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8 de Agosto de 2020   Filosofia

Ler como um filósofo

David W. Concepción
Tradução de Rodrigo Freitas Costa Canal
e Breno Ricardo Guimarães Santos1

Ao lado do grande “D” vermelho, na parte inferior do trabalho final que escrevi para um curso de ciência política de nível médio, durante o segundo semestre da faculdade, estava escrito: “Você pensa como um filósofo, não como um cientista político”. Tomei alegremente este comentário, o único comentário, como um conselho sábio, em vez de um insulto desdenhoso, e me inscrevi para fazer o curso Teorias da Natureza Humana no departamento de filosofia, no semestre seguinte.

Lembro-me de ter uma sensação profunda, mas vaga, que foi uma mistura de alívio e de alegria durante a primeira semana de Teorias da Natureza Humana. “Encontrei meus iguais”, pensei. Eu não sabia que existia um campo de estudo que considerava sensatas as questões que estavam sempre na minha cabeça. Ainda mais surpreendente é que o tipo de ideias que eu oferecia como respostas, ainda que desorganizadas, era o mesmo tipo de respostas que os filósofos fornecem. Mudei de curso antes do final do semestre.

Mas tinha um problema. Eu não sabia como ler filosofia. Não sabia como conectar razões a conclusões, acompanhar mudanças na expressão, decifrar sutilezas, avaliar argumentos ou usar o texto para criticar as minhas próprias opiniões. Eu sabia como ler a fim de extrair informações que poderiam me ser solicitadas a regurgitar em algum momento posterior, mas não sabia ler como os filósofos liam. Embora a destilação precisa de informações básicas seja necessária para uma experiência significativa de leitura filosófica, é infelizmente insuficiente. No meu primeiro curso de filosofia, li cada texto lentamente, com um dicionário de filosofia e um dicionário geral ao meu lado. Com exceção de Kant — que eu sabia que não entendia —, descobri e redescobri todos os dias, em sala de aula, que o que eu havia feito, da maneira como havia lido, não me preparava para me engajar com as ideias da maneira como era esperada de mim. Como um entusiasta novo da filosofia, andava em círculos. O que segue é uma lista das 10 coisas que eu gostaria de saber quando comecei a ler filosofia.

1. Não existe leitura sem qualificação

Em vez disso, há o ler como filósofo, como historiador, como cartógrafo, como jornalista e assim por diante. Mesmo dentro de uma disciplina, não há uma única maneira de ler. Em parte, isso ocorre porque há muitos subtipos de escrita em cada campo. Talvez a forma de escrita que predomina entre os filósofos seja a escrita argumentativa. Nesta forma, o autor defende uma tese pela tentativa de mostrar que determinadas inferências, de algo incontroverso a algo surpreendente, são plausíveis. Também é provável que o autor tente mostrar que não foram bem-sucedidas as tentativas de mostrar que as suas inferências não se sustentam. Mas alguns filósofos se aproximam da intersecção entre filosofia e crítica literária, onde a frase “eu defendo que…” simplesmente significa “eu acredito que…”, e poucas inferências podem ser oferecidas. Outros filósofos trabalham perto da intersecção entre filosofia e física, onde sentenças como “∀n (Q(n) → P(n))” podem ocorrer. Alguns filósofos citam muito, na tentativa de mostrar que uma interpretação de um texto é superior a uma interpretação alternativa, enquanto outros filósofos tentam defender uma ideia de modo que as citações e notas de rodapé são apenas para salientar que outros disseram algo sobre o tópico. E uma recente explosão em filosofia experimental deu origem a outra forma de escrita filosófica.

Menciono essa variedade para deixar claro que o que se segue deve ser entendido como incompleto. Reflete minha formação como um eticista que trabalha sobretudo com artigos e com capítulos, escritos em inglês, dos séculos XX e XXI, numa tradição pluralista, mas analítica.

Além das diferenças nos tipos de escrita filosófica, existem diferenças nos objetivos que se pode ter ao ler a filosofia. Os objetivos que se têm influenciam como se deve ler. O que mais me entusiasma em ler filosofia é a oportunidade de ter minhas crenças e meus valores desafiados. Leio filosofia para identificar, esclarecer e testar minhas crenças e valores atuais. Como tal, a leitura filosófica é um ato de criação, autocriação de sabedoria perspícua sobre como viver bem com os outros. Como um passo em direção a essa sabedoria, espero que os alunos do primeiro ano em meus cursos de filosofia se tornem mais intelectualmente humildes e menos dogmáticos, como resultado da leitura filosófica. Para a maioria das pessoas, esses objetivos são inatingíveis, a menos que se entreguem à estranheza e à inquietação que tantas vezes vêm com a leitura de filosofia.

