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Crítica
1 de Dezembro de 2006   Filosofia da linguagem

A inescrutabilidade e relatividade da referência segundo Quine

Michael J. Loux e Wm. David Solomon
Tradução de Vítor Guerreiro

Neste ensaio discutiremos as doutrinas da inescrutabilidade e relatividade referenciais tal como surgem nos escritos recentes de Quine, em particular nas John Dewey Lectures, “Relatividade Ontológica”. O ensaio divide-se em três secções. Na primeira, procuramos explicar as doutrinas relevantes; na segunda, especificar o contexto filosófico donde emergem tais doutrinas; e na secção final, descrever algumas das dificuldades quanto à apresentação que Quine faz das mesmas.

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Embora Quine nunca tenha usado a expressão “inescrutabilidade da referência” antes das John Dewey Lectures, o conceito da inescrutabilidade referencial desempenha um papel de relevo desde Word and Object. No Capítulo II desta obra, Quine argumenta a favor da indeterminação da tradução radical; e a impossibilidade de determinar a força referencial entre linguagens não relacionadas é de importância crucial para o seu argumento. No exemplo de Quine, um linguista ocupa-se da tradução radical, a “tradução da linguagem de um povo até então desconhecido;”1 e é confrontado com a expressão “gavagai”. Os utentes da linguagem em causa usam essa expressão precisamente nos mesmos contextos em que usamos o termo “coelho”. Ao que parece, “gavagai” e “coelho” são sinónimos. Quine, contudo, defende que uma tal inferência seria ilegítima. Não só “gavagai” e “coelho” poderiam não ser sinónimos; como não temos qualquer garantia de que os dois termos tenham a mais ténue relação de co-extensionalidade. De facto, enquanto “coelho” denota objectos físicos que perduram, “gavagai” poderia denotar um segmento espaciotemporal de coelho, uma parte não destacada de coelho, ou mesmo a exemplificação particular de um universal, Coelho.2

Tão-pouco, defende Quine, qualquer pormenor no comportamento linguístico do falante indígena permitirá ao linguista determinar qual destas possibilidades se deve excluir. Nem sequer a ostensão nos pode ajudar aqui; pois, como Quine argumentará em diversas ocasiões, apontar para um objecto torna-se um gesto vazio de sentido, se não recorrermos às noções de identidade e diferença.3 De modo a sabermos o que está a ser indicado, temos de saber em que condições os objectos exibidos se podem entender como um, em vez de dois ou três; analogamente, temos de saber em que condições se indica ou não um mesmo objecto em ocasiões diferentes. Infelizmente, o modo como na linguagem-objecto se exprime a identidade e outras noções semelhantes permanece tão inacessível, à luz da informação de que dispomos, quanto o poder referencial dos termos dessa linguagem. Na verdade, a capacidade de fixar objectos de referência e a capacidade de lidar com o conceito de identidade são interdependentes: não se pode ter qualquer uma delas sem ter ao mesmo tempo a outra.

Quine, como é óbvio, concede que o linguista será capaz de isolar um conjunto de locuções indígenas e interpretá-las como equivalentes ao aparato da identidade no inglês. A sua posição é de que nada no comportamento discursivo do indígena poderá determinar a interpretação relevante. Por conseguinte, o que um linguista traduz por “mesmo”, outro poderá, mantendo-se em conformidade com a totalidade das características discursivas do indígena, traduzir por “pertence ao mesmo”, desde que, naturalmente, faça suficientes alterações compensatórias ao longo da sua tradução. Assim, de acordo com o primeiro linguista, um indígena em particular dirá que este coelho e aquele são o mesmo; ao passo que, de acordo com o segundo linguista, estará a dizer que este segmento espaciotemporal de coelho e aquele segmento espaciotemporal de coelho pertencem ao mesmo coelho. A segunda tradução poderá parecer estranha, a nós que falamos, normalmente, de objectos fisícos que perduram; mas isto é lateral ao argumento. Nada há no comportamento discursivo dos indígenas, sustenta Quine, que determine qual das duas traduções é a melhor. Estão em paridade; cada uma é tão adequada como a outra, o que equivale a dizer que nada há acerca do qual possam ser correctas ou incorrectas. Esgotámos todos os dados potencialmente decisivos e achamo-nos a um nível em que a tradução é, em princípio, indeterminada.4

Ora, ainda que o capítulo II de Word and Object lide tão-somente com o exemplo da tradução radical, Quine mostra-se disposto a aceitar a afirmação mais geral de que toda a tradução implica a inescrutabilidade da referência.5 Em “Relatividade Ontológica”, Quine procura extrapolar a inescrutabilidade da referência para lá do que normalmente chamamos tradução 1) aos casos em que dois falantes de uma mesma linguagem comunicam entre si e 2) ao caso mais restrito em que um indivíduo procura clarificar para si mesmo o conteúdo do seu próprio pensamento e discurso.

