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Crítica
19 de Março de 2002   Filosofia

Três tipos de conhecimento

Orlando Tambosi
Saber de e Saber que: Alicerces da Racionalidade
de Leônidas Hegenberg
Petrópolis, Vozes, 2002

Se tivesse “apenas” contribuído para introduzir a obra do filósofo Karl Popper (1902–1994) no Brasil, como o fez, nos anos 70, traduzindo alguns de seus escritos, o professor Leônidas Hegenberg já teria feito muito. E o fez numa época em que os jovens costumavam rejeitar Popper por simples preconceito ideológico (Popper, o liberal, o “cientificista”, o “positivista”), encantando-se com os rodeios dialéticos de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros tantos críticos da civilização que acrescentaram seu tempero ao caldo das concepções antimodernas e anticientíficas contemporâneas.

Em 1973, o próprio Hegenberg lançaria um livro pioneiro, que contou com sucessivas edições: quem estudou metodologia científica não desconhece Explicações Científicas (EPU-Edusp), uma das primeiras obras introdutórias à filosofia da ciência. Vieram depois muitas traduções, conferências e outros livros, como Doença: Um Estudo Filosófico (Fiocruz, 1997) e um Dicionário de Lógica (EPU, 1995), entre os mais recentes, seguidos agora de Saber de e Saber que.

Valendo-se da teoria do conhecimento, da lógica, da filosofia da linguagem e da filosofia da ciência, Hegenberg traça nesta última obra, em linguagem clara e acessível, uma autêntica história da racionalidade. O “saber de” corresponde ao primeiro ajuste intelectual do ser humano com o ambiente. Trata-se de um ajuste ainda rudimentar, em que a pessoa “sabe das coisas” que a rodeiam, conhecendo o que se habituou a ver, tocar, cheirar, ouvir e degustar. Esse ajuste exigirá posteriormente um “saber como” agir por meio da razão, para atingir os propósitos que o ser humano se estabelece: ele constrói “um esquema preliminar de atuação (daí em diante fartamente utilizado), retratado na fórmula “Se (tais ou quais condições), então (tais ou quais ações)””.

O ajuste intelectual do ser humano ao contorno requer ainda outro passo, o “saber que”, que lhe permite alcançar o conhecimento por meio de inferências (um esquema do tipo “Sei que___, porque…”). O curioso, nesse processo, é que ele parece não depender de locais e datas. A forma de inferir, diz Hegenberg, “é uma só, independentemente do local em que vivam e do momento em que os seres humanos inferem”. Isto significa, em poucas palavras, que “há uma (e mesma) “lógica” para os seres humanos, pelo menos enquanto elementos de uma espécie biológica”.

Os três tipos de conhecimento andam juntos, acompanhando-nos ao longo de toda a vida, numa aliança dos sentidos com a razão. Quando entramos em contato com novos objetos (antes ignorados) — resume Hegenberg —, aumentamos o saber de. “Nosso contato com as coisas se orienta, freqüentemente, em função de alguma ação a executar. Por isso, ganha realce, de imediato (pelo menos nesses casos), o saber como. É por essa razão que sabemos, hoje, como curar certas doenças, como implantar órgãos, como vencer a ação da gravidade […]. Invariavelmente, para compreender o novo, para saber como agir diante de objetos (e artefatos) antes desconhecidos, empregamos amplas teorias. O novo se enquadra em sistemas de referência e, assim, adquire sentido para nossa vida, ou em nossa vida. Agimos sobre o novo e aprendemos como agir para melhor manipular esse novo, em benefício da humanidade. […] Usando capacidades de que fomos dotados, na condição de humanos, estamos aptos a pensar, raciocinar, inferir. Em resumo, estamos capacitados a utilizar a lógica. Chegamos, com auxílio da lógica, ao saber que: atingimos o conhecimento”.

Nesse passeio, Hegenberg analisa conceitos como objetividade e realidade, teorias e fatos, verdade e crenças, construindo uma sintética história da lógica, de Aristóteles à lógica simbólica. Reserva algumas críticas ao “pensamento obscuro” tão ao gosto dos dialéticos e às lógicas não-clássicas que, como a chamada “lógica difusa”, rejeitam o princípio de não-contradição, segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. É o caso dos hegelianos (e também dos marxistas), que afirmam a existência da contradição tanto nas coisas quanto na linguagem. Ora, não há coisas contraditórias. Tem razão o filósofo: “coisas existem, simplesmente. Ocupam lugar no espaço. Têm (ou deixam de ter) certos atributos. Despertam (ou não) nosso interesse e nossa cobiça. O qualificativo “contraditória” não se aplica a uma coisa: só se aplica ao que dela venhamos a dizer”.

Por tudo isso, Saber de e Saber que é particularmente útil a estudantes e professores que se preocupam com a pesquisa científica, mas agradará também aqueles que, por simples curiosidade, desejarem conhecer alguns fundamentos da racionalidade. As lições do mestre Hegenberg são didáticas e estimulantes, apesar de tratarem de um tema difícil.

Orlando Tambosi

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ISSN 1749-8457