Nelson Goodman (1906–1998) foi um dos mais importantes filósofos do século XX. As suas obras reconfiguraram a epistemologia, a metafísica e a filosofia da arte. The Structure of Appearance (1977), que parte da sua dissertação de doutoramento, mostra como construir sistemas formais interpretados que resolvem ou dissolvem problemas epistemológicos e metafísicos persistentes. Facto, Ficção e Previsão (1983) formula o novo enigma da indução e propõe uma solução, defendendo que para bloquear a inferência que conclui que todas as esmeraldas são verduis é preciso ter em consideração as maneiras como os termos têm sido indutivamente usados. Linguagens da Arte (1976) apresenta uma nova concepção da estética, entendendo-a como um ramo da epistemologia. É tentador dizer que Goodman trabalhou em diversos ramos da filosofia. Uma afirmação mais precisa seria que se concentrou em questões que atravessam a filosofia, mostrando que os seus ramos não são tão diversificados como por vezes parece.
Goodman frequentou a Universidade de Harvard como estudante de graduação e de pós-graduação. Na pós-graduação, financiou-se dirigindo uma galeria de arte em Boston. Passou a maior parte da sua vida académica como professor de filosofia na Universidade da Pensilvânia. Na última década da sua carreira de ensino foi professor de filosofia em Harvard, onde fundou o Projecto Zero, um projecto de investigação em curso sobre o ensino das artes, e o Programa Estival de Dança de Harvard. Era um coleccionador ávido e eclético de arte.
Em finais dos anos quarenta, Goodman, W. V. Quine e Morton White escreveram uma série de artigos repudiando a distinção analítico/sintético. O alvo de Goodman é a sinonímia. Ele sustenta que a sinonímia exige que os termos concordem quanto à extensão primária e quanto a todas as extensões secundárias paralelas, sendo que a extensão secundária de um termo é a extensão de um composto que o contenha. Apesar de “unicórnio” e “centauro” terem a mesma extensão primária (vazia), porque compostos como “imagem de unicórnio” e “imagem de centauro” têm extensões diferentes — porque nem todas as imagens de unicórnio são imagens de centauro — “unicórnio” e “centauro” não têm o mesmo significado. Isto harmoniza-se com as intuições humanas. Mas mesmo termos aparentemente sinónimos têm significados diferentes segundo o critério de Goodman. Apesar de “espinha dorsal” e “coluna vertebral” serem sinónimos, pode-se facilmente inventar uma descrição de espinha dorsal que não seja uma descrição de coluna vertebral — por exemplo, “espinha dorsal que não seja uma coluna vertebral”. Em geral, “p que não é um q” é uma descrição-de-p mas não uma descrição-de-q. Esta maneira genérica de gerar diferenças de significado poderá parecer ilegítima. Mas mesmo que seja excluída, é fácil encontrar imagens e descrições que pertencem à extensão secundária de um mas não de ambos os membros de um par de termos co-extensionais. A grande maioria de termos aparentemente sinónimos não satisfazem o critério de Goodman. Apesar de Goodman não apresentar argumentos para defender o seu critério, a sua justificação é evidente. Os termos sinónimos deveriam ser intersubstituíveis na ficção e em afirmações factuais. Porque nada deveria contar como uma representação do referente de um que não fosse uma representação do referente de outro, a divergência na classificação das descrições ou imagens assinala uma divergência de significado.
As extensões secundárias não se limitam a desacreditar a sinonímia; fornecem recursos para reconhecer graus em todos os tipos de semelhança de significado. Para o fazer é preciso restringir o domínio de aplicação. Se, num domínio restrito, todos os compostos paralelos de um par de termos co-extensionais são co-extensionais, os significados dos termos co-extensionais são os mesmos nesse domínio. Os termos podem então ser suficientemente semelhantes quanto ao significado para serem intersubstituíveis nesse domínio, ainda que os seus significados divirjam alhures. Se no discurso médico todos os casos de “representação de espinha dorsal”, e só eles, são casos de “representação de coluna vertebral”, então “espinha dorsal” e “coluna vertebral” podem ser suficientemente semelhantes quanto ao significado para serem intersubstituíveis em contextos puramente médicos. Se a maior parte dos compostos paralelos são co-extensionais, ou se a maior parte dos compostos paralelos importantes o são, os termos podem ser suficientemente semelhantes quanto ao significado para justificar a substituição de um pelo outro. Em vez de um critério rígido e indiferente ao contexto, Goodman fornece um critério de semelhança de significado que é flexível e sensível ao contexto (Goodman 1972, pp. 221–238).
