Feche os olhos e pegue num objeto à sua frente. Abra-os agora e tente identificar qual foi o objeto em que pegou. Fácil, não? Para adultos humanos a transferência perceptual da modalidade visual para a tátil é natural. E é também fácil para bebês humanos, que já com apenas um mês de vida conseguem selecionar a imagem de uma chupeta depois de a terem chupado às cegas. Os chimpanzés também conseguem identificar facilmente aquilo que viram com aquilo que sentiram; mesmo quando tocam num objeto com uma forma estranha que nunca viram, conseguem selecionar o objeto entre muitos outros logo que abrem os olhos. Os golfinhos, por outro lado, parecem não usar a sua modalidade tátil para reconhecer objetos (embora seja bastante importante para as suas interações sociais), e, por isso, não deveríamos esperar que tenham tal facilidade com esse tipo de cruzamento das modalidades perceptuais. Deveríamos então concluir que os golfinhos são desprovidos de tal transposição entre modalidades perceptuais. Isso seria apressado, contudo! Os golfinhos diferem dos humanos e dos chimpanzés de maneiras interessantes. Eles usam a ecolocalização, um tipo de sonar, para perceber o mundo físico na água (a ecolocalização dos golfinhos não funciona no ar). Os cientistas descobriram que ao ecolocalizar uma forma estranha escondida por trás de uma tela imersa na água, os golfinhos são capazes de selecionar aquele objeto em meio a outros logo que o vejam no ar (Pack e Herman 1995).
Os animais claramente pensam e sentem — afinal, nós somos animais e pensamos e sentimos. Os membros da espécie humana têm mentes humanas; e se os membros de outras espécies tiverem mentes, terão mentes específicas de suas espécies. A despeito do título deste livro, não há tal coisa como a mente animal. Diferentes espécies animais possuem diferentes características biológicas, ambientais, sociais e morfológicas, e todas essas diferenças podem ter impacto cognitivo. Polvos com neurônios em seus tentáculos poderiam ter mentes que são mais distribuídas e corporificadas do que as mentes de alguns outros animais (embora o “cérebro intestinal” — os neurônios do estômago — pudesse levar alguns a fazer inferências similares sobre a mente humana). A capacidade dos golfinhos de ecolocalizar outros golfinhos pode lhes permitir observar os estados físicos dos outros, incluindo seus estados cerebrais. Isso levou um filósofo a avançar a hipótese de que grupos de golfinhos compartilham uma mente grupal (White 2007). É famoso o argumento de Thomas Nagel de que não podemos saber como é ser como um morcego, pois os humanos são bastante diferentes dos morcegos, tanto física quanto socialmente, e o melhor que podemos fazer é imaginar como seria para nós ser parecido com um morcego (Nagel 1974).
E embora os animais sejam claramente diferentes uns dos outros em alguns aspectos, há outros em que eles podem ser iguais. A socializabilidade é outra diferença entre espécies animais que podem impactar seus processos cognitivos. Animais que vivem em grupos sociais complexos têm mundos complexos, é comum pensar, e para se inteirar desses mundos complexos as suas capacidades cognitivas têm de ter evoluído de forma que os permita lidar com tais complexidades. Considere as comunidades de babuínos. Muitas espécies de babuínos vivem em bandos com uma hierarquia amplamente estável para as fêmeas e mais flexível para a dominação dos machos. Porque essas hierarquias são lineares, qualquer mudança na dominância entre dois indivíduos afetará o status de outros indivíduos no grupo; e quando há uma reversão na ordem hierárquica das fêmeas, os parentes do babuíno que perdeu seu status são também rebaixados fazendo com que toda a linhagem seja revista. Para que se inteirem da fluidez das mudanças no status social e entendam quem pode fazer o que dado sua posição atual, os babuínos têm de lidar com certa quantidade de informação, e isso sugere que eles precisam de uma cognição mais complexa da que precisariam caso suas vidas sociais não fossem estruturadas dessa forma.
Outro modo de investigar as similaridades e diferenças entre espécies é examinar o desenvolvimento individual. Podemos examinar as similaridades e diferenças entre o desenvolvimento inicial de humanos e outros símios e descobrir, por exemplo, que os bebês chimpanzés se empenham na imitação neonatal assim como os bebês humanos. Se os humanos e os chimpanzés têm o mesmo tipo de comportamento social no início da infância, ainda que posteriormente divirjam no comportamento social, podemos examinar os estágios ocorrentes do desenvolvimento social a fim de determinar o que poderia causar as diferenças que observamos nos adultos.
Além do mais, embora haja diferenças entre espécies, diferenças entre grupos de espécies e diferenças entre os estágios do desenvolvimento, pode haver também diferenças entre indivíduos. Assim como humanos adultos variam em personalidade, preferências e capacidades cognitivas, poderíamos esperar haver diferenças individuais entre adultos de outras espécies animais.
Portanto, embora não devêssemos esperar que houvesse tal coisa como a mente animal, haverá decerto vários tipos de mentes que são curiosamente similares em certos aspectos e curiosamente diferentes umas das outras.
Antes de começarmos a fazer perguntas sobre a natureza das mentes animais, porém, precisamos saber que outras espécies têm mentes; e para isso precisamos saber o que é uma mente. Num sentido, todos sabemos o que se quer dizer por “mente”. Quando voltamos nossa atenção para as nossas mentes, aquilo que talvez seja mais evidente é o aspecto fenomênico — a experiência da mente consciente que podemos sentir (cócegas), degustar (salgado), desejar (afeição) e experienciar (quietude). Se deixarmos de lado os aspectos fenomênicos da mente — o sentimento de ter uma mente — podemos ver que a mente nos permite fazer coisas tais como lembrar, analisar, formar associações, pensar, se maravilhar, aprender, perceber, decidir e agir. Uma característica fantástica da mente humana é que ela permite um fluxo de pensamento que respeita razões. Mesmo depois de um longo período sonhando acordado, podemos refazer a rota dos nossos pensamentos para entender como fomos de um lugar a outro.
Mas em outro sentido, a mente nos é misteriosa. A mente não parece ser como uma árvore ou uma montanha, algo cuja existência podemos verificar através dos sentidos. Podemos nos perguntar se as pessoas à nossa volta de fato têm mentes ou se elas agem exatamente como agem. Ademais, nem sempre temos experiência consciente dos nossos processos sensoriais ou de raciocínio. Dirigimos no automático, escovamos os dentes, lavamos a louça e muitos outros comportamentos habituais sem sempre ter qualquer sensação de estar fazendo aquilo. Somos influenciados por estímulos dos quais não estamos cientes, assim como nas imagens subliminares em propagandas. E às vezes estamos errados sobre as causas de nossos próprios comportamentos. Cometemos erros. Essas são também coisas que as nossas mentes fazem. A mente é racional e irracional, consciente e inconsciente, lembra e esquece.
A variedade de propriedades que associamos à mente faz com que seja difícil defini-la, algo que deveríamos esperar dado a nossa compreensão da mente ser constantemente calibrada com aquilo que observamos ela fazer. Um modo de clarificar as nossas perguntas sobre a mente é restringir o foco a certos elementos. É isso que fazem muitos cientistas cognitivos em suas investigações sobre a mente — o estudo da cognição. A cognição é geralmente entendida fazendo-se referência aos processos que estão entre os nossos inputs sensoriais e o comportamento resultante, incluindo coisas como a memória, a solução de problemas, a navegação, o raciocínio e o processamento da linguagem. Os processos cognitivos que tornam possível a você recobrir memórias de infância, reconhecer o rosto de seu pai e julgar que duas linhas têm o mesmo comprimento são coisas que podem ser descritas em termos de conhecimento ou conceitos, partes funcionais ou processos neurais no organismo. Os processos cognitivos causam o comportamento que o organismo tem dados certos estímulos que o organismo percebe.
