer, o capitalismo não produziu hordas de trabalhadores a viver perto dos níveis de pobreza absoluta. Pelo contrário, as classes médias expandiram-se imenso e hoje os trabalhadores conduzem automóveis caros, compram casas de férias, têm micro-ondas e televisões wide screen. Todavia, a verdade é que parte desta riqueza só é possível graças à exploração de países do terceiro mundo, à exploração irracional dos recursos naturais e ao aprofundamento de uma sociedade desumanizada e febrilmente consumista, egoísta e cega. Poderá Marx ter algo para nos ensinar hoje?
Essa é a opinião do seu mais recente biógrafo, Francis Wheen. Do seu ponto de vista, Marx tem sido mal interpretado. Não temos hordas de proletários nos limites da pobreza? Temos o terceiro mundo, que resulta da exploração capitalista. E temos hordas de desempregados. Todavia, Wheen vai longe de mais. As hordas de desempregados que temos hoje vivem provavelmente muito melhor do que os proletários do século XIX. E não é fácil ver se a fome no terceiro mundo é realmente um resultado da exploração capitalista ocidental, se um resultado da falta de solidariedade e sensibilidade dos próprios proletários do mundo desenvolvido. Por outro lado, os proletários têm cada vez menos importância na nossa sociedade, como força fundamental na produção de riqueza; é o sector terciário que hoje comanda a economia, muito mais do que o primário ou o secundário.
Todavia, há indícios que fazem pensar que os actuais modelos sociais e políticos têm de ser revistos. E talvez Marx constitua um guia importante. Como Wheen sublinha, o Capital, a obra de fundo de Marx, não é apenas um tratado económico, social e político; é também uma obra sobre a felicidade humana e sobre o facto de ela não se poder alcançar de um ponto de vista exclusivamente materialista. Isto pode parecer surpreendente para quem está habituado a encarar Marx como um paladino do materialismo. Mas há aqui uma confusão terminológica. Marx deplorava, de facto, a espiritualidade religiosa — por várias razões sociais e políticas, mas também porque este tipo de espiritualidade é um obstáculo à verdadeira espiritualidade. O que Marx deplorava era um mundo desumanizado pelas relações económicas entre as pessoas. E nesse aspecto o seu pensamento não podia ser mais actual.
Os padrões de vida nunca foram tão elevados para tantas pessoas como hoje em dia nos países desenvolvidos. Todavia, algo de essencial parece faltar. Este é um mundo regido pelo consumismo frívolo, pela mentira da publicidade e da política populista, pela destruição dos recursos naturais, pela comunicação desviante que faz uma multidão gritar num bar sem realmente conversar nem estabelecer relações sociais sólidas. É de duvidar que Marx tenha a receita para a solução destes problemas; é também duvidoso que ele tenha compreendido completamente os mecanismos que conduzem a uma sociedade desumanizada. Mas não é disparatado repensar as suas propostas e reanalisar as suas análises para procurar entrever um modelo de sociedade diferente do actual.
Um dos aspectos mais infelizes do pensamento de Marx foi o facto de ele achar que a chegada da Revolução seria incontornável. Ao longo da sua vida, ao assistir às diversas convulsões sociais que fizeram o seu tempo, Marx procurava incessantemente indícios de que a Revolução do Proletariado estaria prestes a acontecer. No entanto, ela nunca veio. Contudo, talvez uma outra forma de revolução tenha de acabar por acontecer, quando a pressão da falta de recursos ecológicos começar a fazer-se sentir. A ideia de que podemos continuar a viver indefinidamente tal como vivemos hoje é um puro disparate; se todas as pessoas do mundo consumissem a energia que as pessoas dos países desenvolvidos consomem, o planeta não resistiria durante muito tempo. Não se trata de saber se queremos ou não encontrar alternativas para o modelo de sociedade em que hoje vivemos; nós teremos de o fazer. Trata-se é de saber que modelo queremos.
Um dos aspectos curiosos desta biografia de Marx é o facto de nos mostrar uma característica incómoda da sua personalidade: o facto de ser anti-Rússia. Claro que estamos a falar da Rússia dos Czares; mas Marx pensava que se tratava de uma sociedade de tal forma atrasada que só pela pressão dos países desenvolvidos, como a Alemanha, a França ou a Inglaterra, poderia ser levada a alcançar a Revolução. É um lugar-comum dizer que as previsões de Marx falharam porque a tão almejada Revolução do Proletariado não ocorreu em países altamente industrializados e desenvolvidos, como ele previra, mas em países praticamente feudais, como a Rússia e a China. Mas esta é uma crítica injusta. Tanto o regime Chinês como o Russo, e as respectivas revoluções, pouco ou nada tiveram de marxistas, excepto alguns slogans mal compreendidos e retirados do contexto. Marx não desejava uma sociedade policial, sem liberdade de imprensa, nem liberdade política; pelo menos, é o que o seu biógrafo nos quer fazer crer.
