“Cidadania” é um termo cujo significado filosófico difere do seu uso quotidiano. No discurso quotidiano, a cidadania é entendida como sinónimo de “nacionalidade”, referindo-se ao estatuto legal das pessoas enquanto membro de um país em particular. Ser um cidadão implica ter certos direitos e responsabilidades, mas estes variam imenso de país para país. Por exemplo, os cidadãos de uma democracia liberal têm direitos políticos e liberdades religiosas, ao passo que numa monarquia, numa ditadura militar ou numa teocracia religiosa podem não ter nenhum desses direitos.
Nos contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal normativo substancial de pertença e participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como um membro pleno e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político. Como tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são governadas por monarquias ou ditaduras militares são súbditos e não cidadãos.
Esta ligação entre a cidadania e a democracia é evidente na história do pensamento ocidental. A cidadania era um tema proeminente entre os filósofos das repúblicas da Grécia e Roma antigas, mas desapareceu do pensamento feudal, sendo apenas reavivado com o renascer do republicanismo no Renascimento. Na verdade, é por vezes difícil distinguir a cidadania, enquanto tópico filosófico, da democracia. Contudo, as teorias da democracia centram-se sobretudo nas instituições e processos — partidos políticos, eleições, legislaturas e constituições — ao passo que as teorias da cidadania se centram nos atributos dos cidadãos individuais.
As teorias da cidadania são importantes porque as instituições democráticas desmoronar-se-ão se os cidadãos carecerem de certas virtudes, tais como um espírito cívico e boa-vontade mútua. De facto, muitas democracias sofrem de apatia por parte dos eleitores, de intolerância racial e religiosa, e fuga significativa aos impostos ou às políticas ambientais que dependem da cooperação voluntária. A saúde de uma democracia depende não apenas da estrutura das suas instituições mas também das qualidades dos seus cidadãos: por exemplo, das suas lealdades e de como eles encaram identidades nacionais, étnicas ou religiosas potencialmente rivais; da sua capacidade para trabalhar com pessoas muito diferentes de si mesmos; do seu desejo de participação na vida pública; da sua boa-vontade para serem moderados nas suas exigências económicas e nas suas escolhas pessoais que afectem a sua saúde e o meio ambiente.
Na Atenas antiga, a cidadania era primariamente vista em termos de deveres. Os cidadãos eram obrigados, legalmente, a assumir cargos públicos à vez, sacrificando parte da sua vida privada para poder fazê-lo. No mundo moderno, contudo, a cidadania é vista mais como uma questão de direitos do que de deveres. Os cidadãos têm o direito de participar na política, mas têm também o direito de colocar os seus compromissos privados acima do seu envolvimento político.
Uma exposição influente desta concepção de “cidadania como direitos” encontra-se em Citizenship and Social Class (1950), de T. H. Marshall. Marshall divide os direitos de cidadania em três categorias: direitos civis, que surgiram na Inglaterra no século XVIII; direitos políticos, que surgiram no século XIX; e direitos sociais — por exemplo, a educação, saúde, fundo de desemprego e reforma — que se estabeleceram no século XX. Para Marshall, o culminar do ideal de cidadania é o estado-providência social-democrata. Ao garantir direitos civis, políticos e sociais a todos, o estado-providência assegura que todos os membros da sociedade podem participar plenamente na vida comum da sociedade.
Chama-se muitas vezes cidadania “passiva” a esta teoria, pois coloca a ênfase nas regalias passivas e na ausência de deveres cívicos. Apesar de esta teoria ter ajudado a assegurar um grau razoável de segurança, prosperidade e liberdade para a maior parte dos membros das sociedades ocidentais, a maior parte dos pensadores pensam que a aceitação passiva de direitos tem de ser complementada pelo exercício activo de responsabilidades e virtudes. Os pensadores discordam, contudo, sobre que virtudes são as mais importantes e sobre o modo de melhor as promover.
Os conservadores sublinham a virtude da auto-suficiência. Ao passo que Marshall argumentava que os direitos sociais permitem que os desfavorecidos participem nos aspectos centrais da sociedade, os conservadores argumentam que o estado-providência promoveu a passividade e dependência entre os pobres. Para promover a cidadania activa, devemos reduzir as regalias do estado-providência, e dar mais importância à responsabilidade de ganhar a vida, que é o aspecto central para a auto-estima e para a aceitação social. Os críticos respondem que cortar as regalias do estado-providência marginaliza ainda mais as classes mais baixas. Além disso, como as feministas sublinham, a conversa aparentemente neutra sobre a “auto-suficiência” é muitas vezes uma forma de dizer subterraneamente que os homens devem sustentar financeiramente a família, cabendo à mulher o papel de olhar pela casa, cuidar dos velhos, dos doentes e das crianças. Isto reforça as barreiras à participação plena das mulheres na sociedade.