A cognição é geralmente descrita como permitindo a aprendizagem e o comportamento flexível. Ter comportamento flexível significa que você pode fazer coisas diferentes em situações similares, e aprender significa que você pode mudar as suas respostas dada a experiência. Alguns comportamentos animais carecem do tipo de flexibilidade necessária à aprendizagem. O ganso bravo, por exemplo, coloca um ovo de volta no ninho o alcançando com o pescoço e o rolando em direção ao ninho com seu bico. Se você colocar uma bola de golfe, uma bola de maçaneta ou um ovo muito maior na borda do ninho, ele também rolaria esses itens para dentro do seu ninho.
Como nos mostraram os etólogos Nikolaas Tinbergen e Konrad Lorenz, o comportamento do ganso bravo de rolar o ovo para o ninho é um padrão fixo de ação para essa espécie: um programa motor que é iniciado por algo que se assemelha bastante a um ovo. O ganso não irá protegê-lo mas recuperá-lo. Ele não tem um conceito de ovo, ou o conhecimento de que ovos precisam ser mantidos a salvo em seu ninho, ou que gansinhos eclodirão do ovo. Ele não pode aprender a discriminar entre bolas de maçanetas e ovos. Tudo o que ele tem é uma resposta invariante a um estímulo de algo como um ovo (Tinbergen 1951).
Muito do comportamento humano, por outro lado, é bastante flexível e mediado por conceitos e pelo conhecimento que nos permite entender a situação. Podemos aprender como responder perguntas apropriadas na sala de aula, aprendemos como usar palavras e como amarrar cadarços. Podemos também decidir não amarrar os cadarços ou usar as palavras incorretamente a fim de obter uma resposta diferente.
A ideia de que os aspectos cognitivos da mente permitem o aprendizado e o comportamento flexível nos oferece uma resposta à primeira questão: podemos examinar a mente nas entidades que parecem aprender e se comportar de maneira flexível. Se outras entidades aprendem e agem de maneira flexível, então elas também são objetos apropriados para a pesquisa sobre a cognição.
Voltemo-nos agora à segunda questão: qual é a justificação para pensarmos que outros animais têm mentes? O interesse na questão das mentes animais tem uma longa história na tradição filosófica ocidental, e diversas figuras negaram algum aspecto da mentalidade aos animais. Tomás de Aquino pensava que nesse planeta apenas os humanos fossem seres pensantes e racionais capazes de tomar decisões e escolher suas próprias ações. (O reino de Deus e dos anjos é outra história). Immanuel Kant também negou racionalidade aos animais devido a incapacidade deles considerarem suas razões para a ação e de desejarem suas ações. Kant, porém, pensava que os animais tivessem desejos (outra propriedade mental), e que eles fossem guiados cegamente por seus desejos. Sem a racionalidade, porém, os animais carecem da capacidade de dar um passo atrás e considerar se seus desejos devem ser satisfeitos, ou como melhor satisfazê-los.
Mas talvez seja René Descartes, em seu Discurso do Método, quem mais fez para minar a perspectiva de que animais tivessem mentes pensantes e racionais, argumentando que apenas usuários de uma linguagem pensam:
Pois é uma coisa bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo. E isso não acontece porque lhes faltem órgãos, pois vemos que as pegas e os papagaios podem proferir palavras assim como nós, e todavia não podem falar como nós, isto é, testemunhando que pensam o que dizem; ao passo que os homens que, tendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns sinais, pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles, disponha de lazer para aprender a sua língua. E isso não testemunha apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão. Pois vemos que é preciso muito pouco para saber falar; e, posto que se nota desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, que fossem os mais perfeitos de sua espécie, não se igualassem nisso a uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza inteiramente diferente da nossa. (Descartes 1637: 69)
Para Descartes, os animais são máquinas sem almas como os brinquedos autômatos de sua época — figuras robóticas realistas que eram capazes de tocar música, dançar e até mesmo de fazer desenhos. Descartes diz que os movimentos animais são o resultado de mecanismos simples e não causados pelos tipos de operações mentais que resultam no comportamento humano. Porque Descartes pensa que a capacidade de pensar não é parte do mundo material, qualquer comportamento que possa ser explicado mecanicamente não é resultado da mente racional. Ele argumenta que toda ação animal pode ser explicada mecanicamente, mas que os humanos, que se empenham em comportamento realmente novo e encontram soluções perspicazes a problemas que enfrentam, são demasiado complexos para tais explicações. E ainda mais importante, ao usar a linguagem os humanos demonstram uma riqueza de comportamento para o qual nenhuma explicação puramente mecanicista é suficiente.
Os céticos quanto às mentes animais não passaram sem críticas. Voltaire pensava que Descartes estivesse errado sobre a complexidade do comportamento animal:
Então esse pardalzinho que constrói o ninho em semicírculo quando o prende a uma parede, que o constrói num quarto de círculo quando o faz num ângulo e em círculo num ramo de árvore — faz tudo de igual modo? O cão de caça que ensinaste a obedecer-te durante meses não estará a saber mais ao cabo desse período do que sabia no início das lições? O canário a quem tentas ensinar uma melodia repete-a no mesmo instante, ou não levarás um certo tempo a fazer-lha decorar? E não reparaste como se engana, com frequência, e vai corrigindo depois? (Voltaire 1764: 102–103)
Voltaire enfatiza que outros animais também se empenham em comportamento racional: eles aprendem, resolvem problemas e corrigem a si próprios. Voltaire não está negando a afirmação de Descartes de que esses tipos de comportamentos sejam necessários para se ter uma mente, mas, ao invés, está contestando as afirmações empíricas de Descartes sobre o que os animais efetivamente fazem. Vemos aqui dois tipos de debates sobre mentes animais — debates sobre as exigências para se ter uma mente, e debates sobre se algumas espécies cumprem essas exigências.
Assim como Voltaire, David Hume desdenhava da ideia de que animais não tivessem mentes. Escreveu ele:
Muito próximo do ridículo de negar uma verdade evidente está o demasiado esforço para a defender; e nenhuma verdade me parece mais evidente do que a afirmação de que os animais são dotados de pensamento e razão tal como os homens. Os argumentos neste caso são tão óbvios que não podem escapar ao mais estúpido e ignorante. (Hume 1738: 218)
Ao contrário de Voltaire, Hume não pensava que fosse necessário oferecer um argumento a favor da afirmação de que os animais têm mentes, uma vez que todos já deveriam saber disso! Dado o número de filósofos que negam a mente animal, Hume poderia estar errado sobre esse último ponto. Voltemo-nos então para os três argumentos filosóficos que foram oferecidos a favor da existência das mentes animais a fim de ver se a nossa suposição inicial sobre Rico ter uma mente é justificada.
O problema das outras mentes animais é um subconjunto do problema geral das outras mentes. Quando se faz a pergunta sobre as mentes humanas, o raciocínio é como se segue: as nossas mentes são privadas e não podem ser diretamente observadas por outros, de modo que não temos acesso a quaisquer outras mentes que não sejam as nossas; a nossa crença de que outros humanos têm mentes é o resultado de um processo inferencial. Inferimos a existência de outras mentes ao invés de vê-las diretamente, e o cético pergunta se essa inferência é legítima. Uma solução ao problema das outras mentes humanas requer uma justificação desse processo inferencial.