2. A experiência de ler filosofia é amiúde estranha

É estranha, em parte, porque o assunto da filosofia é imaterial. Isso não deve sugerir que fatos não importam em filosofia. Um mantra de um professor de ética meu foi “A boa ética começa com bons fatos”. Ele estava certo. Em vez disso, dizer que o assunto da filosofia é imaterial é dizer que questões como “O que é a justiça?”, “O Deus de Abraão existe?” e “O que eu posso saber?” não são respondidas pela sondagem das profundidades de objetos empíricos, ou mesmo de objetos sociais. Elas são respondidas por meio de inferências para aumentar a coerência em um conjunto de crenças e, no caso incomum, derivar corolários de verdades (aparentemente) autoevidentes. O que é estranho nisso é que a filosofia é ostensivamente uma prática de busca da verdade. No entanto, busca a verdade sem presumir fundamentos doutrinários nem o uso do método científico; a filosofia tenta alcançar um fim sem usar nenhum um dos meios de pensamento centenários apropriados para essa tarefa. Para piorar, amiúde a tentativa não logra êxito. A filosofia mostra que muitas coisas que são consideradas verdadeiras não o são, mas ela não estabelece muitas verdades. A filosofia é estranha porque é mais um empreendimento de estabelecimento de falsidades do que construção de verdades. Essa estranheza confirma para mim que a filosofia diz respeito sobretudo ao ganho de sabedoria, e não ao ganho de verdade, embora não se deva desprezar a verdade, se ela for encontrada.

A estranheza da filosofia tem implicações para o leitor de filosofia. O leitor de filosofia não deve procurar por fatos estabelecidos, ou mesmo por provas concebidas para confirmar uma hipótese a respeito de um fato empírico (ou social). Em vez disso, em um texto, um leitor de filosofia deve procurar inferências ou conexões entre suposições altamente plausíveis e conclusões surpreendentes que são difíceis de rejeitar.

3. A experiência da leitura de filosofia é amiúde inquietante

Ao ler filosofia, os valores em torno dos quais alguém organizou, até então, sua vida, podem parecer provincianos, categoricamente errados ou mesmo malignos. Quando as crenças previamente mantidas como verdades são tornadas implausíveis, novas crenças, novos valores e modos de vida podem ser necessários. Esse ferimento filosófico no núcleo dos modos de vida, dos valores e das crenças, por si só, já é bastante difícil. Para piorar, os filósofos ainda recomendam que não se costure a ferida, até o momento em que seja encontrada ou revelada uma nova resposta defensável. Às vezes, a escrita filosófica é até mesmo estritamente crítica, na medida em que nem sequer tenta fornecer uma alternativa, depois de derrubar uma cidadela cultural ou conceitual. O leitor de filosofia deve estar preparado para a possibilidade dessa experiência. Embora a leitura de filosofia possa ajudar a esclarecer os valores de uma pessoa, e até mesmo a torná-la autoconsciente pela primeira vez do fato de que há boas razões para acreditar no que se acredita, ela também pode gerar dúvidas incorrigíveis com as quais é difícil viver.

4. Para ler bem filosofia, é preciso coragem

Por fim, antes de passar para práticas de leitura mais concretas, vamos lembrar que, quando bem feita, a leitura filosófica é um exemplo do fazer filosófico. Se alguém usa os argumentos encontrados em um texto filosófico como a oportunidade para avaliar a plausibilidade de suas próprias razões para acreditar no que se acredita, faz, em razão disso, filosofia. Depois de ler filosofia, freq reunimos algumas informações e ficamos entretidos. Mas ler filosofia é, no fundo, um ato de criação. Ler filosofia é mais excitante quando o leitor se coloca em risco por estar aberto à persuasão. Às vezes, nada menos do que a identidade de alguém está em jogo.

Assim, os filósofos leem corajosamente, avaliando a plausibilidade de inferências, com uma abertura para a autorrecriação extraída de uma dissipação e reconstrução da verdade. Mas como se lê desse jeito? Existem dois passos principais: compreender e avaliar.

Compreensão: 5) Delimite o cenário

Antes de ler um ensaio sobre o qual sei muito pouco, às vezes acho útil ler um resumo da Wikipédia. Mas frequentemente a Wikipédia não é detalhada o suficiente. Quando preciso de mais conhecimento básico, recorro à Enciclopédia de Filosofia da Stanford ou à Enciclopédia de Filosofia da Internet. A Enciclopédia da Internet é geralmente um pouco mais acessível, enquanto que a Enciclopédia da Stanford é geralmente mais completa. Ao adquirir alguma compreensão do terreno conceitual dentro do qual o ensaio que estou lendo reside, geralmente consigo entender melhor a discussão refinada encontrada no ensaio.