Um dos aspectos mais tocantes da vida de Marx foi a sua longa amizade com Engels. Friedrich Engels (1820–95), alemão de nascimento, cedo se estabeleceu na Inglaterra. Tendo herdado um lucrativo negócio, enveredou desde cedo pelo activismo libertário. Era um homem de pensamento límpido e de grande autonomia intelectual. Inteligente, culto, dedicou-se de alma e coração às causas libertárias desde os seus tempos de estudante — e, com igual energia, a uma vida sexual prolixa. Quando conheceu Marx pessoalmente não gostou dele — não gostou da sua ironia que revelava arrogância, do modo como dizia mal de tudo e de todos. Todavia, acabou por reconhecer em Marx um pensamento original poderoso, pontuado por análises devastadoras e rigorosas da sociedade do seu tempo. Acabou por ser o maior amigo de Marx — confidente, financiador, co-autor e até autor fantasma, pois muitos dos artigos publicados em nome de Marx foram efectivamente escritos por Engels.
Um dos aspectos mais caricatos da vida pessoal de Marx, sobretudo quando se instalou em Londres, era o facto de conduzir a sua vida como um burguês respeitável. Como na realidade não era um burguês, apesar de ser uma pessoa respeitável, mas sim um homem sem recursos, andou literalmente toda a vida a fugir do homem do talho e de outros credores. Mas não prescindia de alugar as casas mais caras e de fazer férias nos locais mais caros, onde toda a “sociedade” se mostrava. Isto pode parecer hipócrita da parte de um homem que lutava contra a exploração a que a burguesia votava o proletariado e sem dúvida que há algo de frívolo nesta atitude; mas ela tem uma explicação. O seu amor à causa da libertação humana levou-o a nunca ter emprego certo e a passar por dificuldades financeiras e políticas constantes, tendo nomeadamente sido expulso do seu próprio país. Anos depois, Marx haveria de declarar que de nada se arrependia excepto de ter imposto à sua mulher e filhas uma vida de sacrifícios e dificuldades. Esta era uma das razões pela qual ele procurava ter uma vida tão semelhante quanto possível à de um burguês respeitável: para garantir às suas filhas um futuro — que naquela altura significava um bom casamento, o que implicava pertencer à “sociedade”.
A autoridade intelectual de Marx manifestou-se logo desde a sua juventude. Jenny, a sua mulher, tinha uma paixão adolescente e romântica pelo seu revolucionário idealista — e continuou a apoiá-lo durante toda a sua vida. Marx tinha o dom da palavra, o aspecto e o tom de quem tem autoridade e uma visão superior das coisas. Mesmo os seus mais contundentes inimigos lhe reconheciam estas qualidades. Todavia, era um homem cuja “violência” se esgotava nas palavras. Na verdade, era extremamente dedicado à sua família e amigos, sendo extremamente bem-humorado e sempre disposto a passar um serão ou uma tarde a brincar com os seus filhos, que ele adorava acima de tudo.
A vida pessoal de Marx foi tragicamente pontuada pela morte de vários dos seus filhos e, finalmente, da sua mulher — sempre vítimas de doença. Os seus descendentes não tiveram melhor sorte, acabando todos os seus filhos e netos por perecer tragicamente. O único descendente directo de Marx que morreu tranquilamente de velhice já no século XX foi o filho da criada de Marx — um filho ilegítimo de que talvez Marx tenha sido o pai, apesar de não haver certezas a esse respeito. Francis Wheen apresenta novos e persuasivos dados que apontam para a paternidade de Marx. Todavia, nem este deslize conjugal parece ter abalado a felicidade conjugal, não acarretando sequer que a criada em causa tenha sido despedida.
A vida e obra de Marx merecem uma reapreciação. A primeira, para demonstrar que Marx não era nem um Iluminado nem um Demónio, mas apenas um pensador como qualquer outro. A segunda, porque no estado de desertificação actual quanto a modelos alternativos de sociedade, as suas ideias podem muito bem revelar-se inspiradoras, indicando-nos um caminho a seguir — sem que isso se confunda com qualquer tipo de regime soviético, chinês ou cubano. Uma obra a não perder.