Os defensores da teoria da sociedade civil centram as suas atenções no modo como aprendemos a ser cidadãos responsáveis. Argumentam que é nas organizações da sociedade civil — igrejas, famílias, sindicatos, associações étnicas, grupos de ambientalistas, associações de bairro, grupos de apoio — que aprendemos as virtudes cívicas. Porque estes grupos são voluntários, quando não cumprimos as nossas responsabilidades no seu seio temos de enfrentar a desaprovação e não a punição legal. Contudo, porque esta desaprovação tem origem na família, amigos e colegas, é muitas vezes um incentivo mais poderoso para agir de forma responsável do que a punição por parte de um estado impessoal.
A afirmação de que a sociedade civil é a fonte da virtude cívica é discutível. A família ensina a civilidade e a moderação, mas também pode ser “uma escola de despotismo” que ensina o domínio masculino sobre as mulheres. Analogamente, as igrejas ensinam muitas vezes a deferência perante a autoridade e a intolerância relativamente a outras fés; os grupos étnicos ensinam muitas vezes preconceitos contra outras raças, etc.
Os defensores da teoria da virtude liberal sublinham a importância da capacidade dos cidadãos para o discurso público. Isto não significa apenas a capacidade para dar a conhecer os nossos pontos de vista; implica igualmente a virtude da “razoabilidade pública”. Os cidadãos têm de dar razões para as suas exigências políticas, e não apenas exprimir preferências ou fazer ameaças. Além disso, estas razões têm de ser “públicas”, no sentido de poderem persuadir pessoas de diferentes fés e nacionalidades. Não basta invocar a escritura ou a tradição; é necessário fazer um esforço consciencioso para distinguir as ideias que são matéria de fé pessoal das que podem ser defendidas publicamente.
Onde aprendemos então esta virtude? Os defensores da teoria da virtude liberal sugerem muitas vezes que é nas escolas que se deve ensinar as crianças a distanciar-se das suas próprias tradições culturais quando se entregam ao discurso público e a ter em consideração pontos de vista diferentes. Contudo, os tradicionalistas objectam que isto encoraja as crianças a questionar, na sua vida privada, a autoridade familiar ou religiosa. Os grupos que se apoiam na aceitação acrítica da tradição e da autoridade ficam ameaçados pela abertura de espírito e pelas atitudes pluralistas que a educação liberal encoraja. Daí que alguns grupos religiosos vejam a educação liberal obrigatória como um acto de intolerância relativamente a eles, ainda que tal se faça em nome do ensino da virtude da tolerância.
Os republicanos cívicos oferecem outra abordagem à cidadania responsável. No sentido mais geral, “republicano cívico” refere qualquer pessoa que pense ser necessário ter cidadãos activos e responsáveis. Mas há uma concepção mais restrita de republicanismo cívico, que se distingue por defender (na peugada de Aristóteles) o valor intrínseco da participação política. Tal participação é, nas palavras de Adrian Oldfield, “a mais alta forma de vida humana em comum a que a maior parte dos indivíduos pode aspirar (1990: 6). Deste ponto de vista, a vida política é superior aos prazeres meramente privados da família, da vida local e da profissão, devendo por isso ocupar o centro da vida das pessoas.
Esta perspectiva entra em conflito com o entendimento moderno da vida boa no mundo ocidental. A maior parte das pessoas de hoje encontra na família, no trabalho, religião ou tempos livres a sua maior felicidade — e não na política. A participação política é vista como uma actividade ocasional, por vezes desagradável, que é necessária para assegurar que o governo respeita e apoia a liberdade das pessoas para se entregarem aos seus projectos e interesses pessoais. O pressuposto de que a política é primariamente um meio para proteger e promover a vida privada está subjacente à maior parte das perspectivas modernas da cidadania. Esta atitude reflecte o empobrecimento da vida pública de hoje, em contraste com a cidadania activa da antiga Grécia. O debate político parece hoje menos significativo, e as pessoas sentem-se menos capacitadas para participar de forma eficiente. Mas reflecte também um enriquecimento da vida privada, dada a maior proeminência do amor romântico e da família nuclear (que dá ênfase à intimidade e à privacidade); uma maior prosperidade (e por isso formas mais ricas de ócio e consumo); e crenças modernas na dignidade do trabalho (que os gregos desprezavam). O convite à cidadania activa tem hoje em dia de competir com a forte atracção que a vida privada exerce.
A cidadania não é apenas um estatuto, definido por um conjunto de direitos e responsabilidades. É também uma identidade, uma expressão da nossa pertença a uma comunidade política. Além disso, é uma identidade partilhada, comum a diversos grupos na sociedade. Logo, a cidadania tem uma função integradora. Alargar os direitos de cidadania tem ajudado a integrar grupos previamente excluídos, como a classe trabalhadora, na sociedade.
