Para professores de filosofia, um dos esclarecimentos iniciais junto aos estudantes envolve a questão da utilidade da matéria. “Para quê a filosofia?” é uma das primeiras questões nas aulas, antes mesmo de questões sobre a sua natureza (“O que é?”) ou a sua metodologia (“Como se faz?”). Fora da realidade escolar, a interrogação sobre a própria filosofia é relativamente comum. Um exemplo disso é o perfil tradicional de Sócrates. O ateniense é comumente descrito como o “pai da filosofia”, mas afirma que só sabe que nada sabe. No que consistiria uma “área” do conhecimento que começa por negá-lo? Como pode uma prática que levanta questões dessa natureza ter utilidade? Qual seria o seu valor?
Nos debates sobre a sociedade, a política e a moral encontramos questões propícias a discussões e debates filosóficos. No entanto, com a crescente especialização do conhecimento, o enquadramento filosófico desses debates também diminui. Essa desconfiança sobre o alcance e a manutenção da filosofia chega até mesmo a alguns filósofos, como David Hume (que nos convida a “atirar ao fogo” o que não for ciência empírica ou matemática, o que significa, ironicamente, abandonar o seu próprio trabalho), Auguste Comte (proponente de um sistema teórico onde a ciência e o progresso científico são centrais, secundarizando a filosofia) e Ludwig Wittgenstein (para quem seria necessária uma “terapia linguística” para dissolver os ilusórios problemas da filosofia). No entanto, é com o desenvolvimento científico e o seu consequente impacto sobre as nossas vidas que a desconfiança sobre a relevância da filosofia aumenta. As práticas científicas, com seus laboratórios e descobertas, acabaram por excluir cada vez mais os filósofos e as filósofas das discussões relevantes. Isso inclui questões sobre a existência, a mente e o conhecimento, passando também por questões sociais, políticas e morais.
O posicionamento que defende que a ciência poderá resolver a maior parte dos problemas da realidade pode ser identificado como cientificismo. Tal posição defende que as grandes questões são respondidas pelas ciências da natureza — especificamente, a física, nas discussões mais gerais sobre a realidade, e a biologia, nas discussões sobre a humanidade. Um exemplo é o posicionamento do físico Stephen Hawking. Em Grand Design (publicado em 2010), escrito em conjunto com Leonard Mlodinow, Hawking questiona:
Como podemos compreender o mundo em que vivemos? Como é o universo? Qual a natureza da realidade? De onde vem tudo isto? O universo precisa de um criador? A maioria de nós não gasta em geral muito tempo com estas perguntas, mas quase todos pensamos nelas de vez em quando. Tradicionalmente, estas perguntas seriam para a filosofia, mas a filosofia morreu. Não conseguiu acompanhar os novos desenvolvimentos das ciências da natureza, em especial na física. Agora são os cientistas da natureza que, com as suas descobertas, estimulam a procura de conhecimento. (p. 5)
Outro exemplo é o biólogo Edward O. Wilson. Tratando especificamente da ética em Sociobiology: The New Synthesis (1975), considera que os filósofos e as filósofas não têm os meios para uma completa exploração e compreensão da maquinaria orgânica que compõe os humanos e que está envolvida nos juízos morais. Segundo Wilson, tal conhecimento é necessário para compreender melhor as nossas ações e as posições morais que assumimos — juntamente com a história evolutiva desse aparato. Nessa proposta, o “calcanhar de Aquiles” da posição genérica na investigação sobre os seres humanos é que essa forma de compreensão confia nos juízos do cérebro como se esse órgão fosse uma “caixa preta”. Por isso,
Cientistas e humanistas deveriam considerar conjuntamente a possibilidade de que chegou o momento de retirar temporariamente a ética das mãos dos filósofos e entregá-la aos biólogos. Até agora, o tema tem sido tratado por diversos conceitos estranhamente disjuntos. (p. 575)
Diferente do questionamento de jovens estudantes e da compreensão do senso comum, tais dúvidas sobre a natureza e a pertinência da filosofia são colocadas por cientistas, que defendem ter meios em suas áreas de investigação para resolver questões tradicionalmente lançadas pela filosofia, dispensando a sua necessidade. Identificadas pelo filósofo Mário Bunge (2002) como “moda de matar a filosofia”, a prática é amplificada por cientistas e popularizadores da ciência, como o físico Lawrence Krauss, o biólogo Francis Crick e o astrofísico Neil deGrasse Tyson.
