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7 de Julho de 2007   Filosofia da religião

Dawkins, Deus e ilusões

Desidério Murcho
A Desilusão de Deus
de Richard Dawkins
Tradução de Lígia Rodrigues e Maria João Camilo
Lisboa: Casa das Letras, 2007, 468 pp

Dawkins é um dos mais importantes biólogos e divulgadores de ciência do nosso tempo. Os seus livros prestam um serviço fundamental: numa prosa elegante e precisa, esclarecem os leitores e estudantes, explicando algumas das ideias fundamentais da biologia e de outras ciências da natureza. Nomeadamente no que respeita à teoria da evolução pela selecção natural, Dawkins explica-a como ninguém, com precisão, elegância e segurança académica. Em Portugal, estão publicados alguns dos seus mais importantes livros, como O Gene Egoísta, A Escalada do Monte Improvável e Decompondo o Arco-Íris (todos na Gradiva), O Relojoeiro Cego (Edições 70) e O Rio que Saía do Éden (Temas e Debates).

Este seu último livro é uma defesa do ateísmo. E como seria de prever, para quem conhece bem Dawkins, é um desastre. Dawkins é incapaz de abordar este tema com distanciamento e não parece disposto a estudar um pouco. Assim, sobretudo na primeira parte, o livro pouco mais é do que uma colecção avulsa de ideias soltas, revelando uma ignorância atroz de alguma bibliografia fundamental. Nem se percebe bem que tipo de público tem Dawkins em mente. Dado que passa grande parte da primeira parte do livro a insultar abertamente qualquer pessoa que acredite que Deus existe, não pode ter em mente persuadir estas pessoas a mudar de ideias. Por outro lado, incomoda qualquer ateu educado e sensato que concorde com o princípio geral de Dawkins de que o ateísmo precisa de ser vigorosamente defendido na sociedade contemporânea: defender o ateísmo vigorosamente é muito diferente de defendê-lo atabalhoadamente.

Na segunda parte, Dawkins apresenta algumas ideias soltas sobre uma possível explicação evolucionista das crenças religiosas. Mas nem aqui o livro tem qualquer interesse. O autor não oferece qualquer insight interessante baseado na teoria da evolução pela selecção natural; perde grande parte do tempo de volta da imbecil teoria dos “memes” (mostrando involuntariamente que esta teoria se limita a repetir ideias presentes em qualquer bom estudo tradicional de religião comparada — limitando-se a introduzir uma linguagem falsamente científica); e finalmente conclui-se que qualquer explicação evolucionista da religião é obviamente neutra com respeito à verdade ou falsidade das afirmações religiosas.

Contudo, o tema da existência de Deus e do clima fundamentalista que se vive nos EUA (e um pouco também no Reino Unido e noutros países europeus, para já não falar nos países islâmicos) merece a nossa melhor atenção. Saber se a crença religiosa é defensável, por um lado, e, por outro, como deve a crença religiosa ser tratada pelo estado e pelo ensino, são dois temas muitíssimo importantes.

A ideia de que a crença religiosa merece um respeito especial é atacada por Dawkins na primeira parte do livro. Afinal, que há de especial em relação a esta crença que a distinga da crença nos OVNIS, por exemplo? Nada, excepto a falível autoridade da tradição. Mas quem disse que a tradição merece um respeito especial, diferente do respeito que qualquer outra opinião merece? Dawkins argumenta que a sociedade ocidental tem sido demasiado complacente em relação às crenças religiosas; que estas crenças devem ser tratadas como quaisquer outras crenças. Por exemplo, um motociclista tem de tirar o capacete, para poder ser identificado, numa bomba de gasolina; mas uma mulher islâmica coberta da cabeça aos pés e igualmente não identificável, não tem de tirar a “burka”. Evidentemente, isto é um disparate. Não é a sociedade em geral que tem de se vergar perante a religião, é a religião que tem de aceitar as regras da sociedade em geral.

Dawkins aborda repetidamente ao longo do livro o tema da educação religiosa, mas sem apresentar uma reflexão aturada nem argumentos convincentes ou dados empíricos importantes. E é pena, pois este é um tema central nesta reflexão. Em causa estão duas questões diferentes. A primeira é a questão de saber se é defensável a existência de escolas religiosas. A segunda é a questão de saber se é defensável a educação religiosa por parte dos pais. Dawkins argumenta atabalhoadamente contra as duas. Na verdade, os argumentos contra ambas são muito simples.

Em primeiro lugar, Dawkins defende que não faz qualquer sentido afirmar que uma criança de 7 anos, por exemplo, é cristã, ou islâmica, ou judia. Seria como afirmar que essa criança é do PSD ou do CDS. A criança não tem pura e simplesmente maturidade suficiente para pertencer a um partido político nem para ter uma posição religiosa. Infelizmente, encara-se com a maior das naturalidades a ideia de que as famílias têm o direito de doutrinar religiosamente as crianças.

Em segundo lugar, precisamente porque as crianças não têm maturidade para escolher as suas crenças religiosas, doutriná-las (em casa ou na escola) é um acto análogo à pedofilia. O que é inaceitável na pedofilia é precisamente o facto de as crianças não terem maturidade para escolher ter ou não ter relações sexuais com o adulto — não é o facto de se ter relações sexuais que é, em si, inaceitável. Analogamente, não é o facto de se ter crenças religiosas que é inaceitável, mas o facto de se impor essas crenças às crianças que não têm maturidade para as escolher em plena consciência.

Finalmente, as escolas religiosas são intoleráveis porque produzem estranheza e ódios religiosos. Seria como criar escolas só para brancos e escolas só para negros; o resultado é óbvio: jovens racistas. A melhor maneira de promover a tolerância religiosa é fazer as crianças conviver com outras crianças cujos pais têm crenças religiosas diferentes dos seus.

Dawkins prestou um mau serviço à reflexão urgente sobre o lugar da religião na sociedade contemporânea, e à reflexão sobre a legitimidade epistémica e ética das crenças religiosas. Mas talvez este livro ajude a activar uma discussão pública que tarda.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457