A despeito do desafio cético, do ponto de vista desenvolvimental não há qualquer problema em ver os outros como criaturas dotadas de mente. Não nascemos num mundo solipsista pensando que somos a única criatura com uma mente (a despeito do notório egoísmo das crianças). Antes, os bebês humanos nascem na intersubjetividade e parecem entender suas próprias mentes junto com a mente de suas mães e seus cuidadores. Se as crianças têm um problema, é o problema oposto ao problema do ceticismo. As crianças novas são quase-animistas que veem mentes e responsabilidades por todo o mundo. Uma criança vê agência na roseira “má” que a espeta e no bichinho de pelúcia “legal” que ela abraça. Assim, a tarefa da criança é reduzir a quantidade de indivíduos na classe de criaturas com mentes. Para justificar a intuição da criança de que há outras mentes, temos de responder ao problema filosófico.
Uma primeira tentativa de resolver o problema das outras mentes pode tomar a forma de um estilo de argumento conhecido como o argumento por analogia. O argumento por analogia a favor de outras mentes segue este esquema:
Esse não é um argumento dedutivamente válido e sim um argumento indutivo bastante fraco, em que a classe de referência consiste em apenas uma entidade (a saber, eu próprio). O argumento pode ser tornado mais forte com um argumento complementar a favor de uma propriedade de referência M. Por exemplo, uma de minhas propriedades é a de que sou fêmea. Mas usar fêmea como M é extremamente problemático, pois não há qualquer boa razão para pensar que o gênero ou o sexo tenha algo a ver com ter uma mente. Na formulação de John Stuart Mill, o argumento por analogia a favor de outras mentes depende de uma teoria de fundo que identifica como propriedade de referência M o elo causal entre comportamento e mente. O grosso da argumentação, então, passa de um argumento indutivo a favor de outras mentes para um argumento em defesa de alguma teoria sobre a natureza da mente. Dada a fraqueza da inferência indutiva e a falta de uma propriedade de referência amplamente aceita, é justo dizer que o argumento por analogia a favor das mentes humanas não é muito bom. E quanto ao argumento por analogia a favor de mentes animais?
Quando nos voltamos ao problema tradicional das outras mentes ao qual Colin Allen e Marc Bekoff (1997) chamam de o problema das outras espécies de mente, John Searle chama de o problema das mentes de outros animais (1994) e Jesse Prinz (2005) chama de o problema de quem, o argumento por analogia é mais forte num sentido mas mais fraco noutro. Considere a seguinte formulação do argumento:
Embora esse argumento seja mais forte do que o argumento a favor de outras mentes, no sentido de que é um argumento com cerca de seis bilhões de entidades em sua classe de referência, a sua força repousa no argumento complementar sobre o que deveria contar como as propriedades de referência M. As propriedades de referência M poderiam incluir uma capacidade geral como a habilidade de resolver problemas, uma capacidade específica de usar a linguagem, um tipo de comportamento como o de se esconder de predadores, ou mesmo um tipo de atividade cerebral.
Esse argumento também parece supor que há um conjunto de propriedades M, essenciais à mentalidade, que talvez não devêssemos não nos comprometer nesse estágio da investigação. Afinal, ao investigar as mentes de outras espécies não queremos excluir já de partida a afirmação de que há diferentes tipos de mentes na natureza, e a diferença poderia ser tal a ponto de não haver uma propriedade essencial à mentalidade. Ao invés de haver alguma condição necessária e suficiente para a mentalidade, as criaturas que possuem mentes talvez se assemelhem umas às outras de várias formas, assim como os membros de uma família compartilham algumas propriedades físicas mas não outras, não havendo qualquer propriedade que seja compartilhada por todos.
Se houvesse alguma propriedade ou conjunto de propriedades necessárias para se ter uma mente, haveria uma problema adicional de como identificá-las. Afinal, identificar uma propriedade de referência para o argumento sobre animais pode ser ainda mais difícil do que identificar uma propriedade para o argumento sobre humanos, pois algumas espécies são muito diferentes da nossa. O polvo, por exemplo, tem um sistema nervoso distribuído que consiste de um pequeno cérebro central acrescido de neurônios em suas pernas. Os golfinhos usam a ecolocalização para “ver” objetos através de ecos recebidos de pulsos sonoros enviados aos objetos. O argumento por analogia foca-se na similaridade, mas para a maioria das outras espécies nós encontraremos muito mais diferenças do que similaridades, o que coloca em xeque a força da analogia. Há uma distância analógica muito maior entre humanos e outras espécies do que entre você e outros humanos. E a distância analógica aumenta à medida que as espécies cujas histórias de vida, ambiente, histórias evolutivas e estruturas sociais são bastante diferentes das nossas. Os animais que vivem em águas profundas, voam, percebem através da ecolocalização, vivem apenas poucas horas, são solitários ou eussocias (i.e., formam grupos sociais com uma divisão de trabalho reprodutivo e cuidado cooperativo da prole, como as colônias de abelhas com castas de operárias estéreis) são tão diferentes dos humanos que a analogia se torna perigosamente fraca. Assim, o argumento por analogia a favor de outras mentes animais por si só não fornece boa justificação para a crença em mentes animais. Em combinação, porém, com outros estilos de argumento, os argumentos analógicos podem ajudar a oferecer boa razão para a aceitação das mentes animais.
Vários especialistas têm apelado à parcimônia evolutiva a fim de reforçar o argumento por analogia. Por si só, o mero fato de que compartilhamos propriedades M com um animal não é suficiente para estabelecer que o animal possua uma mente. Mas a propriedade M compartilhada pode ser suficiente para a atribuição de mente quando apoiada por suposições de fundo relevantes. O primatólogo Frans de Waal e o filósofo Elliott Sober têm, cada um deles, argumentado que a teoria da evolução fornece exatamente tais suposições adequadas. Em particular, eles argumentam que o fato de compartilharmos uma propriedade M com um animal é suficiente para estabelecer que o animal (provavelmente) tem uma mente se supusermos: a) que compartilhamos um ancestral com o animal e b) que deveríamos preferir a explicação mais parcimoniosa da emergência da propriedade M (de Waal 1999; Sober 2005).
A explicação mais parcimoniosa é aquela que exige as menores mudanças na árvore filogenética que mapeia a relação evolutiva entre as espécies. Em suma, é a explicação mais simples e mais evolutivamente provável. Se compartilhamos um ancestral comum próximo com um animal com quem também compartilhamos a propriedade M, então a explicação mais parcimoniosa é a de que o animal possui uma mente. A explicação alternativa — que embora a nossa mentalidade cause a nossa propriedade M, uma mecanismo não-mental inteiramente diferente causa a mesma propriedade M no animal — requer muito mais complexidade da árvore filogenética para que seja provável.
Embora essa solução evolutiva possa contornar os problemas levantados pelas diferenças entre as espécies animais, ela levanta novamente questões sobre o que deveríamos contar como sendo a propriedade de referência M. Não é claro, na falta de uma defesa completa de uma teoria da natureza da mente, quais propriedades dos humanos (se alguma) estão ligadas à existência da mente humana. A propriedade mais óbvia — a capacidade plena da linguagem — é inútil porque, tanto quanto sabemos, é uma propriedade que não compartilhamos com qualquer outra espécie. E ainda pior, alguns humanos que consideramos dotados de mente, como bebês, carecem de habilidades linguísticas. Outros problemas surgem quando determinamos o que conta como um ancestral comum próximo e o quão próximo é próximo o bastante.