Foi com o objetivo de discutir com essa “moda” que a filósofa americana Rebecca Goldstein escreveu Platão no Googleplex: Por que a filosofia não vai desaparecer. Publicado originalmente em 2014, o livro é um estimulante experimento mental para testar a pertinência da prática filosófica: se Platão estivesse vivo nos dias de hoje, as suas questões e propostas seriam ainda relevantes? Ou estariam obsoletas? O avanço científico, ou até mesmo as religiões, responderam às questões levantadas por Platão há mais de 2400 anos? Para avaliar tais possibilidades, Goldstein faz Platão visitar diversos locais e debater com interlocutores atuais, para abordar difíceis questões metafísicas, epistemológicas, linguísticas, morais e políticas, fazendo como Sócrates, que ia ao porto, à praça e à festas para discutir questões parecidas.
Goldstein já havia publicado seis livros de ficção (36 Argumentos para a Existência de Deus é o único publicado no Brasil) e dois estudos sobre história do pensamento (Betraying Spinoza: The Renegade Jew Who Gave Us Modernity e Incompletude: A Demonstração e o Paradoxo de Kurt Gödel). No exercício filosófico de Goldstein desenvolvido em Platão no Goopleplex, temos um livro com capítulos históricos e descritivos alternados com cenas dramáticas que colocam Platão em situações e debates atuais.
Já no prólogo, a autora argumenta que a relevância história de Platão foi “esculpir o próprio campo da filosofia”: terá sido o primeiro a estruturar a maioria das questões filosóficas. Mas porquê Platão? Porquê na Grécia? Esse é outro objetivo do livro: descrever um pouco do “contexto de descoberta” das questões filosóficas (um proveitoso estudo de cultura clássica) e avaliar a possibilidade de termos avançado na compreensão de tais questões, desde que foram organizadas pelos gregos. O argumento de Goldstein, recorrente na obra, é que o progresso filosófico é real, porém é difícil observá-lo uma vez que as ideias filosóficas são incorporadas aos nossos pontos de vista, onde “o que foi tortuosamente garantido por um argumento complexo se torna intuição amplamente compartilhada, tão óbvio que nos esquecemos de sua proveniência” (p. 22). Tais argumentos advêm da prática filosófica, por homens e mulheres que enfrentaram e tentaram dar respostas às duras questões que rondam nossa existência.
No primeiro Capítulo (α: os capítulos são organizados conforme o alfabeto grego), intitulado “Um homem entra numa sala de seminário”, Goldstein aborda a possibilidade de Platão estar num seminário contemporâneo de filosofia. Ali, o filósofo ateniense teria poucas dificuldades para envolver-se nas discussões, uma vez que as questões por ele colocadas ainda estão nas academias atuais. Têm mais possibilidades de respostas, mas permanecem. No entanto, surgem a todo momento atitudes de desdém de muitos cientistas em relação à filosofia, como ficou exemplificado. Goldstein identifica os detratores como “zombeteiros da filosofia”, e os descreve como preconceituosos e muitas vezes ignorantes em relação à base filosófica dos seus próprios campos científicos (muitas vezes platônica). Há também entre tais críticos a expectativa de que, com o passar do tempo, a ciência vai abranger todas as questões filosóficas, fazendo a filosofia desaparecer. Goldstein destaca a ingenuidade dessa posição, mostrando que o oferecimento de razões e questões, juntamente com a discussão sobre evidências sempre se manterá, mesmo que a ciência traga informações relevantes sobre a natureza da realidade.
Já no segundo capítulo (β), “Platão no Googleplex”, o filósofo participa de um debate realizado no complexo de edifícios que formam a sede da empresa Google, situada na cidade de Mountain View, na Califórnia. Ali irá divulgar o seu mais recente lançamento (A República), mas antes envolve-se num interessante debate com a sua agente literária e um programador sobre a relação entre verdade, beleza e moralidade, culminando num questionamento sobre como viver. Platão é duramente questionado por seus interlocutores, principalmente em relação à pretensa autoridade de dizer como devemos viver nossas vidas por parte de filósofos (e filósofas, já que Platão é alertado a todo momento sobre o sexismo da sua linguagem). Mas quem tem o conhecimento sobre como viver? De forma aporética, há o reconhecimento de que certas questões não podem ser facilmente respondidas.
Em “À sombra da Acrópole” (capítulo γ), temos um estudo inicial sobre as origens gregas da filosofia. Goldstein aborda diversos elementos da cultura clássica para explicar por que os gregos sistematizaram o que chamamos de filosofia, ainda que as reflexões existenciais também fossem colocadas por outras culturas da época. Em diálogo com a hipótese da Era Axial, desenvolvida pelo filósofo Karl Jaspers, a autora busca mostrar que as preocupações dos gregos sobre o que fazia uma vida humana ter valor, caso algo o fizesse, é que que tornou a prática filosófica tão comum naquela região. Juntamente com as questões naturalistas dos jônicos, as profundas reflexões existenciais da Era Axial deram origem a Platão e Sócrates. No entanto, este último foi muito longe no tratamento dessas questões.
