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Crítica
19 de Março de 2002   Filosofia

O mito do subjetivo

Waldomiro José da Silva Filho
Subjective, Intersubjective, Objective
de Donald Davidson
Oxford: Oxford University Press, 2001, 237 pp.

Acaba de ser publicado o livro Subjective, Intersubjective, Objective que reúne textos “epistemológicos” de Donald Davidson escritos entre as décadas de oitenta e noventa do século passado. Este livro guarda a prosa direta e elegante de Davidson e, com certeza, terá seu lugar ao lado do Ensaio Acerca do Entendimento Humano de Locke, do Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano de Berkeley, da Investigação sobre o Entendimento Humano de Hume e das Questões Concernentes a certas Faculdades Reivindicadas pelo Homem de Peirce — obras inscritas na tradição que desenhou o horizonte dos problemas e dificuldades filosóficas concernentes à nossa capacidade de estabelecer garantias racionais para justificar nossas crenças sobre o mundo, sobre os acontecimentos e sobre as outras mentes e que arrancaram o “eu” (e a autoconsciência intuitiva do eu) do trono de porto seguro das certezas plenamente firmadas.

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Dúvidas?

Tenho insisto em muitas oportunidades que ao pragmatismo e à filosofia pós-analítica não podemos associar apenas uma posição negativa em relação à epistemologia (como promete a parte final d'A Filosofia e o Espelho da Natureza e Conseqüências do Pragmatismo de Rorty). Sinto-me reconfortado agora.

Com este livro, dividido em três partes (“Subjective”, “Intersubjective” e “Objective”), Davidson ataca diretamente os princípios do fundacionalismo epistemológico — as idéias de uma interioridade fundante, de uma mente como instância privada e de “objetos subjetivos da mente” — e do relativismo — e constrói uma perspectiva interpretacionista e externista em epistemologia (postulando uma conexão necessária entre o mundo e os nossos pensamentos que pode ser descrita numa interpretação e conversação entre falantes). Isto faz que, entre outras coisas, a separação que muitos comentadores fazem na obra de Davidson entre, de um lado, sua Filosofia da Mente e, do outro, sua Filosofia da Linguagem, dissolva-se.

1. Para Davidson, depois de Descartes, a filosofia enquanto epistemologia ergueu um edifício sobre o terreno firme do “conhecimento da primeira pessoa” (cf. “First Person Authority”, “The Myth of the Subjective” e “Epistemology Externalized”). Esta epistemologia prescreveu uma conduta para o entendimento que começa naquilo que é plenamente certo e evidente, o conhecimento de nossas próprias sensações e pensamentos privados que constituiriam “crenças básicas” que não necessitam do apoio de outras crenças porque são a própria evidência. Tais crenças básicas são crenças que se referem à natureza dos nossos próprios estados sensoriais, da nossa experiência imediata, donde da sensação, percepção, dado, experiência, sense data (cf. “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”). Firmadas estas crenças básicas de partida, o entendimento, em seguida, estaria habilitado para o conhecimento de um mundo exterior objetivo, que constituiriam “crenças de segunda ordem” que necessitariam, obrigatoriamente, do apoio das primeiras crenças: uma crença que não seja acerca dos nossos próprios estados sensoriais e nossa experiência imediata deve, se tem de ser “fundada”, sê-lo por recurso às crenças básicas. Por fim, como está no “Epistemology Externalized” de 1990, segundo a tradição cartesiana, o espírito poderia também, mas com uma dificuldade suplementar, esforçar-se no sentido de conhecer outros espíritos (a dificuldade suplementar é o fato de que não podemos ter experiência, mas apenas supor que há outras mentes como a minha).

Nestes termos, o fundacionalismo e o ceticismo epistemológicos, no fundo, acabam por expressar as extremidades diametralmente opostas de um mesmo dogma: o espírito privado representa o mundo e pode fazê-lo com verdade ou com falsidade — o que significa dizer, há momentos em que o espírito representa o mundo tal qual e há momentos em que simplesmente não o representa. Um dos temas que acompanham a epistemologia — e que ludibriou inclusive insuspeitos como Quine e Dummett — tem sido: como é que as crenças acerca dos nossos presentes estados sensoriais não precisam de apoio de outras crenças, ao passo que todas as outras crenças requerem esse apoio? A resposta dada pelos fundacionalistas é que as nossas crenças acerca dos sense data e da experiência presente são infalíveis. É por causa disto que elas podem desempenhar o papel que lhes foi atribuído nesta forma de empirismo; as crenças acerca dos nossos estados sensoriais podem ser a nossa base — podem se agüentar de pé e apoiar o resto — porque são infalíveis: nossas crenças acerca de um mundo externo, acerca da ciência, acerca do passado e de um futuro, acerca de outras mentes, etc., podem ser justificadas recorrendo àquele alicerce.

