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Crítica
22 de Setembro de 2015   Metafísica

Acção e intenção

Harry Frankfurt
Tradução de Desidério Murcho

A complexidade do movimento corporal só sugere acção quando nos faz pensar que o corpo, durante o seu movimento, está sob a direcção do agente. Executar uma acção é, assim, um acontecimento complexo, que inclui um movimento corporal e o estado de coisas ou actividade que constitui a direcção que o agente tem sobre esse movimento. Dado um movimento corporal que ocorra sob a direcção de uma pessoa, a pessoa está a executar uma acção independentemente das características da sua história causal prévia que derem conta do facto de isso estar a ocorrer. A pessoa está a executar uma acção mesmo que esta ocorrência se deva ao acaso. E não está a executar uma acção se os movimentos não estiverem sob a sua direcção à medida que se desenrolam, ainda que a própria pessoa tenha fornecido as causas antecedentes — sob a forma de crenças, desejos, intenções, decisões, volições, ou seja o que for — de que resultou o movimento.

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Quando agimos, os nossos movimentos têm propósito. Isto é apenas outra maneira de dizer que o seu curso é dirigido. Muitos casos de movimento com propósito não são, é claro, casos de acção. A dilatação das pupilas dos olhos de uma pessoa quando a luz esmorece, por exemplo, é um movimento com propósito; há mecanismos que controlam o seu curso. Mas a ocorrência deste movimento não marca a execução de uma acção pela pessoa; as suas pupilas dilatam, mas não é a pessoa que as faz dilatar. Isto acontece porque o curso do movimento não está sob a sua direcção. A direcção, neste caso, é atribuível apenas à operação de um mecanismo com o qual a pessoa não pode ser identificada.

Usaremos o termo “intencional” para referir casos de movimento com propósito em que a direcção é fornecida pelo agente. Podemos então dizer que a acção é movimento intencional. A noção de movimento intencional não pode ser confundida com a de acção intencional. O termo “acção intencional” pode ser usado, ou melhor, mal usado, simplesmente para indicar que uma acção é necessariamente um movimento cujo curso está sob a direcção de um agente. Quando é usado desta forma, o termo é um pleonasmo. Num uso mais apropriado, refere-se a acções que são levadas a cabo mais ou menos deliberada ou cuidadosamente — isto é, a acções que o agente tenciona executar. Neste sentido, as acções não são necessariamente intencionais.

Quando uma pessoa tenciona executar uma acção, o que ela tenciona é que ocorram certos movimentos intencionais do seu corpo. Quando estes movimentos ocorrem, a pessoa está a executar uma acção intencional. Pode-se dizer que ela está então a dirigir os movimentos do seu corpo de uma certa maneira (assim, está a agir), e que ao fazê-lo é guiada pela sua intenção e está a levá-la a cabo para fazer precisamente isso (assim, está a agir intencionalmente). Nada parece haver na noção de movimento intencional que implique que a sua ocorrência tem de ser intencionada pelo agente, seja por meio de previsão seja por meio de assentimento consciente. Se isto for correcto, as acções (isto é, os movimentos intencionais) podem ser executados intencionalmente ou não.

Dado que a acção é movimento intencional, ou comportamento cujo curso está sob a direcção de um agente, uma explicação da natureza da acção tem de lidar com dois problemas diferentes. Um é explicar a noção de comportamento dirigido. O outro é especificar quando a direcção do comportamento é atribuível ao agente e não simplesmente a um processo local que ocorre no corpo do agente, como quando as pupilas de uma pessoa dilatam porque a luz esmorece. O primeiro problema diz respeito às condições sob as quais o comportamento tem propósito, ao passo que o segundo diz respeito às condições sob as quais o comportamento com propósito é intencional.

O condutor de um automóvel guia o movimento do seu veículo agindo: vira o volante, carrega no acelerador, trava, etc. Ao invés, dirigir os nossos movimentos, quando agimos, não exige que executemos várias acções. Não controlamos os nossos corpos como um condutor controla o seu veículo. Caso contrário, a acção não poderia ser concebida, sob pena de gerar uma regressão infinita, como uma ocorrência de movimentos que estão sob a direcção de um agente. O facto de que os nossos movimentos, quando agimos, têm propósito não é o efeito de algo que fazemos. É uma característica da operação nesse instante dos sistemas que somos.

O comportamento tem propósito quando o seu curso é objecto de ajustamentos que compensam os efeitos das forças que de outro modo interfeririam com o curso do comportamento, e quando a ocorrência destes ajustamentos não é explicável pelo que explica o estado de coisas que provoca a sua existência. O comportamento está nesse caso sob a direcção de um mecanismo causal independente cuja prontidão para produzir ajustamentos compensatórios tende a assegurar que o comportamento é consumado. A actividade de tal mecanismo não é normalmente, é claro, dirigida por nós. Ao invés, constitui, quando executamos uma acção, a nossa direcção do nosso comportamento. O nosso sentido da nossa própria agência quando agimos não é mais do que o modo como nos sentimos quando estamos de algum modo em contacto com a operação de mecanismos deste tipo, pelos quais os nossos movimentos são guiados e o seu curso garantido.

Explicar o comportamento com propósito em termos de mecanismos causais não é equivalente a propor uma teoria causal da acção. Para começar, a actividade pertinente destes mecanismos não é anterior aos movimentos que dirigem mas sim simultânea. Mas em qualquer caso, não é essencial para o carácter de propósito de um movimento que seja realmente afectado causalmente pelo mecanismo sob cuja direcção o movimento tem lugar. Um condutor cujo automóvel esteja a descer um monte em virtude apenas da força da gravidade pode estar inteiramente satisfeito com a sua velocidade e direcção, e por isso pode nunca intervir para ajustar o seu movimento. Isto não mostraria que o movimento do automóvel não ocorreu sob a sua direcção. O que conta é que o condutor estava preparado para intervir se fosse necessário, e estava em posição de o fazer com mais ou menos eficácia. Analogamente, os mecanismos causais que estão prontos a afectar o curso de um movimento corporal podem nunca ter oportunidade para o fazer; pois pode não ocorrer qualquer retorno negativo do tipo que originaria a sua actividade compensatória. O comportamento tem propósito não por resultar de causas de um certo tipo, mas porque seria afectado por certas causas se o seu curso corresse o risco de não se efectivar.

Harry Frankfurt
“The Problem of Action”, in The Importance of What we Care About (Cambridge, 1998), pp. 73–75. Originalmente publicado na revista American Philosophical Quarterly, 15 (1978).
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ISSN 1749-8457