Alguns grupos, contudo — por exemplo, os afro-americanos, os povos indígenas, as minorias étnicas e religiosas, os gays e as lésbicas — sentem-se ainda excluídos do seio da sociedade, apesar de possuírem direitos iguais de cidadania. De acordo com os pluralistas culturais, a cidadania tem de reflectir a identidade sociocultural distinta destes grupos — a sua “diferença”. Os direitos comuns de cidadania, originalmente definidos pelos homens brancos, e para eles, não podem acomodar as necessidades dos grupos marginalizados. Estes grupos só podem integrar-se completamente através do que Iris Marion Young chama “cidadania diferenciada” (1989). Isto é, os membros de certos grupos devem ser incorporados na comunidade política não apenas enquanto indivíduos, mas também através do grupo, e os seus direitos devem depender em parte da sua pertença ao grupo.
Esta perspectiva põe em causa as concepções tradicionais da cidadania, que a definem em termos do tratamento das pessoas como indivíduos com direitos iguais à luz da lei. É assim que a cidadania democrática se distingue canonicamente das perspectivas feudais e pré-modernas, que faziam depender o estatuto político das pessoas da sua religião, etnicidade, classe social ou sexo. Logo, a ideia de cidadania diferenciada, é vista por muita gente como uma contradição dos termos. Além disso, se os grupos forem encorajados pelos próprios termos da cidadania para se voltarem para dentro, sublinhando a sua “diferença”, como pode a cidadania fornecer uma fonte de ligação e solidariedade para os vários grupos da sociedade?
É importante distinguir aqui duas categorias gerais de cidadania diferenciada. Para alguns grupos — como os pobres, as mulheres, as minorias raciais e os imigrantes — a exigência de direitos de grupo é geralmente uma exigência de maior inclusão e participação na sociedade. Por exemplo, estes grupos podem sentir-se subrepresentados no processo político, devido a barreiras históricas, procurando por isso representação com base em grupos. Ou podem querer que o currículo da escola reconheça as suas contribuições para a cultura e história da sociedade em causa. Ou podem procurar isenções de leis que os desfavorecem economicamente, dadas as suas crenças e práticas. Estes grupos partilham o objectivo da integração nacional — isto é, aceitam que os grupos historicamente sofreram desvantagens devem tornar-se participantes plenos e iguais na sociedade. Defendem apenas que é necessário o reconhecimento e a acomodação da sua “diferença” para assegurar a integração.
Outros grupos que exigem cidadania diferenciada rejeitam o objectivo da integração nacional. Desejam governar-se a si mesmos, à parte da sociedade em geral. Isto acontece sobretudo com minorias nacionais — isto é, comunidades históricas distintas, que ocupam o mesmo país ou território e que partilham uma linguagem e história distintas. Estes grupos estão nas margens de uma comunidade política mais lata, mas reivindicam o direito a governarem-se a si mesmos em certos aspectos, de modo a assegurar o livre desenvolvimento da sua cultura. O que estas minorias nacionais querem não é, primariamente, uma melhor representação no governo central, mas antes a transferência de poder do governo central para as suas comunidades, muitas vezes através de um tipo qualquer de federalismo ou autonomia local. Em vez de procurarem maior inclusão na sociedade em geral, procuram uma maior autonomia relativamente a ela.
Este tipo de exigência põe em causa as perspectivas tradicionais da identidade de cidadania, que pressupõe que as pessoas se encaram como membros da mesma sociedade. Se a democracia é o governo do povo, as exigências de autogoverno levantam a questão de saber quem é realmente “o povo”. As minorias nacionais afirmam que são “nações” ou “povos” distintos, com direitos inerentes à autodeterminação que não foram abandonados pela sua federação (muitas vezes involuntária) com outras nações num país mais lato. Os direitos de autogoverno dividem o povo em povos separados, cada qual com os seus próprios direitos, territórios e poderes de autogoverno; e, logo, cada um tem a sua comunidade política autónoma. Se a cidadania é a pertença a uma comunidade política, então os direitos de autogoverno dão origem a uma espécie de cidadania dual, e a conflitos sobre com que comunidade — o grupo nacional ou o estado — os cidadãos mais se identificam. Além disso, se uma autonomia limitada é desejável para uma minoria nacional, por que não entrar completamente em secessão e ter uma nação-estado totalmente autónoma?
Com efeito, os países com minorias nacionais enfrentam o problema de nacionalismos conflituantes. O estado procura promover uma identidade nacional única através da cidadania comum; a minoria procura promover a sua identidade nacional distinta através da cidadania diferenciada. Encontrar uma fonte de unidade social em países multinações é uma questão fundamental que os pensadores da cidadania enfrentam.