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Crítica
15 de Janeiro de 2007   Filosofia política

O que vem depois do fim de uma civilização

José Manuel Fernandes
The Fall of Rome And the End of Civilization
de Bryan Ward-Perkins
Oxford: Oxford University Press, 2006, 256 pp.

Desde o clássico de Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, publicado no final do século XVIII, que as razões e as consequências da queda do Império Romano do Ocidente têm fascinado e dividido os historiadores. Durante muito tempo — quase todo o tempo — as divergências centraram-se nas razões da queda de um império que durara cinco séculos e ainda possuía uma considerável força militar, convergindo os historiadores na visão de que a substituição do domínio romano pelo domínio dos diferentes povos “bárbaros” correspondera a um recuo civilizacional de que a Europa só se recomporia mil anos depois, com o Renascimento. Mas como não há frente em que o “politicamente correcto” não ataque, também nos últimos anos alguns académicos, tanto na Europa como nos Estados Unidos, têm vindo a alimentar a tese de que a “queda” não foi mais do que uma “transição” e que a Europa da Alta Idade Média conservara as qualidades que lhe permitiriam hoje associar-se num só “clube”, a União Europeia.

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Dúvidas?

Na verdade, como escreve o arqueólogo inglês Bryan Ward-Perkins neste seu A Queda de Roma e o Fim da Civilização, este conceito — o de “fim de uma civilização” — “passou profundamente de moda”. Tudo porque “”civilização” é uma palavra que as pessoas agora preferem não utilizar”, substituindo-a pelo mais anódino conceito de “cultura”, o qual não permite com tanta facilidade fazer distinções entre diferentes modos de vida: as “culturas” tendem a ter o mesmo valor (ou a ser vistas como tendo o mesmo valor), enquanto a “civilização” é certamente superior à barbárie. Ora “civilização” é mais do que “alta cultura”, monumentos sofisticados e uma elite cheia de sabedoria: numa “civilização”, ou numa sociedade civilizada, vive-se por regra melhor, cria-se mais riqueza, permite-se o acesso de mais gente a bens de consumo e a bens culturais, e por aí adiante. Se o declínio de uma “civilização” se pode notar, por exemplo, na lenta perda de qualidade da arte que produz (algo que um visitante atento pode notar, se visitar o Museu Romano de Mérida e comparar as obras mais antigas com as obras do final do Império, bem menos sofisticadas), também arrasta quase sempre consigo uma degradação da qualidade de vida do mais comum dos cidadãos. Este ângulo, por vezes menorizado, foi o que Bryan Ward-Perkins escolheu, até porque, como arqueólogo, estudou os vestígios que permitem perceber como se vivia no Império Romano e como se passou a viver depois de este ser varrido pelas hordas de invasores vindos do Norte e das estepes do Leste.

Ora, o que é que ele sublinha? Coisa simples mas significativas. Por exemplo: enquanto Roma dominou a Europa Ocidental e o Mediterrâneo, era possível a um modesto camponês comer num prato de cerâmica com uma qualidade que nem as mais faustosas cortes da Idade Média conheceriam séculos mais tarde. Ou que mesmo um humilde vendedor de perfumes de Pompeia sabia ler e escrever, podendo utilizar essa faculdade para se gabar, numa inscrição que deixou nas paredes da cidade destruída pelo fogo do Vesúvio, da sua última cópula com uma prostituta, e ler e escrever era uma faculdade a que séculos depois apenas tinha acesso a pequeníssima minoria de monges que habitavam os conventos mais eruditos. Ou ainda que se podia beber na Palestina vinho produzido na Ibéria, ou que as conservas de peixe do estuário do Sado chegavam à mesa de famílias da classe média espalhadas pela imensidão do Império. Não eram só os templos que eram bem construídos: as habitações dos mais humildes utilizavam durante o tempo dos imperadores romanos tijolos e telhas de melhor qualidade do que os palácios dos senhores feudais.

Naturalmente que todos os muitos achados arqueológicos a que o autor recorre para sustentar a sua tese do “recuo civilizacional” são apenas sinais de um mundo onde antes as mercadorias circulavam, onde se cunhava moeda, onde se tinham desenvolvido métodos sofisticados para melhorar a produção agrícola ou onde se lia e escrevia sem ter de pertencer a uma pequena elite, sinais que contrastam com o outro mundo que lhe sucedeu, onde nada disso era possível. Por isso, a queda do Império não foi uma mera “transformação”, como certos estudiosos referem, mas uma verdadeira catástrofe. Não surpreende por isso que Ward-Perkins se indigne genuinamente com teses como a do historiador canadiano Walter Goffart, para quem aquilo “a que chamamos Queda do Império Romano do Ocidente foi uma experiência imaginativa que saiu um pouco fora de controlo”. Não: “O fim do Ocidente romano foi testemunha de horrores e perturbações de um tipo que sinceramente espero nunca ter de viver; e destruiu uma civilização complexa, atirando os habitantes do Ocidente de volta a um padrão de vida típico da época pré-histórica”.

Esta queda, que se produziu, na sua opinião, muito mais depressa e de forma mais inesperada e abrupta do que a previsível, se se tivesse assistido apenas a um lento declínio — e neste ponto o autor diverge da tese clássica de Gibbon —, acabaria por ser precipitada por erros políticos, pela degenerescência ética do Estado e dos seus líderes e, sobretudo, pelo colapso da estrutura económica que permitia a Roma manter os seus gigantescos exércitos. Na verdade, quando estes deixaram de proteger as populações contra as incursões dos bárbaros, estas deixaram de sentir que valia a pena pagar impostos; sem impostos não se podia pagar aos legionários e com menos legionários ainda havia menos protecção. Entrou-se assim numa espiral viciosa que provocaria o rápido desaparecimento do Império do Ocidente, algo que surpreendeu os próprios cidadãos de Roma. Daí o seu alerta: “Os romanos, antes da queda, estavam tão certos como nós estamos hoje de que o seu mundo continuaria para sempre substancialmente inalterado. Estavam errados. Seria errado repetirmos a sua complacência”.

Depois de Jared Diamond nos ter descrito em Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed a forma como a civilização que ergueu as estátuas gigantes da Ilha da Páscoa se “suicidou” ao destruir os recursos naturais que a sustentavam, Ward-Perkins mostra-nos como outra civilização, esta muito mais poderosa, também desapareceu quase de repente e sem aviso. Ambas as narrativas não deixam dúvidas: não só a História não segue sempre um percurso linear de progresso, como o que vem depois de uma grande civilização é sempre pior, mesmo para os que antes se diziam seus escravos.

José Manuel Fernandes
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ISSN 1749-8457