Outra maneira de se argumentar a favor das mentes animais é a inferência a favor da melhor explicação. Esse tipo de argumento pode ser visto como uma ilustração do método científico, de acordo com o qual o cientista identifica um fenômeno particular e então, através de um processo de geração e avaliação de hipóteses, chega à explicação mais plausível. As crianças que começam a eliminar roseiras e bichinhos de pelúcia da classe de criaturas com mente o fazem por volta da mesma época em que começam a entender os poderes causais da mente, quando começam a ver que alguns comportamentos são intencionais ou dotados de propósitos e outros são não-intencionais ou acidentais. Esse argumento a favor das mentes animais baseia-se na ideia de que os tipos de comportamentos que os animais exibem são melhores explicados como sendo causados por fenômenos cognitivos do que por regras determinísticas simples que regem o movimento dos objetos. E embora possamos descobrir que regras determinísticas expliquem os fenômenos mentais, tais regras teriam de ser muito mais sofisticadas do que as regras que regem o movimento evidente daquelas coisas que não possuem mente.
A inferência a favor da melhor explicação para as mentes animais tem a seguinte forma:
Embora a inferência a favor da melhor explicação não sofra das dificuldades do argumento analógico com o tamanho da classe de referência e a proximidade da analogia, ela requer suporte ulterior. Nesse caso, alguma justificação tem de ser dada à premissa 2. Certo comportamento é melhor explicado em termos de alguma propriedade mental se essa propriedade mental fornece mais poder preditivo e explicativo do que outras possíveis explicações. Isto é, assumindo-se a explicação, pode-se fazer melhores previsões sobre o que o animal fará em circunstâncias futuras; além disso, a explicação é coerente com outras coisas que sabemos sobre espécies e propriedades mentais. Por exemplo, poderíamos usar aquilo que sabemos sobre a história evolutiva da espécie e defender a premissa 2 apelando ao argumento da parcimônia evolutiva discutido na seção anterior.
Dado que aquilo que queremos dizer por “melhor” é relativo a outras hipóteses rivais, o argumento certamente será mais forte quando hipóteses alternativas plausíveis tiverem sido formuladas. Se a premissa 2 for apoiada apenas porque as explicações candidatas são que a) o animal tem uma mente ou b) o animal é um robô controlado por aliens, então desacreditar a hipótese b dará pouco apoio à hipótese a. Ao usar uma inferência a favor da melhor explicação para justificar a existência das mentes animais, ou alguma propriedade mental particular, temos de ser caridosos e considerar e rejeitar todas as explicações candidatas possíveis antes de estabelecer a hipótese mentalista.
Note que esse argumento não pode ser usado para demonstrar de uma só vez que todas as outras espécies têm mentes, mas apenas caso a caso. Por exemplo, o argumento a favor da mente dos golfinhos poderia se referir ao comportamento de usar esponjas para proteger o rostro (a parte bicuda de sua face) enquanto forrageiam à procura de peixes no fundo do oceano, mas não faríamos referência a esse comportamento para apoiar a afirmação de que formigas possuem mentes, uma vez que as formigas não usam esponjas como ferramentas. Mas também não podemos usar a falta de evidência de que as formigas usam ferramentas como evidência de que elas não possuem mentes. Primeiro porque poderíamos descobrir que algumas espécies de formigas usam ferramentas. Mas mais importante, o uso de ferramentas provavelmente não é uma condição necessária para se ter uma mente; há outros comportamentos que demonstram ser a flexibilidade melhor explicada pela possessão de uma mente. O mesmo vale para qualquer outro comportamento. Assim, por exemplo, poderíamos tentar argumentar que as formigas não possuem mente porque seu comportamento é bastante inflexível, como demonstrado pela inclinação de carregarem formigas vivas para o cemitério das formigas depois de cientistas terem borrifado suas companheiras de ninho com ácido oleico, que é tipicamente excretado por formigas mortas. A flexibilidade, no entanto, pode ser encontrada em outros contextos. Uma pesquisa recente sobre a espécie de formiga Ectatomma ruidum sugere uma estrutura social complexa e flexível. As formigas despendem muito de seu tempo no ninho fazendo grooming consigo mesmas e umas com as outras, assim como os macacos em geral. Elas também alimentam umas às outras com comida líquida que serve como o único alimento para formigas adultas:
As forrageiras impregnadas de gotículas retornavam imediatamente ao ninho de tubo de vidro e, após alguns segundos de comportamento excitatório, ou ficavam paradas ou caminhavam vagarosamente ao redor do ninho com [suas] mandíbulas abertas e as partes bucais retraídas. Operárias sem gotículas geralmente se aproximavam delas por alguns segundos e gentilmente tocavam com as pontas das antenas no clípeo, nas mandíbulas e no labium da carregadeira. A carregadeira então abria suas mandíbulas completamente e retraia suas antenas, enquanto a solicitante abria suas mandíbulas, liberava suas parte bucais e começava a beber. Durante a alimentação, a solicitante continuava a tocar o doador com as antenas, que permanecia imóvel. A solicitante geralmente também descansava uma ou ambas as pernas frontais na cabeça ou nas mandíbulas da doadora. (Pratt 1989: 327).
As Ectatomma são também sensíveis aos níveis de comida estocada, e quando os suprimentos estão em baixa ou meramente suficientes, as formigas vizinhas são atacadas pelas sentinelas quando tentam adentrar ao ninho. Por outro lado, quando os suprimentos de comida são abundantes, as sentinelas deixam que as formigas vizinhas entrem e trocas de comida como aquelas observadas com as companheiras de ninho podem ocorrer. Esse tipo de comportamento é tentador numa inferência a favor da melhor explicação para as mentes das formigas no caso de não podermos encontrar outras explicações que melhor deem conta do comportamento observado (como a existência de heurísticas simples que esclareçam que o comportamento das formigas é de fato inflexível).
Há um problema potencial com todos os argumentos a favor das mentes animais visto até agora, mas que talvez seja melhor visto na inferência a favor da melhor explicação para as mentes animais. O problema tem a ver com a natureza da mente. No que estamos exatamente interessados quando perguntamos se formigas têm mentes? Queremos saber se elas raciocinam — a questão central na rejeição das mentes animais por porte de Descartes? Queremos saber se elas usam a memória, tomam decisões ou se têm emoções? Dado que a noção de mente é ainda vaga, ao invés de argumentos a favor das mentes animais, deveríamos procurar por argumentos a favor de capacidades cognitivas mais específicas.
Por exemplo, podemos usar a inferência a favor da melhor explicação para continuar investigando questões sobre a aprendizagem de palavras por parte de Rico (lembre-se que Rico é o cachorro que sabe o nome de 200 objetos diferentes). Poderíamos formular duas hipóteses sobre o comportamento de Rico: a) ele entende que as palavras referem a objetos (e por isso tem algum aspecto da linguagem humana); ou b) foi treinado para buscar objetos particulares quando ouve um sinal vocal particular (e aprende novos comandos via um mecanismo geral de aprendizagem por exclusão). Para distinguir entre essas duas hipóteses precisamos saber mais sobre aquilo que Rico e outros border collies conseguem fazer. Precisamos saber o quão flexível é o comportamento de Rico. Como sugeriu o psicólogo Paul Bloom, podemos perguntar se Rico pode aprender palavras para objetos que não podem ser buscados (tal como “hidrante”) (Bloom 2004). Será que ele consegue responder apropriadamente a pedidos de não trazer um objeto (e.g., ordens como “Rico, pegue qualquer coisa menos a meia”)?
Os psicólogos que testaram Rico ofereceram evidência anedótica de que ele conhece a palavra enquanto palavra e não enquanto comando devido a ele poder fazer coisas como pôr o objeto requerido numa caixa ou trazer o objeto requerido a uma pessoa diferente — ele pode fazer coisas com palavras como “meia” e “bola” além de trazer objetos à pessoa que fez o pedido. Os críticos, contudo, apontam que evidência anedótica não é suficiente — é preciso experimentos. (Teremos mais a dizer sobre o papel da evidência anedótica no próximo capítulo).
