Início Menu
17 de Outubro de 2015   Ética

Dois egoísmos

Pedro Galvão

Segundo a teoria do egoísmo psicológico, as pessoas agem sempre apenas em função do seu interesse pessoal. Segundo a teoria do egoísmo ético, as pessoas devem agir sempre apenas em função do seu interesse pessoal. Enquanto o egoísmo psicológico é uma teoria puramente descritiva sobre o comportamento humano, o egoísmo ético é uma teoria normativa.

Nenhuma das perspectivas egoístas implica a outra. Por isso, não seremos inconsistentes se aceitarmos uma delas ao mesmo tempo que rejeitamos a outra. Também não há qualquer inconsistência na aceitação de ambas as perspectivas. Isto, aliás, é algo que ocorre com mais frequência que a aceitação de só uma delas. No entanto, parece que se aceitamos as duas formas de egoísmo chegamos a uma conclusão bastante estranha: todos fazem precisamente aquilo que devem fazer. Sendo assim, que função prática terá o egoísmo ético? Dada esta conclusão, este certamente não se destina a regular de algum modo o nosso comportamento, e assim não faz aquilo que geralmente se espera de uma teoria moral. Quando muito, o egoísmo ético pode servir para aliviar certos sentimentos de culpa. Como pergunta um autor que aceita ambas as perspectivas egoístas: “Por que haverias de te sentir culpado por procurar a tua própria felicidade quando é isso que todos os outros também fazem?”1

Mas não nos precipitemos a concluir que a conjunção das duas perspectivas egoístas implica que todos fazem precisamente aquilo que devem fazer. Afinal, tal como as formulámos, as duas perspectivas permanecem ambíguas, pois cada uma delas pode querer dizer duas coisas muito diferentes. Supõe que, para dissolveres a ambiguidade, perguntas ao egoísta psicológico: “Estás a dizer que as pessoas agem em função daquilo que pensam ser o seu interesse pessoal, ou que agem em função daquilo que é realmente o seu interesse pessoal?” Aqui o egoísta terá de optar pela primeira hipótese, pois a segunda é trivialmente falsa. É muito fácil apontar exemplos de pessoas que, embora ajam de certo modo por pensarem que assim estão a servir os seus interesses da melhor maneira, na verdade estão profundamente enganadas a esse respeito. Um alcoólico pode pensar que beber uma garrafa de whisky por dia é a melhor coisa que pode fazer para promover o seu bem-estar, mas está enganado. Um criminoso que assalta uma ourivesaria pode pensar que isso lhe vai permitir ter uma vida confortável, mas se acabar por ser preso verificará que estava enganado. Deste modo, o egoísmo psicológico só pode ter alguma plausibilidade na sua versão subjectiva, ou seja, entendido como a tese de que as pessoas agem em função daquilo que julgam, correcta ou incorrectamente, ser o seu interesse pessoal.

E o que quer dizer o egoísta ético? Que as pessoas devem agir em função daquilo que pensam ser o seu interesse pessoal, ou que devem agir em função daquilo que é realmente o seu interesse pessoal? Aqui o egoísta tem de optar pela segunda hipótese, pois a primeira não é minimamente plausível: implica que, se o alcoólico e o assaltante forem egoístas, devem, respectivamente, beber o whisky e assaltar a ourivesaria, o que é absurdo. Afinal, o que deve fazer um egoísta? Como a ele só lhe interessa promover o seu bem-estar, deve proceder de modo a ser bem-sucedido nesse propósito: deve tentar fazer o que realmente promove o seu bem-estar. Por isso, não pode limitar-se a obedecer aos seus impulsos, fazendo aquilo que, irreflectidamente, lhe parece ser melhor para si, e procurando apenas satisfazer os seus desejos imediatos; tem de avaliar racionalmente as situações para descobrir qual é de facto a maneira de agir que melhor serve os seus interesses.

Assim, enquanto o egoísmo psicológico só pode ser plausível na sua versão subjectiva, o egoísmo ético deve ser entendido na sua versão objectiva. E, portanto, aceitar as duas perspectivas não nos compromete com a ideia de que todos fazem aquilo que devem fazer. Quem aceita os dois tipos de egoísmo tende antes a pensar o seguinte: é verdadeiro que só o amor-próprio nos move, que no fundo só estamos interessados no nosso próprio bem-estar, e não há nada de errado nisso, só que muitas vezes estamos enganados quanto àquilo que é melhor para nós; por isso, devemos modificar o nosso comportamento, procedendo de uma maneira racional, de modo a fazermos aquilo que é mesmo melhor para nós. O egoísta ético insistirá, por exemplo, na ideia de que em muitas ocasiões devemos ajudar os outros. Mesmo que isso nos traga alguns custos, a longo prazo esses custos poderão ser amplamente compensados quando precisarmos de ajuda e os outros nos ajudarem, coisa que não fariam se antes nos tivéssemos recusado a ajudar. Deste modo, por vezes o egoísta pode e deve cooperar com os outros. É claro que, melhor do que ser cooperativo, é conseguir parecê-lo sem o ser. Vale a pena concluir com a descrição que Platão apresenta do “homem injusto”, pois esta dá-nos uma excelente imagem do egoísta bem-sucedido:

Em primeiro lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados — como um piloto de primeira ordem, ou um médico, repara no que é impossível e no que é possível fazer com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corrigir. Assim também o homem injusto deve meter ombros aos seus injustos empreendimentos, com correcção, passando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto. Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Dêmos, portanto, ao homem perfeitamente injusto a mais completa injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e, se for denunciado algum dos seus crimes, que exerça a violência, nos casos em que ela for precisa, por meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado. (Platão, A República, Livro II, 360e–361b)

Pedro Galvão

Nota

  1. Harry Browne, “The Unselfishness Trap” em Sommers, Christina e Sommers, Fred (orgs.), Vice and Virtue in Everyday Life, Harcourt Brace Jovanovich, Fort Worth, 1993, p. 457. ↩︎

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457