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Crítica
19 de Março de 2002   Estética

Meandros labirínticos

Maria João Cantinho
A Pomba Apunhalada: Proust e a Recherche
de Pietro Citati
Cotovia, 2000, 352 pp.

Citati presenteia-nos, mais uma vez, com um livro fascinante. É um autor de vastíssima obra, quer como autor literário ou como crítico literário. No nosso país encontravam-se apenas traduzidos dois dos seus livros: o romance “História Primeiro Feliz, Depois Dolorosa e Funesta” e o notável livro de ensaios de crítica literária cujo título é “A Luz da Noite”.

Raras vezes temos a felicidade de ler uma biografia tão apaixonante. Com um olhar profundamente conhecedor da obra de Proust e da sua vida, Citati conduz-nos através dos labirínticos meandros que constituem a densa complexidade da personalidade de Proust.

A cada momento, e à medida que vai desenrolando diante do leitor os acontecimentos que mais terão marcado o melancólico olhar de Proust, Citati procura encontrar uma intersecção entre os factos da sua vida e a obra extraordinária que foi Em Busca do Tempo Perdido. Desde os tempos da sua juventude até à sua morte, o autor tenta dar-nos a conhecer as pessoas e acontecimentos que tocaram Proust e, sobretudo, aqueles que ele terá amado profundamente, como foram o caso de Agostinelli, tão tragicamente morto num acidente de aviação, e Bertrand de Fénelon, vítima da primeira guerra mundial.

Fica-nos o retrato de um jovem ainda inseguro e frágil, constantemente dominado pelo medo da sua saúde (tendo desenvolvido a partir daí uma hipocondria), sofrendo de crises de asma violentas e duradouras e em que o jovem se mantinha desperto (a partir daí terá desenvolvido as insónias que irão assombrá-lo ao longo de toda a sua vida), com medo de, a qualquer momento, morrer asfixiado. A sua debilidade física cerceou-lhe desde cedo a vida por uma protecção doentia, relativamente a tudo o que o rodeava. Ficamos também a saber (apesar de a Recherche nos dar conta disso, desde as primeiras páginas) o modo como a relação edipiana que Proust manteve com a sua mãe o marcou de forma tão dramática, não tendo nunca conseguido abandonar esse fantasma, ao longo, não apenas da sua obra, como também da sua própria vida.

A Pomba Apunhalada é um apaixonante e apaixonado relato da vida de Proust, que sempre conviveu sempre mal com a realidade, permanentemente atravessado pela dor e pelo sentimento de perda, apaixonando-se frequentemente pelos seus jovens amigos, sofrendo a rejeição e a indiferença daqueles que amou. A sua homossexualidade, desde cedo assumida, é um dos traços que marcará a sua vida e a figura arquetípica do pederasta aparecerá transfigurada na personagem do perverso Barão de Charlus, na Recherche.

Citati mostra como desde o primeiro romance de Proust, Jean Santeuil, já se encontram presentes os procedimentos que, mais tarde, se irão desenvolver na sua obra-prima, assim como as figuras que nela se encontram, metamorfoseadas. Todavia, muitos anos seriam ainda necessários para que a Recherche se desenvolvesse. Foi preciso o derradeiro sacrifício da “prisão” (durante vinte anos) que Proust construiu para si próprio, fechado aos estímulos exteriores e isolado da sociedade, para que o fermento da sua experiência cedesse lugar à sua construção literária. Não deve ter sido fácil a uma pessoa mundana abdicar de modo tão radical do seu modo de vida, delirante e indisciplinado, para se dedicar ao projecto da Recherche. Durante toda a sua vida, Proust lutou contra todos os condicionalismos que lhe impediam a realização do trabalho, dormindo enquanto o mundo vivia, escrevendo à noite, e reflectindo sobre a sua experiência na sua escrita.

Esta obra deixa os leitores fascinados e os amantes de Proust reconhecidos. Pela minha parte, fico-lhe inteiramente grata pela admirável biografia do grande autor, deixando-nos entrever não a figura do dandy cínico e alegórico perante o qual a sociedade parisiense revelou a sua decrepitude e a decadência dos valores burgueses (sobretudo na figura do Barão de Charlus), mas um abalado pelas suas paixões e relações, aterrorizado pela doença e insónias que lhe devastaram a saúde que lhe restava, já de si débil. O uso de drogas (soníferos e cafeína em elevadíssimas doses) terá, ainda, levado Proust a um estado de esgotamento irreversível, desencadeando, na fase final da sua vida, um processo degenerativo de afasia, que lhe tornava os contactos sociais insuportáveis e penosos.

Há, no entanto, passagens no livro que são de extrema ironia e o autor soube atravessar o lado trágico da vida do autor, para encontrar uma intensa risibilidade, sobretudo na passagem em que descreve a época em que Proust, tendo reconhecido a sua instabilidade psicológica, decidiu dar entrada numa clínica de doenças psiquiátricas. Apenas lá ficou quinze dias, concluindo, no final dessa temporada, que o tratamento (que, afinal, consistia numa vida equilibrada e sã, pautada por horários normais relativamente à alimentação e ao sono) lhe fazia muito mal ao sistema nervoso.

Citati aborda não apenas a galeria de personagens mítico-fabulosos (a família Guermantes, por exemplo) que habitam a Recherche, como determina as origens desses personagens, a partir de uma reinterpretação da mitologia grega, reactualizada pelas próprias leituras de Proust (que era um grande admirador de Goethe, Dostoiewsky e de poetas simbolistas como Mallarmé e Baudelaire). Aborda ainda o tema, tão caro a Proust, da rememoração e da memória involuntária.

Uma obra emocionante e que nos toca profundamente.

Maria João Cantinho

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ISSN 1749-8457