A distinção analítico/sintético não é única. Outros dualismos comuns — essência/acidente, esquema/conteúdo, necessidade/contingência, e afins — são vulneráveis a objecções semelhantes. Todos têm de ser rejeitados, consideram Goodman, Quine e White. Ao contrário de Quine, Goodman não dedica posteriormente muito esforço a argumentar contra os dualismos. Limita-se a eliminá-los e faz filosofia sem eles. Considera que o fim dos dualismos não rouba recursos à filosofia; antes a liberta de restrições sem fundamento. Ele considera, o que talvez seja surpreendente, que a rejeição dos dualismos fomenta o progresso da estética.
O inovador Linguagens da Arte de Goodman reorienta a estética. É a entrega activa, e não a contemplação passiva, que caracteriza a atitude estética. Goodman acredita que a arte funciona cognitivamente. Entende por isso a estética como um ramo da epistemologia, cuja tarefa é explicar como as artes contribuem para a cognição, e que contribuição é essa. A plausibilidade dessa posição depende obviamente tanto da natureza da arte como da natureza da cognição. Se a função cognitiva da arte é simplesmente transferir informação para receptores passivos, o mecanismo para fazê-lo poderá ser a semelhança. Nesse caso, as obras assemelham-se aos seus objectos e fornecem informação sobre a sua aparência.
Contudo, há objecções aparentemente insuperáveis a tal posição. Na melhor das hipóteses, só funciona na arte representativa. A música, pintura abstracta e arquitectura não poderiam ser acomodadas em tal perspectiva. Nem pode adequadamente acomodar seja o que for à excepção de obras realistas. Nem os cartoons nem os retratos cubistas são muito parecidos aos seus objectos. Na verdade, Goodman defende que essa perspectiva não dá sequer conta das obras realistas. Transmitir a aparência do seu objecto só poderia ser a contribuição cognitiva de uma pintura caso existisse tal coisa. Mas as coisas têm muitas aparências, e têm aparências diferentes para pessoas diferentes. Um objecto não tem por isso qualquer aparência canónica que a sua pintura, para ser fidedigna, deva transmitir. Além disso, algumas imagens realistas têm objectos fictícios — unicórnios, grifos, e coisas semelhantes. É claro que não são semelhantes aos seus objectos, porque não há unicórnios nem grifos. Apesar disso, pode-se interpretar prontamente tais imagens, reconhecer o que representam, e ganhar insights com base nelas.
O problema, pensa Goodman, é que a proposta repousa em incompreensões tanto da arte como da cognição. Ao contrário do que os empiristas clássicos pensavam, a mente não é passiva na recepção de sensações. Antes procura, busca, selecciona e encontra activamente. Também as obras de arte não devem ser entendidas como meras superfícies sensoriais. Ao invés, sustenta Goodman, são símbolos com propriedades sintácticas e semânticas determinadas. A arte faz avançar a compreensão e proporciona insights em grande medida como a linguagem. Como os símbolos linguísticos, os símbolos que constituem uma obra de arte exigem interpretação, e é preciso aprender os sistemas simbólicos a que as obras pertencem. Em Linguagens da Arte Goodman desenvolve uma taxonomia de sistemas simbólicos usados nas artes, e também alhures, especificando os seus poderes e limitações.
Há dois modos de referência que são básicos. A denotação liga os nomes aos seus portadores, os predicados às suas instâncias, as representações às coisas que representam. “George Washington”, “o primeiro presidente dos EUA”, a figura na nota norte-americana de dólar e o retrato de Gilbert Stuart denotam Washington. Na exemplificação, um símbolo aponta para — e portanto refere — as propriedades das quais ele é uma amostra. Uma amostra de tecido exemplifica o seu padrão; uma pintura de Mondrian, a quadratura; um exame ao sangue, a presença de anticorpos. Estando omnipresente na arte, a exemplificação está também difundida na ciência, na publicidade… e na verdade seja onde for que as pessoas usem amostras e exemplos (Goodman 1976).
A referência não precisa de ser literal. A referência metafórica, sustenta Goodman, é referência genuína; a verdade metafórica é verdade genuína. “Buldogue” denota Churchill genuinamente, ainda que metaforicamente. “Churchill é um buldogue” é genuinamente, ainda que não literalmente, verdadeira. O Moisés de Miguel Ângelo exemplifica genuinamente a raiva, ainda que metaforicamente. A expressão é uma exemplificação metafórica numa obra de arte que funciona como tal. Moisés expressa assim a raiva que exemplifica metaforicamente (Goodman 1976, 1984).