Aquilo que Inquiries into Truth and Interpretation de 1984 nos ensinou é que não podemos aceitar que a filosofia seja uma epistemologia sustentada sobre o dogma do empirismo de que conhecer “é representar cuidadosamente o que é exterior à mente” e “compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente se torna apta a construir tais representações”. A filosofia, outrossim, deveria visar destruir o “mito do dado” e o “mito do subjetivo”, pois a tentativa de estabelecer um vínculo lógico e epistêmico entre “dado”, “sensação” e atitudes proposicionais (como acontecera com Quine e Dummett) leva na direção daquilo que Davidson chama de uma “bad epistemology” (“The Myth of the Subjective”), uma “epistemologia no espelho da natureza”. A “correct epistemology”, ao contrário, é uma epistemologia no espelho do significado (“Thought and Talk” contido no Inquiries), posto que a teoria do significado, ao responder à pergunta sobre como se determina que uma frase é verdadeira, auxilia a epistemologia na sua tarefa mais embaraçante. Ora, se, para tal teoria do significado, interpretar corretamente uma frase e conhecer o seu significado equivale a saber como se poderia reconhecer sua verdade, logo, a compreensão do significado implica o mesmo problema que a epistemologia, até aqui, não consegue resolver. O inquérito, em teoria do significado, sobre como a justificação de frases (a determinação do significado e da sua verdade) não pode se encontrar fora do sistema de frases corre paralelo ao inquérito filosófico mais geral sobre como não podemos justificar uma crença sem recorrer a outras crenças.

Do lado oposto ao fundacionalismo, o caminho trilhado pelo pragmatismo parece rumar numa direção sedutora: “Mentes há muitas, mas a natureza é uma. Cada um de nós ocupa sua própria posição no mundo e tem sua própria perspectiva sobre ele. É fácil ir da desta idéia óbvia para a noção confusa de relativismo conceptual” (cf. “The Myth of the Subjective”). A crítica ao relativismo que já fora bastante severa no famoso “On the very Idea of a Conceptual Scheme” de 1974, torna-se ainda mais aguda: Davidson sabe que não pode se aceitar que a crítica ao “mito da interioridade” e sua semântica solipsista não ofereça nada além da convenção e do acordo. Mesmo porque, para ele, a convenção e o acordo não é algo que regula a linguagem, mas é algo que é permitido pela linguagem. No texto “The Second Person”, originalmente apresentado no congresso sobre Wittgenstein em Paris (“Jusqu'où va le caractère public d'une langue?”), quando comenta aspectos da interpretação céptica de Kripke sobre os paradoxos do argumento da “linguagem privada”, Davidson estabelece o tom de uma reserva ao entusiasmo em relação ao teor relativista de fundo antropológico em teoria do conhecimento e teoria do significado que se inspira na idéia de que o significado e a verdade são efeitos de uma regra ou convenção pública arbitrária. Depois de pôr sob suspeição a solução normal (e acrítica) que se apoia apenas na idéia de “seguir uma regra”, Davidson se pergunta se a simples noção de convenção, costume e instituição encerra o problema do significado e, por sua vez, o de verdade e realidade. Talvez “ter uma regra”, “seguir uma regra”, “esquema conceptual” e “aprender uma linguagem” não expliquem plenamente o conhecimento e a verdade. Talvez, ainda, dizer apenas que a realidade é construída simbólica, convencional e lingüisticamente não seja satisfatório.

Neste sentido, ele extrai importantes conseqüências filosóficas das suas reflexões sobre filosofia da mente (como podemos ler em Essays on Actions and Events de 1980), superando um certo cognitivismo reducionista que tem domado a philosophy of mind. A epistemologia, realmente, pode se beneficiar das conquistas da filosofia da mente exatamente porque o objeto central desta última é um estado particular em que a mente pode se encontrar: a crença tomada como verdadeira e justificada. A epistemologia deve se dedicar à reflexão sobre a natureza de nossas das crenças sobre o mundo e outras mentes.

2. Destaco ainda que na segunda parte do livro, “Intersubjective”, Davidson agudiza temas como “interpretação radical” e a crítica ao convencionalismo lingüístico que aparecem em Inquiries into Truth and Interpretation de 1984, principalmente no programático “Comunicação e Convenção”. A idéia de uma “triangulação” entre mente, mundo e outro (outra mente) não faz qualquer referência essencial às noções de regra e convenção plenamente compartilhadas como condição de possibilidade do significado e do conhecimento do mundo. Em “The Second Person” Davidson defende que falar uma língua não depende do fato de que dois ou mais falantes falem do mesmo modo (compartilhando ponto a ponto uma regra gramatical); requer-se, outrossim, que o falante tenha a atitude intencional de solicitar ser interpretado pelo ouvinte e, do mesmo modo, o ouvinte suponha que, realmente, o falante faz isso. Algo que é trivial na conversa entre homens e mulheres concretos deve tornar-se num problema central na filosofia: a intenção do falante de ser interpretado corretamente.