No capítulo δ (quarto), temos o segundo debate protagonizado por Platão. Trata-se de uma discussão sobre “Como criar uma criança genial”, onde o filósofo dialoga com uma psicanalista e uma psicóloga do desenvolvimento, mediado por um provocador apresentador. Platão é mais uma vez atacado por suas propostas, agora por suas concepções sobre a natureza humana. Já sobre a educação, Platão argumenta sobre o papel do conhecimento na educação ideal, mas também é rechaçado, principalmente sobre a falta de espontaneidade da formação rígida que propõe, herdada por muitas das nossas concepções de educação. No final, o filósofo faz algumas ressalvas em relação à compreensão tradicional das suas hipóteses e reconhece os seus limites.
No capítulo quinto, “Não sei como amá-lo”, Goldstein aborda a configuração social e política da Atenas clássica a partir da descrição da relação entre o militar e político Alcibíades e Sócrates. De maneira geral, a autora desenvolve uma análise do papel da filosofia na formação dos indivíduos, principalmente da unidade entre metafísica, epistemologia, estética e ética (na busca “do bom, do belo e do verdadeiro”) conforme proposto por Platão.
Numa das participações mais interessantes de Platão, no sexto capítulo (“Abraços, Platão”), o filósofo ajuda a responder aos leitores de um jornal sobre questões morais cotidianas, principalmente em relação a dúvidas sobre relacionamentos afetivos. O “consultor especialista” tira dúvidas sobre a natureza do amor e sobre as confusões acerca desse conceito. Numa das respostas aos leitores, Platão ilustra as dificuldades do amor para os seres humanos e também esclarece a sua concepção de amor: “O tipo de amor que louvei tem foco mais em conhecimento do que em prazeres carnais, apesar de, não necessariamente, evitar os prazeres carnais”.
No sétimo capítulo, “Sócrates tem que morrer”, a autora apresenta um rico perfil de Sócrates, criticando a abordagem tradicional de seu julgamento — para muitos estudiosos, trata-se de uma reação de um poder estabelecido sobre críticas e questionamentos. Segundo Goldstein, a motivação para a sua execução foi que Sócrates apontou questões em aberto na compreensão que a sociedade ateniense da época tinha sobre si. Ao evidenciar tais problemas, Sócrates não poderia ser tolerado. Ao longo do capítulo, Goldstein aborda o último dia e as últimas horas de Sócrates, conforme são apresentados nos diálogos platônicos. Em suas últimas horas de vida, o Sócrates platônico levantou questões filosóficas com as quais lutamos até hoje: Deus pode nos dizer o que é bom? Como definir normas para a existência? O que podemos saber? Como devemos agir? O que é a alma? As respostas platônicas a tais questões estruturaram boa parte do nosso modo de vida, tornando-se parte da nossa mundividência. Segundo Goldstein, os zombeteiros da filosofia não conseguem ver isso justamente porque tais concepções já fazem parte de seu ponto de vista. No entanto, muitas foram e são questionadas por outras hipóteses filosóficas. Sócrates morre para podermos dar continuidade ao seu trabalho de levantamento de questões e possibilidades, juntamente com o oferecimento e a organização de razões e justificações. Novos problemas surgem a cada momento da experiência humana, e é cada vez mais necessário que nos engajemos no trabalho filosófico, para tentar explicar, organizar, dar sentido e lidar com a realidade. E muitas vezes, por nós mesmos, para lá da tradição e da autoridade. Goldstein faz uma provocação sobre os estudos em filosofia:
O amor à filosofia jamais deve ser resumido em amor por um filósofo em particular, porque nesse caso ele vai deteriorar, transformando-se em hermenêutica do dogma, tornando-se uma outra maneira, ainda que intricada, de os nossos pensamentos se fazerem irrefletidos e voltarmos para o interior da caverna, acorrentados com nossos colegas instruídos, olhando fixamente para projeções de PowerPoint em vez das sombras da caverna de Platão. (p. 356)
Platão volta à cena no oitavo capítulo, quando participa de um programa de entrevistas num canal de notícias da TV a cabo americano. Enfrentado por um apresentador beligerante, Platão responde a perguntas sobre a necessidade da filosofia e do propósito da existência. Tenta explicar a conexão entre a inteligibilidade da realidade e a matemática, mas não encontra muita receptividade. Por fim, sugere ao apresentador a dura tarefa de desafiar os seus próprios posicionamentos, para saber se somos capazes de oferecer razões para nossas crenças e ações. Muitas vezes perplexo, o apresentador reage com animosidade aos questionamentos platônicos e acaba por ser um retrato adequado de nosso tempo, onde os debates de qualquer natureza se encontram minados por agressividade e verborragia.