Embora Rico tenha morrido antes dos pesquisadores poderem ter respondido esse desafio, outro grupo de psicólogos ensinou um border collie chamado Chaser a responder a um milhar de objetos nomeados. Esses psicólogos queriam examinar as questões de Bloom e por isso também o ensinaram diferentes verbos. Além de “pegar”, ensinaram a Chaser “pata” (tocar com a pata) e “nariz” (tocar com o nariz). Depois de ensinados esses verbos diferentes, a capacidade de Chaser de entender cada palavra foi formalmente testada. Foram-lhe dados comandos compostos que ela nunca ouvira antes, como “pegue o carneiro” (segurá-lo na boca), “toque o carneiro” (tocar com a pata) e “nariz no carneiro” (tocar com o nariz).1 Chaser executou perfeitamente esses testes (Pilley e Reid 2011). Esse estudo formal da aprendizagem de palavras do border collie demonstra que as hipóteses alternativas por Bloom — de que os cães entendem substantivos como comandos para pegar objetos — não é a melhor explicação para o comportamento. Os psicólogos trabalhando com Chaser consideraram a sua performance nesse e outros testes como melhor explicada pela hipótese de que ela, assim como crianças humanas, aprende as palavras e sabe ao que elas se referem. A conclusão de que Chaser entende que as palavras referem, contudo, está ainda sujeita a investigação ulterior, particularmente quando investigamos o que está envolvido em saber ao que as palavras se referem.
Os argumentos da percepção direta (também conhecidos como argumentos não-inferenciais) a favor das mentes animais se baseiam na ideia de que quando interagimos com uma criatura dotada de mente, simplesmente vemos que a criatura tem uma mente. Não há necessidade de primeiro observar para depois inferir que há uma mente. Em vez disso, apenas vemos a mente nos outros. Embora esse tipo de argumento reflita a abordagem desenvolvimental de como as crianças humanas entendem outras mentes, também reflete uma perspectiva diferente sobre a natureza das mentes. Enquanto que nos argumentos por analogia e na inferência a favor da melhor explicação as mentes sejam consideradas entidades inobserváveis que têm de ser inferidas, nas perspectivas não-inferenciais nós percebemos diretamente a mentalidade. Tanto John Searle (1994) quanto Dale Jamieson (1998) sugerem que o problema das outras mentes é um vestígio do injustificado dualismo cartesiano, e que tão logo que rejeitemos o dualismo mente/corpo, dissolvemos o problema das outras mentes. Searle argumenta que a existência das mentes animais é um fato fundacional ou básico sobre o mundo que não requer justificação, e que desse comprometimento segue-se que as entidades biológicas são as únicas coisas que podem ter mentes (que ele defende com seu famoso argumento do quarto chinês contra a inteligência artificial). Jamieson endossa aquilo que considera ser o elogio de Hume ao senso comum ao concluir que outros animais possuem mentes e ao pensar que não precisamos de “qualquer artilharia filosófica ou científica pesada para provar que os animais têm pensamento e razão” (Jamieson 1998: 81). O raciocínio de Jamieson é o de que o problema das mentes animais é considerado diferente do problema das outras mentes humanas sem qualquer justificação. Poderíamos apresentar o argumento do seguinte modo:
Os argumentos inferenciais rejeitam a premissa 3 e presumem que quando vemos outros animais, vemos corpos com comportamento em vez de mentes. Jamieson objeta que corpos com comportamento são monstros filosóficos. Assim como as pessoas comuns — e os psicólogos — não precisam se preocupar com o ceticismo quando o assunto são as outras mentes humanas, elas não precisam se preocupar com as outras mentes animais. Em ambos os casos percebemos diretamente os estados mentais dos outros, e quanto mais sabemos sobre o indivíduo, sua forma de vida, suas relações, seu pano de fundo e assim por diante, mais fácil é para entendermos o indivíduo, a despeito de sua espécie.
Além de objetar à premissa 3, os críticos também irão objetar à premissa 5. Um viajante sedento poderia pensar ter percebido água ao caminhar pelo deserto, muito embora pense ver algo que não é. E os humanos parecem facilmente ver mentes no mundo natural — vemos rostos nas nuvens e ficamos tristes pela velha luminária ter sido substituída por uma nova.2 O crítico dirá que esse argumento é uma petição de princípio e que “convence” apenas quem já acredita em mentes animais. E além de ser uma petição de princípio, o argumento tem outro problema — não ajuda a resolver o problema das outras espécies de mente, pois não nos permite tirar conclusões sobre espécies que não conhecemos. A ameba pode ser muito pequena, a lula gigante muito grande e esquiva, e a enguia pelicano muito feia e assustadora. Embora Jamieson diga que a abordagem não-inferencial deixe em aberto a possibilidade de que tais criaturas tenham mente, ela não oferece os meios de se contornar as dificuldades que certamente encontraremos ao tentar conhecer alguns animais que são bastantes diferentes de nós mesmos. Assim, embora a abordagem não-inferencial possa funcionar com cães e chimpanzés, ela pode ser menos útil quando se trata de taxa diferentes.
Embora o método não-inferencial possa não satisfazer ao crítico, junto com a inferência a favor da melhor explicação ele dá mais sentido de por que muitas pessoas pensam que animais têm mentes. Embora a perspectiva dominante entre os filósofos e psicólogos seja que animais têm algum tipo de mente, há um amplo desacordo sobre que tipos de propriedades cognitivas elas têm. E isso nos leva a questões mais específicas sobre as mentes animais.
Uma vez aceito que animais são os tipos de coisas que poderiam ter mentes, pode parecer que temos apenas de fazer perguntas mais específicas sobre as mentes animais — perguntas sobre se eles têm experiência consciente, se raciocinam ou se comunicam-se. No entanto, uma vez que estamos simultaneamente investigando a natureza desses fenômenos e a natureza das mentes animais, não há aplicação direta de alguma teoria bem estabelecida a essas questões. Ao examinarmos as questões sobre as mentes animais nos capítulos seguintes, usaremos o método da calibragem, usando as mentes animais para entender a mente de maneira mais geral.
O método da calibragem começa com a descrição ou categorização de um comportamento — por exemplo, poderíamos ver esquilos escondendo nozes durante o outono para comer no inverno e descrever esse comportamento como sendo planejamento. Então começamos a estudar o comportamento em termos dos estímulos que o produzem e dos mecanismos que fazem a mediação entre o estímulo e o comportamento. Para estudar como os esquilos escondem as nozes podemos examinar o que faz com que eles comecem a enterrá-las e o que faz com que eles enterrem tantas nozes. Poderíamos também examinar os processos cerebrais dos esquilos quando confrontados com o estímulo que faz com que escondam as nozes. Uma vez que já tivermos um bom entendimento inicial daquilo que causa nos esquilos o comportamento de esconder nozes, podemos comparar o planejamento dos esquilos com aquilo que sabemos sobre o planejamento humano, ou o planejamento de outros animais. Com base no nível de similaridade do planejamento dos esquilos ao nosso protótipo de planejamento e em quão útil seria considerar que esquilos fazem planejamento, decidiremos ao que nos referimos como planejamento e se o comportamento dos esquilos se enquadra nele. E essa decisão pode nos ajudar a examinar mais questões sobre esconder nozes. Se decidirmos entender que os esquilos planejam suas refeições futuras, podemos também perguntar como eles planejam, que tipo de diferenças individuais há no planejamento entre esquilos e se o planejamento dos esquilos envolve apenas o estoque de nozes ou se envolve outros domínios, como suas rotas de viagem. E essa investigação pode nos levar a outro ponto de querer revisar a nossa noção de planejamento e a questão de se os esquilos podem fazer planos. Por exemplo, se descobrirmos que os esquilos não fazem algo parecido ao planejamento em qualquer outro domínio, isso pode servir como evidência contra o planejamento dos esquilos no domínio da coleta de nozes, caso estejamos concebendo o planejamento como um processo de domínio geral — um processo que pode ser usado em diferentes tipos de situações.