Alguns casos de referência são complexos. Na alusão, uma cadeia referencial composta de ligações denotativas e exemplificativas conectam um símbolo ao seu referente (Goodman 1984). Duas cadeias estão presentes alternadamente, uma exemplificando características que uma alternativa partilha com o seu tema, e a outra exemplificando características que contrastam com o tema (Goodman e Elgin 1988).
Os símbolos científicos, sustenta Goodman, são relativamente ténues, os estéticos relativamente repletos. Um símbolo científico é normalmente unívoco, e a totalidade da sua referência vê-se facilmente. Um símbolo estético pode ter múltiplas interpretações correctas e simbolizar simultaneamente em várias dimensões. O que simboliza exactamente pode nunca ficar estabelecido. O mesmo item pode ser um símbolo de qualquer desses tipos, dependendo de como funciona. De modo que a pergunta crucial é “Quando há arte?” e não “O que é a arte?” Quando, como e com que fins funciona um símbolo esteticamente (Goodman 1978)?
A arte faz avançar a compreensão, mas não apenas porque a interpretação é um processo cognitivo. O contacto com a arte dá insights que vão além do domínio estético; as descobertas que se fazem, as orientações que se adoptam e os padrões que se discernem em contextos estéticos transferem-se para outros aspectos da experiência e dão-lhes sentido; a emoção transforma dos fins para os meios. As reacções emocionais que uma obra invoca não são fins em si mesmas mas antes meios para compreender a obra e a luz que lança sobre outros aspectos da experiência humana.
Em Modos de Fazer Mundos (1978), Goodman regressa aos temas construtivistas inicialmente explorados em The Structure of Appearance. Os mundos, defende, são feitos e não encontrados. Porque os elementos de qualquer grupo são semelhantes em alguns aspectos e diferentes noutros, o mero exame não irá revelar se duas manifestações são da mesma coisa, ou se são duas coisas do mesmo tipo. Para resolver essas questões exige-se critérios de individuação e de classificação. Os esquemas categoriais fornecem-nos. Ao concebê-los, as pessoas demarcam os indivíduos e os tipos que constituem o mundo. Diferentes demarcações dão origem a versões divergentes mas igualmente viáveis. Pode-se caracterizar a luz como um feixe de partículas; ou como uma sequência de ondas. Cada qual pode estar correcta relativamente à sua própria versão de mundo, e errada relativamente à rival. Nenhuma está correcta ou errada absolutamente.
Se as versões de mundo que se sobrepõem fossem todas sobrevenientes a partir de uma base única, tais diferenças seriam ontologicamente inócuas. Mas as versões de mundo não são sobrevenientes a partir de uma base única. Uma versão fisicista, por exemplo, não é sobreveniente relativamente a uma versão fenomenista, nem lhe subjaz. E não há uma versão neutra subjacente a ambas. Porque as pessoas pode e fazem múltiplas versões de mundos individualmente adequadas mas irreconciliáveis, Goodman conclui que há muitos mundos, se algum houver (Goodman 1978).
A construção de mundos não é sempre deliberada. Em Modos de Fazer Mundos, Goodman analisa uma série de experiências psicológicas e mostra como, com nada mais senão pistas escassas, o sistema visual constrói o movimento aparente que detecta (Goodman 1978). Além disso, a construção de mundos não é sempre discursiva. Os esquemas não-verbais estruturam as coisas de maneiras que nenhuma descrição capta com precisão. As artes, como as ciências, constróem versões viáveis de mundos.
Apesar de Goodman reconhecer múltiplas maneiras de fazer mundos e múltiplos mundos feitos, não defende que toda a versão faz um mundo. Só as versões correctas o fazem. A correcção não se reduz à verdade, pois algumas verdades são incorrectas, e algumas falsidades correctas, e alguns símbolos são correctos apesar de não serem verdadeiros nem falsos. A correcção envolve a harmonização e o funcionamento — harmonização com a prática cognitiva anterior e funcionar de modo a promover fins cognitivos. A consistência, cogência, projectabilidade e imparcialidade das amostras fazem parte da correcção de versões viáveis de mundos (Goodman 1978, Goodman e Elgin 1988).