Compreensão: 6) Localize a estrutura e a voz da argumentação

Textos filosóficos têm conclusões, razões, críticas e respostas. Primeiro, discirna o que o autor espera defender. Embora a conclusão seja geralmente declarada bem no início, pode ser que esteja no final da primeira seção, bem como pode não ser declarada com clareza até a seção final do ensaio. Segundo, descubra por que o autor acha que está certo. Tipicamente, o argumento inicial deve aparecer no início no ensaio, mas pode ser que não seja mobilizado por completo até o final. Ao longo do artigo, é provável que o autor considere objeções às asserções que faz. É importante notar a mudança na voz que procede a explicação de uma objeção. Por exemplo, um leitor pode ver “críticos dessa ideia podem argumentar…” Essas mudanças, frequentemente breves, e às vezes apenas implícitas, para a voz do crítico são cruciais para localizar o argumento. Em quase todos os casos, uma objeção será seguida por um retorno à voz do autor: “Como resposta...”. Marcar onde os movimentos do argumento, da crítica e da resposta ocorrem, torna muito mais fácil reunir todo o argumento.

Compreensão: 7) Avalie e registre o progresso

Algumas passagens são particularmente espinhosas. Por conseguinte, é muito comum ler filosofia muito mais devagar do que ler outros textos. De fato, muitos filósofos principiantes param no final das seções e, às vezes, dos parágrafos, ou mesmo frases, para verificar se podem reconstruir as ideias em suas próprias palavras. Se for difícil fazê-lo, é necessária alguma releitura antes de prosseguir. Para os textos mais difíceis, crio resumos a cada parágrafo à medida que escrevo uma oração ou uma frase que é uma paráfrase do conteúdo central de um parágrafo. Ao me certificar de que entendo um parágrafo bem o suficiente para exprimir seu ponto principal com minhas próprias palavras, sei que estou pronto para seguir em frente.

Compreensão: 8) Junte tudo

Acho muito útil escrever um resumo do argumento quando chego ao final de um ensaio. Esse resumo compila as suposições e inferências que o autor acredita levar à conclusão, bem como as objeções e as respostas consideradas ao longo do caminho. Normalmente, esses resumos são bastante abreviados; eles contêm marcadores e listas. O objetivo desse resumo não é gerar um resumo em prosa acessível, mas sim captar, apenas para meu uso, os principais movimentos argumentativos do ensaio. Sem os movimentos argumentativos prontamente disponíveis, seria difícil fazer a parte divertida: seria difícil avaliar o texto.

9. Avaliar

À sua vontade, pense nas razões adicionais que poderia haver para pensar que o autor está correto ou incorreto. Pondere se: nossa experiência de vida fornece alguma revelação sobre os méritos dos argumentos? Caso o autor esteja correto, quais são as consequências? Para a verdade? Para as suas crenças? Para como você deve viver? Discuta com amigos sobre os argumentos, especialmente com aqueles que provavelmente discordarão de você. Elabore críticas adicionais e veja se consegue imaginar respostas em nome do autor.

10. Decida

Depois de um tempo suficiente, passe da avaliação dos argumentos para as suas próprias conclusões. O autor está certo, errado ou, mais provavelmente, parcialmente certo e parcialmente errado? Sobre o que, se alguma coisa, você deveria mudar de ideia? Depois de decidir o que pensa sobre as ideias do ensaio, escolha outro que contenha novos argumentos que possam fazê-lo mudar de ideia novamente.

Quanto ao que ler, quem é que sabe? Leia o que instiga você. Acredito que as pessoas que estão no início de uma carreira de leitura de filosofia estão bem providas ao se dedicarem a artigos e capítulos, até encontrarem um autor ou tópico que realmente gostem. Se você não sabe quais são seus interesses, procure algo diferente do que normalmente lê, então comece pela navegação da Enciclopédia de Filosofia da Stanford. Se tiver sorte, haverá um livro que coleta ensaios sobre um tema que lhe provoca. Se você for realmente sortudo, um autor favorito terá um livro que reúna os ensaios dele, de modo que você obtenha versões revisadas que tenham algo como uma pista, mesmo que continuem independentes.

Três de meus favoritos, quando comecei minha jornada como leitor de filosofia, foram Mortal Questions, de Thomas Nagel, Moral Luck, de Bernard Williams, e The Politics of Reality, de Marilyn Frye. No lado mais literário da filosofia estão James Baldwin, Collected Essays e A Sand County Almanac, e Sketches Here and There de Aldo Leopold. Finalmente, quando você realmente se apaixona por um pensador, como me apaixonei por John Rawls, é hora de pegar um livro inteiro. A Theory of Justice de Rawls pode mudar sua vida.

David W. Concepción
Publicado originalmente em The Philosopher's Magazine.

Nota

  1. Agradecemos ao Prof. Dr. David Concepción, da Ball State University, pela autorização da tradução. Revisão científica de Israel Meneses Santos Vilas Bôas. ↩︎
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