Dado o método da calibragem, ao descrever um comportamento estamos começando a explicá-lo. Damos sentido ao comportamento ao dizer que é um comportamento de certo tipo. Mas isso é apenas o início da explicação, pois temos outras perguntas a fazer sobre o mecanismo envolvido no comportamento; as explicações mecanicistas podem oferecer poder explicativo adicional por nos mostrar como o comportamento é causado pelo sistema cognitivo. Para entender melhor o método de calibragem, temos de examinar aquilo que está envolvido na descrição dos comportamentos e na determinação dos mecanismos subjacentes a eles.
Embora pareça fácil descrever o comportamento, várias questões rapidamente surgem. Quando Rico responde ao pedido para pegar o frisbee, pode nos parecer natural dizer que Rico entende que seu humano quer que ele pegue o frisbee e que Rico quer fazer aquilo que seu humano quer. Poderíamos também entender de maneira bem natural o comportamento de Rico como evidência de que ele sabe o que é um frisbee e que ele sabe o que significa ir pegar. Esse passo inicial de descrever o comportamento é consistente com a nossa psicologia popular, ou nosso entendimento de senso comum de outras mentes. Usamos a psicologia popular quando explicamos por que um camarada deixou o emprego para plantar uma roça no campo; dizemos, por exemplo, que o camarada queria paz e tranquilidade, ou que acreditava que tivesse de fugir da competição feroz da cidade a fim de manter sua sanidade, ou que estava tendo uma crise de meia idade, ou mesmo que ele seja o tipo de pessoa que faz mudanças radicais em sua vida de vez em quando.
Descrever um comportamento em termos de psicologia popular é amiúde visto como um ato de interpretação. Consideramos o comportamento observável e então interpretamos o seu significado de maneira bem parecida como consideramos elocuções linguísticas e interpretamos os seus sons como sendo frases com significado. E mesmo que a linguagem e o comportamento possam parecer transparentes a nós — pode parecer não precisar de interpretação —, podemos estar errados. O filósofo W. V. O. Quine argumentou que mesmo quando entendemos o comportamento linguístico humano, empenhamo-nos num ato de tradução radical. Ele nos pede para considerar como um linguista faria para traduzir uma linguagem recentemente descoberta. Uma vez imerso na comunidade e com a ajuda de colaboradores da população nativa, o linguista pode começar a desenvolver hipóteses sobre o que certas palavras significam. “Um coelho passa correndo, o nativo diz ‘Gavagai’, e o linguista anota a frase ‘Coelho’ (ou ‘veja, um coelho’) como uma possível tradução, sujeita a testes posteriores” (Quine 1960: 29). Quine argumenta que mesmo depois de muito testar essa hipótese, a experiência do linguista com a população nativa não será suficiente para decidir entre essa tradução e uma variedade de outras traduções consistentes, como “Há aqui parte nãos destacadas de coelho” ou “Há aqui uma coelhidade”. Isso vale para todas as outras elocuções desse tipo, e Quine conclui que pode haver traduções diferentes mas igualmente consistentes de uma única linguagem.
Podemos ter experiência com problemas de interpretação quando interagimos com pessoas de culturas diferentes. Brasileiros expansivos que estão sempre a dizer aos outros “Fala, querido!” poderiam interpretar os russos mais reservados como pouco amigáveis. Conversar usando óculos escuros, mostrar os pés, os joelhos, etc., sinalizam desrespeito em algumas culturas, embora sejam aceitáveis em culturas ocidentais convencionais. E esconder uma risadinha com a mão é educado para uma mulher no Japão, mas foi visto como mal intencionado por minha filha canadense-americana de cinco anos.
Se temos tais problemas com humanos, poderíamos esperar ainda mais problemas com a interpretação do conhecimento animal. Ao investigar as mentes animais, o passo inicial na descrição do comportamento animal deveria ser sensível às preocupações com a interpretação. É um passo inicial, não o fim da questão.
Uma vez que o comportamento seja inicialmente descrito como certo tipo de comportamento, podemos começar a fazer outras perguntas sobre esse comportamento. Os comportamentos estão abertos a diferentes tipos de explicações. Poderíamos explicar um comportamento em termos de psicologia popular, em termos de mecanismos e processos diferentes que o causam ou em termos de função evolutiva. E em muitos casos, esses tipos de explicações podem ser quebradas em mais partes, tanto em termos de sub-comportamentos quanto de outros processos mais básicos.
O objetivo da ciência cognitiva é fornecer uma decomposição funcional da cognição, o que envolve explicar o comportamento em termos de suas partes. Uma vez que você tem partes, você pode então ver como cada uma dessas partes funcionam e com isso obter diferentes níveis nos quais pode examinar um sistema. A ideia dos níveis de explicação foi introduzida por David Marr como parte de sua análise de como o cérebro processa a informação visual. Marr distinguiu entre aquilo que ele chamou de níveis de explicação computacional (o objetivo do sistema), algorítmico (a função que alcança o objetivo) e de implementação (a organização física da matéria) (Marr 1982). Na psicologia, o nível computacional é considerado um nível superior de explicação e o nível de implementação é considerado um nível inferior de explicação.
Os níveis de análises de Marr têm sido influentes na filosofia da mente e adotados por aqueles que subsumem uma abordagem funcionalista à metafísica da mente (que tem de ser distinguida da conversa sobre “função” na etologia ou na psicologia, em que a função de um comportamento se refere ao objetivo último de reprodução do organismo). Na filosofia, funcionalistas como Jerry Fodor (1975) e Hilary Putnam (1960, 1967) argumentam que podemos entender os estados mentais não como estados cerebrais mas em termos de seu papel causal numa teoria do comportamento. O funcionalismo é a teoria que afirma que aquilo que faz algo ser um estado mental é aquilo que ele faz — seu papel causal — e que a composição material de um estado mental é irrelevante. Os funcionalistas defendem então a doutrina da realizabilidade múltipla: o mesmo estado mental pode ser implementado em organismos constituídos por diferentes materiais e com organização física diferente. Como exemplo, peguemos o alarme de um relógio. Muitos programas e objetos físicos diferentes podem servir à função de alarme de relógio: um antigo despertador, um iPhone ou o seu confiável (e faminto) cão; todos eles podem servir à função de te despertar, muito embora eles tenham estruturas físicas e organizações causais distintas. Para o funcionalista, diferentes tipos de sistemas, com tipos bastante diferentes de software e hardware, podem compartilhar a mesma função.
O movimento em direção ao funcionalismo na filosofia da mente foi inspirado pela pesquisa na computação, especialmente o trabalho de Alan Turing sobre a possibilidade teórica de uma Máquina de Turing Universal: um computador que pode resolver qualquer problema bem-definido. De acordo com Turing, a Máquina Universal de Turing que tapeia um humano a ponto de ele acreditar que ela também é humana tem crenças, razões e, em suma, uma mente. De acordo com essa perspectiva, a mente humana é análoga a um programa de computador e o cérebro humano é análogo a um processador. O que faz uma entidade ter uma mente depende de se o tipo correto de programa está rodando, um programa que corresponde, pelo menos em geral, à teoria humana da psicologia popular (Lewis 1972).
