Menu
Crítica
30 de Julho de 2024   Ética

Sofrimento sem precedentes

Yuval Noah Harari
Tradução de Desidério Murcho
Libertação Animal, Hoje
de Peter Singer
Tradução de Desidério Murcho
Lisboa: Edições 70, 2024, 406 pp.

Os animais são as principais vítimas da história, e o tratamento dos animais domésticos nas quintas industriais é talvez o pior crime da história. Estas afirmações teriam parecido extravagantes em 1975, quando Peter Singer publicou originalmente a Libertação Animal. Hoje, graças em grande parte ao impacto deste influente livro, cada vez mais pessoas aceitam estas ideias como razoáveis ou, pelo menos, dignas de discussão.

Nas décadas que se seguiram à publicação de Libertação Animal, os cientistas deram cada vez mais atenção ao estudo da cognição dos animais, do seu comportamento e das relações entre seres humanos e animais. O que descobriram confirmou em grande parte as principais ideias perspicazes de Singer: a marcha humana do progresso está repleta de animais mortos. Há dezenas de milhares de anos, já os nossos antepassados da Idade da Pedra eram responsáveis por uma série de desastres ecológicos. Quando os primeiros seres humanos chegaram à Austrália, há cerca de 45 mil anos, rapidamente provocaram a extinção de 90 por cento dos seus animais de grande porte. Este foi o primeiro impacto significativo que o Homo sapiens teve no ecossistema. Não seria o último.

Há cerca de 15 mil anos, os seres humanos colonizaram a América, fazendo com isso desaparecer cerca de 75 por cento dos seus mamíferos de grande porte. Inúmeras outras espécies desapareceram de África, da Eurásia e das muitas ilhas nas proximidades das suas costas. O registo arqueológico de região atrás de região conta a mesma triste história. A tragédia começa com uma cena que mostra uma população rica e diversificada de animais de grande porte, sem qualquer rasto do Homo sapiens. Na segunda cena, evidenciado por um osso fossilizado, uma ponta de lança ou talvez uma fogueira, aparece o Sapiens. Segue-se rapidamente a terceira cena, na qual homens e mulheres ocupam o lugar central e a maior parte dos animais de grande porte, juntamente com muitos outros menores, estão ausentes. No seu todo, o Sapiens levou à extinção cerca de 50 por cento de todos os mamíferos terrestres de grande porte que existiam no planeta, antes de ter plantado o primeiro campo de trigo, de ter dado forma ao primeiro instrumento de metal, de ter escrito o primeiro texto, ou de ter cunhado a primeira moeda.

Nas relações entre seres humanos e animais, o grande marco que se seguiu foi a Revolução Agrícola, que acarretou o aparecimento de uma forma de vida completamente nova na Terra: os animais domesticados. Inicialmente, pareciam ter uma importância diminuta, dado que os seres humanos só conseguiram domesticar menos de vinte espécies de mamíferos e aves, em contraste com inúmeros milhares de espécies que continuaram a ser “selvagens”. Contudo, com o passar dos séculos, esta nova forma de vida tornou-se dominante. Hoje, mais de 90 por cento de todos os animais de grande porte são animais domesticados. Considere-se as galinhas, por exemplo. Há dez mil anos, eram aves raras, que não saíam de pequenos nichos do sul da Ásia. Hoje em dia, milhares de milhões de galinhas vivem em quase todos os continentes e ilhas, à excepção da Antárctica. A galinha domesticada é provavelmente a ave mais difundida nos anais do planeta Terra. Se avaliarmos o sucesso em termos numéricos, as galinhas, vacas e porcos são os animais mais bem-sucedidos de sempre.

Mas, ai de nós!, as espécies domesticadas pagaram o seu sucesso colectivo sem paralelo com um sofrimento individual sem precedentes. O reino animal tem conhecido muitos tipos de dor e infortúnio, ao longo de milhões de anos. Contudo, a Revolução Agrícola criou tipos completamente novos de sofrimento, que só se tornaram piores com o passar das gerações.

À primeira vista, poderá parecer que os animais domesticados se saem muito melhor do que os seus primos e antepassados selvagens. Os búfalos selvagens passam os dias procurando comida, água e abrigo, e são constantemente ameaçados por leões, parasitas, cheias e secas. O gado domesticado, em contraste, usufrui do cuidado e da protecção dos seres humanos. As pessoas dão comida, água e abrigo a vacas e vitelos; tratam-lhes as doenças; e protegem-nos dos predadores e das intempéries. É verdadeiro que a maior parte das vacas e vitelos cedo ou tarde acabam no matadouro. Contudo, será que isso significa que o seu destino é pior do que o do búfalo selvagem? Será melhor ser devorado por um leão do que abatido por um homem? Serão os dentes dos crocodilos mais gentis do que as lâminas de aço dos seres humanos?