No texto intitulado “Rational Animals”, Davidson escreve que para compreender a linguagem de uma outra pessoa devemos ser capazes de conceber ou pensar aquilo que ela concebe ou pensa — o que nos permite partilhar seu mundo. Ele salienta, entrementes, que não somos obrigados a concordar com todos os seus pontos; no entanto, mesmo para estarmos em desacordo somos obrigados a pensar a mesma proposição e, deste modo, a conceber, com os mesmos critérios de verdade, a mesma coisa. A comunicação na linguagem impõe que o falante tenha um conceito de mundo e imagine que o outro falante também tenha um conceito correto do mundo. Imaginar que o outro não tem um conceito do mundo (que nos seus traços mais gerais é verdadeiro como o nosso) é, de um lado, compreender que a linguagem e a ação do outro são irracionais e, ao mesmo tempo, pensar na impossibilidade de um mundo concebivelmente intersubjetivo (e “o conceito de um mundo intersubjetivo é o conceito de um mundo objetivo, um mundo sobre o qual cada comunicante pode ter crenças”). A racionalidade é um traço social e apenas os falantes a possuem. Para além de uma imagem fundacionalista da razão e essencialista da linguagem, podemos apenas atribuir racionalidade às atitudes proposicionais dos falantes.

3. Por fim, saliento que a parte final do livro, “Objective”, constitui aquilo que posso chamar de sua pars construens: ali se encontra, principalmente em “Epistemology Externalized” e “Three Varieties of Knowledge” um discurso que reorganiza a reflexão hodierna sobre epistemologia e teoria do conhecimento. O “externismo triangular” indica dois temas: em primeiro lugar, o ambiente físico e social têm uma função essencial na determinação dos estados intencionais, pois aquilo que organiza as intenções de um falante não está determinado pelo que está na sua cabeça (“o significado não está na cabeça”, escreveu Putnam) e dependem da história natural das interações que o falante mantém com o ambiente físico e social. Em segundo lugar, como em Peirce, para Davidson a “consciência” que o sujeito tem de seus estados mentais não goza de nenhuma propriedade epistêmica e a epistemologia deve firmar uma nova prioridade, substituindo a centralidade do conhecimento da primeira pessoa pelo nexo causal sujeito-mundo e a normatividade social. A tese básica do “externismo triangular” é que entre o sujeito singular, os outros indivíduos e o mundo externo se dá uma interconexão epistêmica originária.

4. Tudo isso é, para mim, revelador e inspirador para pesquisas em epistemologia. Mas, obviamente, não apenas nesta direção. Creio que aqui se reabrem as fendas do pensamento moderno, pois a conexão entre “nossas crenças” e “nossas práticas” (e a reflexão sobre como justificamos nossas crenças) se revestem de novos elementos. Por isso sugiro que este livro de Davidson seja lido ao lado de Locke, Hume, Berkeley e Peirce, mas também, é claro, Kant.

A Oxford University Press anuncia para breve mais dois volumes de textos e ensaios de Davidson: Problems of Rationality que reunirá textos como “Judging Interpersonal Values” “Objectivity and Practical Reason”, “Could There be a Theory of Rationality?”, “The Unified Theory of Thought and Action”, “Paradoxes of Irrationality” e “Who is Fooled?”; e Truth, Language and History com textos surpreendentes como “Truth Rehabilitated”, “The Folly of Trying to Define Truth” (que em breve serão publicados no Brasil pela DP&A/Discurso Editorial), “A Nice Derangement of Epitaphs” e “The Third Man”) Neste último volume aqueles que acusam a Filosofia Analítica e Davidson em particular de ignorarem a tradição filosófica e os grandes temas metafísicos ficarão surpresos: Davidson escreve textos belos e profundos sobre Platão, Sócrates, Aristóteles e Gadamer (autores que atravessam toda sua obra) com destaque para “Plato’s Philosopher”, “The Socratic Concept of Truth”, “Dialectic and Dialogue”, “Gadamer and Plato’s Philebus” e “Method and Metaphysics”.

Espero que em breve possamos disponibilizar esta obra grandiosa para a língua portuguesa. Davidson, com seus 84 anos continua um espírito inquieto e criativo: espero, sinceramente, que os estudantes de língua portuguesa possam se beneficiar dos instrumentos da sua filosofia.

Waldomiro José da Silva Filho

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ISSN 1749-8457