Dado o seu comprometimento com a realizabilidade múltipla, o funcionalista está mais interessado em explicar os comportamentos em termos das menores partes funcionais e, por isso, procuram pelas explicações ao nível algorítmico de Marr. E a abordagem funcionalista à cognição animal não se preocupa se o comportamento é causado pelos mesmos mecanismos; tudo o que importa é que o comportamento sirva ao mesmo tipo de meta numa ampla teoria similar do repertório comportamental completo do organismo. Assim, o trabalho do funcionalista é interpretar o comportamento e construir uma teoria completa do comportamento ao nível algorítmico. Por exemplo, humanos e polvos podem ter mecanismos biológicos diferentes disparados por dano nos tecidos, mas, caso os mesmos tipos de descrições funcionais possam ser dadas a ambos os organismos, o funcionalista concluirá que tanto humanos quanto os polvos podem sentir dor.
Filósofos e neurocientistas que identificam processos mentais com processos cerebrais darão mais atenção, e oferecerão explicações, ao nível da implementação. Por exemplo, para estudar a dor ao nível da implementação, poderíamos notar que receptores especializados na pele, chamados de nociceptores, enviam sinais à medula espinhal em resposta ao dano no tecido. Esses sinais causam o comportamento reflexo para evitar o dano. Se queremos saber se os polvos têm a experiência de dor, então podemos investigar se eles possuem nociceptores como parte de seu sistema nervoso.
Uma explicação científica do comportamento e capacidades animais poderia envolver níveis diferentes de explicação, e às vezes é difícil de identificar qual o nível de explicação se está a recorrer. O estudo da dor, por exemplo, poderia envolver explicações nos três níveis. O objetivo do ato de evitar a dor é evitar o dano no tecido, e uma resposta dolorosa como afastar-se de uma fonte de calor é um comportamento que cumpre esse objetivo. A organização biológica que causa esse comportamento pode ser examinada no organismo físico.
Porque podemos oferecer explicações em diferentes níveis, quando parece que há duas explicações concorrentes para um comportamento animal, é importante primeiro determinar se as explicações de fato competem entre si. É possível que duas explicações diferentes aparentemente inconsistentes entre si sejam na verdade consistentes entre si em dois níveis diferentes. Por exemplo, suponha que o comportamento de Rico seja explicável em termos dele formar associações entre conjuntos de estímulos. Temos de concluir que Rico não entende as palavras? A menos que tenhamos alguma razão adicional para pensar que as duas hipóteses sejam inconsistentes entre si, não. Por exemplo, se crianças aprendem a linguagem formando associações entre conjuntos de estímulos e também aprendem o significado das palavras, deveríamos suspeitar que a explicação em termos da formação de associação é uma explicação num nível mais inferior do que em termos da compreensão das palavras por parte de Rico. Ao examinarmos várias explicações para comportamentos temos de ter em mente que diferentes explicações não precisam competir entre si, e isso é especialmente importante ao lidarmos com as inferências a favor da melhor explicação.
A pesquisa em cognição animal trata da explicação do comportamento animal, mas como vimos, há vários modos de explicar o comportamento. Diferentes cientistas se concentram em diferentes tipos de explicações, o que às vezes causa confusão. Os psicólogos que trabalham com humanos estão bastante interessados nas explicações da psicologia popular em termos de crenças, desejos, metas, emoções, personalidade e assim por diante. Algumas pesquisas em cognição animal visam também explicar o comportamento nesses termos. É importante notar, contudo, que uma explicação em termos de psicologia popular pode ser consistente com explicações em termos de algoritmos e de implementação, assim como pode ser consistente com explicações evolutivas e desenvolvimentais.
Para ver o método da calibragem em ação, podemos nos voltar para a investigação do filósofo Daniel Dennett sobre o significado dos sinais de alarme dos macacos. Em 1983 Dennett viajou para o Quênia a convite dos primatólogos Dorothy Seyfarth e Robert Cheney, um casal de pesquisadores que naquela altura estudava os comportamentos comunicacionais numa comunidade de macacos-vervet. Observadores anteriores já tinham notado que os macacos-vervet emitem diferentes sinais de alarme para predadores diferentes. Quando um vervet vê uma cobra, ele se apoia nas patas traseiras e começa a fazer um tipo de som estridente; quando vê uma águia, faz um som diferente; e quando vê um leopardo faz um terceiro som. Cada um desses sinais invoca um comportamento distinto em outros vervets da comunidade. Quando eles escutam um sinal de alarme para leopardo, sobem numa árvore. Em resposta ao sinal de alarme para águia, os vervets correm para arbustos onde podem se esconder da águia ou procurar por ela.
Cheney e Seyfarth queriam saber se os vervets entendiam os sinais de alarme referencialmente, no sentido de que o sinal de alarme para águia signifique “há uma águia nas redondezas”, ou se os sinais são mais como sistemas de alerta generalizadas e significa algo como “Proteja-se!” ou se expressa alguma emoção como “Que susto!”. Se os sinais não referem, a diferença no comportamento entre os sinais de alarme talvez se deva a cada procura individual em resposta ao sinal de alarme, à observação do predador e, em seguida, ao ato apropriado de evitar o predador. A fim de testar essas hipóteses, Cheney e Seyfarth fizeram experimentos com playback, escondendo um alto-falante na relva próxima aos macacos e tocando um sinal de alarme na ausência de um predador. Eles viram que os macacos subiam nas árvores quando ouviam o sinal de alarme para leopardo mesmo quando não havia leopardo por perto; do mesmo modo eles responderam apropriadamente às gravações dos outros sinais de alarme. Isso levou os pesquisadores a concluir que os macacos-vervet usam os sinais de alarme como palavras com propriedades referenciais.
Cheney e Seyfarth estavam identificando mais vocalizações de vervets e tentando determinar o que elas significavam. Dennett estava intrigado por esse caso real de tradução radical quineana. Assim como Marr, Dennett percebeu a importância de se identificar o tipo de explicação visada. Dennett identifica três posturas diferentes que podemos assumir ao explicar o comportamento (Dennett 1987). A postura intencional envolve olhar para um comportamento em termos da psicologia popular, sendo causado por crenças e desejos. Um observador que toma a postura de desígnio explica o comportamento em termos daquilo que o sistema foi projetado para fazer (se o sistema for um artefato como um saca rolhas ou um computador que joga xadrez a postura de desígnio identifica a intenção do projetista com o objeto; se for um sistema biológico, então Dennett diz que uma explicação evolutiva é apropriada). Finalmente, um observador que toma a postura fisicista explica o comportamento em termos da instanciação física do objeto, assim como no nível de implementação de análise de Marr. Por exemplo, de acordo com a postura de desígnio, o saca rolhas comum e o de abas teriam a mesma descrição — eles abrem garrafas de vinho —, mas de acordo com a postura fisicista eles teriam descrições bem diferentes, como serem feitos de materiais diferentes e executarem sua função de maneira diferente. A teoria dos sistemas intencionais de Dennett diz que qualquer coisa cujo comportamento seja confiável e extensamente predito a partir da perspectiva da postura intencional é uma sistema intencional — um agente cujo comportamento é precisamente descrito em termos da psicologia popular (Dennett 2009).