O que torna a existência dos animais domesticados das quintas particularmente cruel não é apenas a maneira como morrem, mas, acima de tudo, as suas condições de vida. Há dois factores rivais que deram forma às vidas dos animais das quintas: por um lado, os seres humanos querem carne, leite, ovos, cabedal, força muscular e diversão. Por outro, os seres humanos têm de assegurar a sobrevivência de longo prazo e a reprodução dos seus animais de quinta. Em teoria, isto deveria ter protegido os animais da crueldade extrema. Se um produtor ordenhasse a vaca sem lhe dar comida e água, a produção de leite diminuiria, e a própria vaca depressa morreria.

Infelizmente, os seres humanos provocam um sofrimento tremendo aos animais de quinta sem pôr em perigo a sua sobrevivência, nem a sua reprodução. A raiz do problema é que os animais domésticos herdaram dos seus antepassados selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que são redundantes nas quintas humanas. Os produtores ignoram sistematicamente essas necessidades, sem ter com isso qualquer custo económico. Prendem os animais em pequenas jaulas, mutilam-lhes os cornos e rabos, separam as mães dos filhotes, e criam selectivamente monstruosidades. Os animais sofrem imenso, mas continuam a viver e multiplicam-se.

Não será que isso contradiz os princípios mais básicos da evolução darwinista? A teoria da evolução sustenta que todos os instintos, impulsos e emoções evoluíram em nome da sobrevivência e da reprodução. Nesse caso, não será que a reprodução contínua dos animais de quinta prova que todas as suas necessidades reais são acomodadas? Como poderá uma vaca ter uma “necessidade” que não é realmente necessária para a sobrevivência e a reprodução?

É certamente verdadeiro que todos os instintos, impulsos e emoções evoluíram sob a pressão evolutiva da sobrevivência e reprodução. Contudo, quando estas pressões desaparecem, os instintos, impulsos e emoções a que deram forma não se evaporam instantaneamente. Mesmo que já não sejam instrumentais para a sobrevivência, nem para a reprodução, continuam a dar forma às experiências subjectivas do animal. As necessidades físicas, emocionais e sociais das vacas, cães e seres humanos de hoje em dia não reflectem as suas condições actuais, mas antes as pressões evolutivas que os seus antepassados encontraram há dezenas de milhares de anos. Por que razão as pessoas de hoje gostam tanto de doces? Não é porque, no início do século XXI, tenhamos de empanturrar-nos de gelados e chocolates para sobreviver. Ao invés, é porque se os nossos antepassados da Idade da Pedra encontravam frutos maduros e doces, o que era mais sensato a fazer era comer o maior número deles o mais depressa possível. Por que razão conduzem os jovens irresponsavelmente, se envolvem em disputas violentas, e testam as suas habilidades entrando em sites confidenciais da Internet? Não é porque queiram desafiar as leis actuais (que proíbem todas essas coisas), mas porque têm de obedecer a decretos genéticos antigos: há 70 mil anos, um jovem caçador que arriscasse a vida perseguindo um mamute eclipsava todos os rivais e ganhava a mão da beleza da tribo — e agora estamos presos aos seus másculos genes.

É exactamente a mesma lógica que dá forma à vida das vacas e vitelos nas nossas quintas industriais. O gado selvagem antigo era social. Para sobreviver e reproduzir-se, esses animais precisavam de comunicar, cooperar e competir de maneira eficaz. Como todos os mamíferos sociais, o gado selvagem aprende as competências sociais necessárias por meio da brincadeira. Os cachorros, os gatinhos, os vitelos e as crianças gostam de brincar, porque a evolução implantou em todos esse impulso. Na vida selvagem, precisavam de brincar. Sem isso, não aprenderiam competências sociais vitais para a sobrevivência e reprodução. Se um gato ou vitelo nascesse com uma rara mutação que o tornasse indiferente à brincadeira, é improvável que sobrevivesse ou se reproduzisse. Do mesmo modo, a evolução implantou nos cachorros, gatinhos, vitelos e crianças um desejo arrasador de terem laços com as mães. Uma mutação acidental que enfraquecesse os laços entre mãe e filho era uma sentença de morte.

O que acontece quando criadores humanos hoje em dia pegam numa vitela jovem e a separam da mãe, pondo-a numa jaula minúscula, vacinando-a contra várias doenças, dando-lhe comida e água, e depois, quando atinge a idade apropriada, a inseminam artificialmente com esperma de um boi? De um ponto de vista objectivo, esta vitela já não precisa dos laços maternais, nem de brincar com os outros para sobreviver e reproduzir-se. Todas as suas necessidades são acomodadas pelos seus senhores humanos. Porém, do ponto de vista subjectivo, a vitela sente ainda um impulso muito forte para ter laços com a mãe e para brincar com outros vitelos. Se estas necessidades não forem acomodadas, sofre imenso.

Esta é a lição básica da psicologia evolutiva: uma necessidade que ganhou forma há milhares de gerações continua a ser sentida subjectivamente, mesmo que actualmente já não seja necessária para a sobrevivência, nem para a reprodução. Tragicamente, a Revolução Agrícola deu aos seres humanos o poder de assegurar a sobrevivência e reprodução dos animais domesticados, ao mesmo tempo que não têm consideração pelas suas necessidades subjectivas. Em consequência, os animais domesticados são os animais mais bem-sucedidos do mundo, colectivamente, ao mesmo tempo que são os animais mais desafortunados que alguma vez existiram, individualmente.

