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Crítica
19 de Março de 2002   Filosofia

Uma reflexão séria

Pedro Galvão
Renovar a Filosofia
de Hilary Putnam
Tradução de Ana André
Revisão científica de Maria José Figueiredo
Instituto Piaget, 1999, 275 pp.

Há filósofos analíticos, como Quine ou Popper, que em toda a sua longa obra nunca abdicaram das teses e argumentos que os tornaram influentes. De livro para livro, mais do que rever as suas posições, tentaram desenvolvê-las e aprofundá-las sistematicamente. Hilary Putnam, pelo contrário, conta-se entre os filósofos analíticos mais imprevisíveis. A sua obra não nos apresenta nada que se assemelhe a um sistema. No Especialista Instantâneo em Filosofia, um dos títulos da série bem humorada que acompanhou o “Público” há cerca de três anos, Jim Hankinson afirma mesmo que Putnam tem o “hábito encantador de abandonar completamente as suas ideias extremamente subtis e complexas precisamente quando os outros filósofos estavam a começar a pensar que, finalmente, conseguiam compreendê-las — mais ou menos de dez em dez anos”. Em “Renovar a Filosofia”, um livro de 92, a inquietação de Putnam quanto ao estado actual da filosofia continua bem viva da primeira à última página.

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Dúvidas?

Não é possível isolar uma grande tese que esteja subjacente a todo este livro. No entanto, embora Putnam examine os mais diversos assuntos ao longo de um percurso bastante acidentado, “Renovar a Filosofia” tem um objectivo fundamental claro: apresentar um “diagnóstico da actual situação da filosofia no seu conjunto” e sugerir orientações para uma “renovação” do pensamento filosófico. Dado este objectivo, não é surpreendente que Putnam se mostre mais interessado em apreciar criticamente as teorias de outros autores do que em desenvolver um programa de investigação próprio.

Nos primeiros capítulos, Putnam argumenta contra o cientismo que tem dominado um amplo sector da filosofia analítica, tentando “mostrar que a ciência actual não apresenta um esboço de uma 'concepção absoluta do mundo', o esboço de uma metafísica decisiva”. A crítica mais elaborada a esta tendência filosófica ocorre a meio do livro, no capítulo dedicado a Bernard Williams. De seguida, no capítulo “Irrealismo e Desconstrução”, Putnam prossegue a sua incursão pela filosofia actual num terreno bastante diferente. Desta vez, critica as fortes tendências “irrealistas” que estão presentes tanto na filosofia de Nelson Goodman como no desconstrucionismo de Derrida. Putnam declara que estes pensadores, embora não se deixem intimidar pela ciência, acabam por despejar o bebé com a água do banho, ou seja, acabam por negar que “tenhamos realmente uma relação cognitiva com a realidade extralinguística”. Quando o livro atinge as duzentas páginas, Putnam admite: “começo a ficar cansado de criticar os erros dos filósofos contemporâneos, analíticos e não analíticos”. Nos últimos três capítulos, procura então modelos inspiradores para uma renovação da filosofia. Isso leva-o a considerar, em primeiro lugar, a concepção de Wittgenstein sobre a crença religiosa, e, em segundo lugar, a justificação de Dewey para a democracia. Na leitura atenta de ambos os filósofos, Putnam tenta discernir “uma possibilidade de reflexão filosófica sobre a nossa vida e a linguagem que não seja frivolamente céptica nem absurdamente metafísica, nem fantasticamente paracientífica nem fantasticamente política, mas que seja uma reflexão séria e fundamentalmente honesta do tipo mais difícil”.

Com “Renovar a Filosofia”, o leitor pode experimentar de uma forma incisiva o assombro suscitado pela complexidade das grandes questões filosóficas, mas corre sérios riscos de se perder, compreensivelmente, na quantidade esmagadora de referências aos mais diversos autores. A tradução está bastante cuidada, mas, infelizmente, esta edição priva o leitor português do índice analítico. Seja como for, não se pode negar que a intensa actividade editorial do Instituto Piaget tem produzido alguns bons resultados. “A Redescoberta da Mente”, de John Searle, foi um desses bons resultados, mas o livro acabou por passar praticamente despercebido. Seria uma pena se o mesmo sucedesse agora a este livro de Putnam.

Pedro Galvão
Recensão publicada no “Público”.
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ISSN 1749-8457