Quando Cheney e Seyfarth afirmaram que podemos interpretar os sinais de alarme do macaco-ververt como sinais referenciais com significado particular, eles estavam descrevendo o comportamento a partir da postura intencional. Há dois possíveis desafios a essa interpretação. Uma é que a postura intencional pode não ser o nível apropriado para explicar o comportamento animal. A outra é que a explicação intencional oferecida por eles pode não estar correta. Para confrontar esse primeiro desafio, eles precisariam mostrar que os macacos-vervet são o tipo certo de coisa para ser examinada da perspectiva da postura intencional. Dennett sugere que se não ganhamos qualquer poder preditivo com a postura intencional, então o sistema não conta como um sistema intencional — objetos como atris são exemplos de sistemas não-intencionais, pois atribuir-lhes o desejo de ficar parado no mesmo lugar não fornece qualquer poder preditivo adicional além das previsões feitas a partir da postura de desígnio ou da postura fisicista. Se os macacos-vervet são sistemas intencionais, podemos prever melhor o seu comportamento a partir da postura intencional do que da postura de desígnio — é apenas uma questão de atribuir o tipo certo de descrição do estado intencional. Diz Dennett:
A minha proposta, em termos simples, é a seguinte. Primeiro, observe o comportamento deles por um instante e faça uma primeira catalogação de suas necessidades — suas necessidades biológicas imediatas assim como suas necessidades secundárias, informacionais — aquilo que eles precisam saber sobre o mundo em que vivem. Em seguida, adote aquilo que chamo de postura intencional: trate os macacos como se fossem — o que pode muito bem vir a ser — agentes racionais com as crenças e desejos “corretos”. Crie hipóteses sobre aquilo em que eles acreditam e desejam imaginando no que eles devem acreditar e desejar dadas as circunstâncias e então teste essas hipóteses supondo que eles são racionais o bastante para fazer aquilo que devem fazer dados suas crenças e desejos. O método produz previsões de comportamento sob várias condições; se as previsões forem falseadas, algo tem de ser feito no conjunto de hipóteses iniciais e testes adicionais indicarão o quê. (Dennett 1988: 207)
Dennett considera que aplicamos um princípio de racionalidade em nossas ações interpretativas, e no que diz respeito aos animais, aquilo que eles precisam acreditar e desejar é determinado por sua história evolutiva. Os vervets precisam acreditar que há um leopardo quando escutam um sinal de alarme para leopardo, pois se não acreditassem, não viveriam o bastante para reproduzirem seus genes. E embora Dennett expresse a convicção de que as traduções propostas dos três sinais de alarme tenham resistido à experimentação e observação suficiente em vários contextos, ele também pensa que seu método seja limitado quando o assunto é o estudo de animais não-humanos. Isso porque o tipo de experimento que podemos fazer é limitado pelo fato de animais não possuírem linguagem; assim, pesquisadores da cognição animal não podem ter o mesmo tipo de flexibilidade na preparação de cenários que os psicólogos da cognição humana têm.
A conclusão de Dennett, porém, pode ser demasiado pessimista. A sua sugestão inicial foi a de que os pesquisadores usem aquilo que ele chama de “método Sherlock Holmes”. Esse método envolve preparar um cenário no qual você possa atribuir crenças e fazer previsões sobre o comportamento. Mas mesmo nos contos inspiradores, Sherlock Holmes não depende da linguagem para preparar esses tipos de cenários. Por exemplo, no conto “Um escândalo na Boêmia", que talvez seja um dos melhores exemplos do método, Holmes precisa descobrir onde Irene Adler escondeu uma fotografia comprometedora sua com o rei herdeiro da Boêmia. Para descobrir o esconderijo ele faz algumas suposições sobre os estados mentais dela. Ele espera que ela dê mais valor à fotografia do que a qualquer outra coisa que possua, e que ela saiba onde ela está escondida. Dados esses fatores, ele prevê que, se seu lar estivesse em chamas e a fotografia escondida na casa, ela faria o que quer que fosse para resgatá-la antes de fugir. Assim, Holmes prepara um cenário em que a casa dela parece estar em chamas e a observa indo até o esconderijo. Embora houvesse alguns gritos de “Fogo!”, a bomba de fumaça e a confusão geral mitigaram a necessidade de dizer algo à senhorita Adler a fim de preparar o cenário e motivar a sua ação.
O método Sherlock Holmes pode nos ajudar a determinar se alguém age como pensamos que deveria ter agido dado aquilo que pensamos que essa pessoa pensa. Se elas não agem como previmos, então precisamos rever as nossas suposições iniciais. Uma das suposições iniciais de Dennett tem a ver com a natureza da crença, que para ele não é uma representação mental escondida no cérebro, mas um padrão de comportamento observável. Tal perspectiva entra em conflito com uma longa história do pensamento sobre a crença como um estado mental representacional que é uma propriedade intrínseca do crente. Seja a crença considera uma imagem na mente (com Aristóteles ou Locke pensavam) ou uma frase numa linguagem do pensamento (como afirma Jerry Fodor), a perspectiva dominante na psicologia e na filosofia da mente é que a crença é um estado representacional. À medida em que formos calibrando a nossa compreensão da crença em nossa investigação sobre macacos entenderem as crenças dos outros, a esperança é que aumentemos a nossa compreensão de ambas as questões.
Dado que há diferentes tipos de mentes, podemos examinar as similaridades e diferenças entre as mentes de humanos adultos e as mentes de adultos de outras espécies. Podemos também olhar para o desenvolvimento das outras espécies de mentes a fim de entender melhor a estrutura organizacional da mente. À medida que estudamos esses diferentes tipos de mentes, porém, aprendemos tanto sobre a natureza da mente quanto sobre as propriedades mentais específicas que vemos em nossa espécie. Usando o método da calibragem, começamos com uma teoria sobre a natureza de alguma propriedade mental, e, depois, usamos essa teoria para fazer um juízo determinado sobre se algum animal tem essa propriedade; usamos esse juízo para investigar empiricamente a propriedade. Os resultados dessa investigação podem levar a modificações na nossa teoria, no juízo em particular, ou em ambos.
Antes de nos voltarmos para as questões centrais da investigação, examinaremos as metodologias usadas pelos cientistas para estudar as mentes animais. No Capítulo 2 veremos como os diferentes métodos podem ser usados para fazer as mesmas perguntas ao mesmo tempo em que fornecem diferentes tipos de explicações. Após considerar a ciência das mentes animais, estaremos mais preparados para usar o método da calibragem para examinar questões específicas na filosofia da mente e da psicologia — a natureza da consciência; racionalidade, conceito e crença; comunicação; compreensão social; e, por último, a psicologia moral.
O livro que introduziu a muitos de nós as questões filosóficas sobre a investigação das mentes animais é o Species of Mind: The Philosophy and Biology of Cognitive Ethology, de Colin Allen e Marc Bekoff (1989).
Uma coletânea de ensaios curtos escritos por cientistas e filósofos que oferece muitos exemplos da fecundidade da cooperação interdisciplinar é The Cognitive Animal: Empirical and Theoretical Perspectives on Animal Cognition, editada por Colin Allen, Marc Bekoff e Gordon Burghardt (2002).
A seção três de Brainchildren: Essay on Designing Minds de Daniel C. Dennett (1998) contém cinco dos ensaios de Dennett sobre o estudo das mentes animais.
Há vários recursos online úteis. Na Stanford Encyclopedia of Philosophy você pode procurar muitas das questões discutidas neste texto. É útil começar pelos verbetes “Other Minds” de Alec Hyslop e “Animal Cognition” por mim escrito. Outro bom recurso é o verbete “Animal Minds” de Robert Lurz na Internet Encyclopedia of Philosophy.
Para uma abordagem encantadora e divertida de como viver com um lobo pode mudar um filósofo de diferentes formas, recomendo The Philosopher and the Wolf (2009) de Mark Rowlands.