O nono capítulo “Deixe o Sol entrar”, apresenta o paradoxo originado pela pronunciada humildade cognitiva de Sócrates e a posição um tanto arrogante dos seus questionamentos. Ao longo do capítulo, Goldstein analisa a proposta platônica do conhecimento como “crença verdadeira justificada”, apontando como esse passo inicial foi fundamental para a construção de uma “Epistemologia do Sensato”, que vai além da revelação mística e da intuição pessoal. Os zombeteiros da filosofia são mais uma vez criticados por esquecerem as bases epistêmicas das suas investigações. A filosofia envolve na maior parte das vezes a exposição das nossas crenças ao tratamento de vários pontos de vista. Trata-se de uma esperança para combater os danos de nossa subjetividade, que serve somente a si e que muitas vezes simplesmente falha em organizar a realidade.
No último capítulo (“Platão no campo magnético”), temos a última participação do filósofo, que agora faz um exame num equipamento de imagem por ressonância magnética funcional num prestigiado laboratório de neurociências. Ali serão feitas imagens do cérebro de Platão enquanto responde a perguntas, para identificar padrões de atividade cerebral. Lidando com neurocientistas, Platão lança o desafio da “lacuna explicativa”, conforme Sócrates já havia colocado quando questionado sobre os motivos de não fugir da sua condenação. Trata-se de um desafio às concepções que buscam explicar a ação e o comportamento humano através da descrição da materialidade dos corpos e cérebros:
Se dissessem que sem esses ossos e esses tendões e todo o resto não seria capaz de fazer o que penso ser correto, seria verdadeiro. Mas dizer que é por causa deles que faço agora o que estou fazendo, e não por escolher o que é melhor — apesar de as minhas ações serem controladas pela minha mente — seria uma forma de expressão bastante descuidada e imprecisa. Como ser incapaz de distinguir entre a causa de uma coisa e a condição sem a qual não poderia ser uma causa. (Fédon, 98c–99b)
Mesmo que possamos conhecer todo o funcionamento mental/cerebral e os modos como estruturamos nossos raciocínios e nossa compreensão, haverá uma lacuna explicativa em relação aos motivos e razões que nos incitam a agir. É essa exposição constante de motivações e as cadeias de raciocínio envolvidas nas justificações que faz a prática identificada como filosofia não desaparecer. Poderíamos já levantar uma questão dessa natureza para o neurocientista: porquê conhecer o cérebro humano?
Nesse ponto, nem Goldstein nem seu Platão consideram uma possibilidade: de que filósofos e cientistas possam trabalhar juntos. Os cientistas podem contribuir para as investigações filosóficas ao oferecerem informações sobre o comportamento humano, por exemplo. Mesmo que esses cientistas jamais possam nos dizer o que fazer ou como agir, as investigações científicas poderiam desenvolver hipóteses sobre a nossa psicologia moral ou sobre o modo como nossa espécie se desenvolveu e que nos faz reagir de determinados modos em determinadas circunstâncias. Já os filósofos podem desenvolver questões ligadas à prática científica, contribuindo para a efetivação de uma metodologia científica mais apurada. No livro, o próprio Platão de Goldstein levanta questionamentos interessantes sobre a relação das imagens produzidas pelo escaneamento cerebral e o conteúdo dos pensamentos.
Voltando à obra, há no final dois apêndices, um sobre as fontes socráticas utilizadas e outro sobre dois discursos do político Péricles (líder ateniense no auge da Grécia Clássica), conforme constam em A História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Além de uma defesa da filosofia, o livro de Goldstein é um ótimo estudo com referências sobre a cultura clássica. A tradução brasileira é boa, apesar de alguns erros (como traduzir “A Companion to Socrates” como “Um companheiro para Sócrates” na p. 343).
O livro de Goldstein é muito rico e interessante em vários pontos de vista. Os zombeteiros da filosofia encontrarão em Platão no Googleplex uma esclarecedora resposta ao seu ceticismo e desdém pela filosofia. Estudantes e profissionais da filosofia encontrarão uma boa proposta sobre a questão do progresso em filosofia, juntamente com uma visão original sobre as origens gregas da filosofia e da ciência. Por fim, o público em geral vai encontrar uma boa resposta sobre por que a filosofia nunca desapareceu, nem desaparecerá.
José Costa Júnior