A situação piorou nos últimos séculos, quando a agricultura tradicional deu lugar à pecuária industrial. Nas sociedades tradicionais, como o Egipto da Antiguidade, o Império Romano ou a China medieval, os seres humanos tinham uma compreensão muito lacunar da bioquímica, da genética, da zoologia e da epidemiologia. Consequentemente, os seus poderes manipulativos eram limitados. Nas aldeias medievais, as galinhas andavam à solta entre as casas, debicavam sementes e minhocas no monte de lixo, e faziam ninhos no celeiro. Se um camponês ambicioso tentasse enclausurar milhares de galinhas num galinheiro sobrelotado, o resultado provável seria uma epidemia mortal de gripe aviária, matando todas as galinhas, e também vários aldeões. Nenhum sacerdote, xamã ou mago conseguiria evitá-lo.

Quando a ciência moderna decifrou os segredos das aves, dos vírus e dos antibióticos, os seres humanos puderam começar a sujeitar os animais a condições extremas de vida. Com a ajuda de vacinas, fármacos, hormonas, pesticidas, sistemas centralizados de ar condicionado, alimentadores automáticos, e muitas mais engenhocas, é agora possível enfiar dezenas de milhares de frangos em galinheiros minúsculos e produzir carne e ovos com uma eficácia sem precedentes.

O destino dos animais nessas instalações industriais tornou-se uma das mais urgentes questões éticas do nosso tempo, pelo menos em termos dos números envolvidos. Pois hoje em dia os animais de grande porte do planeta vivem na sua maior parte em quintas industriais. Imaginamos que a Terra é habitada por leões, elefantes, baleias e pinguins. Isso poderá ser verdadeiro no canal da National Geographic, nos filmes da Disney e nos contos de fadas infantis, mas já não é verdadeiro no mundo real fora do ecrã da televisão. O mundo conta com 40 mil leões e mil milhões de porcos domesticados; 500 mil elefantes e 1,5 mil milhões de vacas domesticadas; 50 milhões de pinguins e 20 mil milhões de frangos.

Em 2009, havia 1,6 mil milhões de aves na Europa, contando todas as espécies selvagens conjuntamente. Nesse mesmo ano, a indústria europeia de carne e ovos criou 1,9 mil milhões de frangos. No seu todo, os animais domesticados do mundo pesam cerca de 700 milhões de toneladas, em comparação com as 300 milhões de toneladas dos seres humanos, e menos de 100 milhões de toneladas de animais selvagens de grande porte (“grande porte” no sentido de pesarem pelo menos alguns quilos).

Daí que o destino dos animais das quintas não seja uma questão ética lateral. Diz respeito à maioria das grandes criaturas da Terra: dezenas de milhares de milhões de seres sencientes, cada qual com um mundo complexo de sensações e emoções, que vivem e morrem como engrenagens numa linha de produção industrial. Se Peter Singer tiver razão, a pecuária industrial é responsável por mais dor e infortúnio do que todas as guerras da história em conjunto.

O estudo científico dos animais tem até agora desempenhado um papel deplorável nesta tragédia. A comunidade científica tem usado o conhecimento crescente dos animais sobretudo para manipular as suas vidas de maneira mais eficaz, ao serviço da indústria humana. Contudo, é este mesmo conhecimento que tem demonstrado para lá de qualquer dúvida razoável que os animais das quintas são sencientes, com relações sociais intrincadas e padrões psicológicos sofisticados. Poderão não ser inteligentes como nós, mas conhecem certamente a dor, o medo, a solidão e o amor. Podem também sofrer, e podem também ser felizes.

É mais do que tempo de levar a sério estas descobertas científicas, porque à medida que o poder humano continua a crescer, também a nossa capacidade para provocar dano ou benefício aos outros animais cresce. Durante quatro mil milhões de anos, a vida na Terra foi dominada pela selecção natural. Agora, é cada vez mais dominada pelo desígnio humano inteligente. A biotecnologia, a nanotecnologia e a inteligência artificial irão em breve permitir que os seres humanos modifiquem os seres vivos de maneiras radicalmente novas, o que irá redefinir o próprio sentido da vida. Quando chegarmos ao ponto de conceber este admirável mundo novo, devemos ter em consideração o bem-estar de todos os seres sencientes, e não apenas do Homo sapiens.

A Libertação Animal, Hoje levanta questões éticas que todo o ser humano deve levar a sério. Nem toda a gente concordará com a tese de Singer. Mas dado o imenso poder que a humanidade tem sobre todos os outros animais, temos a responsabilidade ética de debatê-la cuidadosamente.

Yuval Noah Harari
Libertação Animal, de Peter Singer (Lisboa: Edições 70, 2024)
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457