Nestas prelecções, Quine ataca o que designa de mentalismo, a ideia de que a semântica de uma pessoa é de algum modo determinada na sua mente para lá do que o seu comportamento discursivo nos pode revelar.6 Em resposta a esse ponto de vista, Quine apela à indeterminação da tradução e, em particular, à inescrutabilidade referencial que caracteriza a tradução radical. Então, sugere que a comunicação entre locutores de uma e a mesma linguagem implica analogamente uma forma de tradução, que Quine designa tradução homofónica. Ao falar com o nosso vizinho, emparelhamos as sequências sonoras que este articula com sequências sonoras semelhantes do nosso idiolecto; e atribuímos sentido às suas observações interpretando-as como de algum modo equivalentes às suas contrapartidas no nosso idiolecto.7 Quine argumenta, contudo, que nada no comportamento discursivo do nosso vizinho nos compele a seguir o método da tradução homofónica. Como no caso da tradução radical, os únicos dados disponíveis subdeterminam o método de tradução que usamos. Com base no comportamento discursivo do nosso vizinho, poderíamos igualmente suspender a tradução homofónica e reinterpretar o seu discurso acerca de coelhos como um discurso sobre segmentos espácio-temporais de coelho ou manifestações particulares do universal Coelho. Sem dúvida, isto implicaria um elevado número de ajustes compensatórios ao longo da nossa tradução; mas Quine sustenta que podíamos, com suficiente manha, “reproduzir em casa a inescrutabilidade da referência”.8

A questão é que há uma indeterminação objectiva subjacente à especificação da ontologia de outro falante. Acerca de que itens pretende o nosso vizinho falar quando diz “Os coelhos estão a fugir das gaiolas”? Não parece haver resposta objectiva à questão, nenhuma matéria de facto; tão-pouco a resposta do nosso vizinho, “Que pergunta mais tola! Falo de coelhos, obviamente!” nos poderá ajudar a resolver a indeterminação; pois uma vez suspensa a tradução homofónica, o uso que ele faz de expressões referenciais deixa de ser decisivo para a resolução de questões ontológicas.9

Mas com certeza que o nosso vizinho se acha numa posição similar relativamente a nós; e se para ele não há matéria de facto, não há matéria de facto, sem mais. De contrário, seria na verdade uma questão de saber quando compreendemos as coisas correctamente; só que nunca poderíamos saber quando o teríamos feito. Neste contexto, Quine faz apelo à perspectiva (que atribui a Dewey) segundo a qual não pode haver uma linguagem privada. Não podemos ter de nós qualquer conhecimento de que os outros, pelo menos em princípio, não fossem igualmente capazes. Mas se as nossas elocuções são realmente inescrutáveis para os outros, então não poderá haver sentido em afirmar que sabemos se falamos, por exemplo, de coelhos e não de segmentos espácio-temporais de coelhos.10

Poderia parecer que se a inescrutabilidade da referência é tão completamente persuasiva como Quine sugere, então a própria possibilidade de pensar ou falar acerca de objectos ficaria excluída. Quine não retira, contudo, tal lição dos seus argumentos. Apesar da inescrutabilidade da referência, somos capazes de pensar e falar coerentemente acerca de objectos. O elemento mediador é a presença do que Quine apelida de linguagem de fundo. O pensamento e a comunicação só são significativos porque pressupomos que alguns termos têm referência fixa. Não questionamos o poder referencial destes termos; mas, agindo a partir desta linguagem de fundo, podemos questionar e questionamos de facto o poder referencial de outras expressões. A inescrutabilidade referencial pode imiscuir-se em qualquer nível; o efeito líquido da linguagem de fundo consiste apenas em manter tal inescrutabilidade um degrau acima de onde operamos. Usando os termos dessa linguagem, podemos falar e pensar em objectos de um modo inequívoco; e reportando-nos a esses termos, podemos escrutinar o valor referencial de outros termos. A nossa linguagem de fundo pode mudar de contexto para contexto; mas não se pode efectuar coerentemente o escrutínio à revelia de qualquer linguagem de fundo; separadas de uma linguagem de fundo, as nossas questões tornam-se vazias e as nossas respostas ininteligíveis.11

No ponto em que estão as coisas, eu e o meu vizinho somos capazes de dialogar com notável êxito não apenas acerca de coelhos mas também de coisas igualmente problemáticas, como nevões, calçadas e toldos. O que torna inteligível o nosso uso referencial de conceitos, quer para nós mesmos, quer de uns para os outros, é a presença de um ponto fixo de orientação. Quando o meu vizinho me informa do fungo que se apodera do nosso relvado comum, compreendo o que ele me diz; sei do que fala; e isto apenas porque no discurso quotidiano tomamos como sistema de orientação a nossa linguagem de origem com o seu aparato referencial. Não precisamos, contudo, de o fazer. Dando um passo atrás, como no exemplo acima mencionado, podemos avaliar até que ponto a referência é inescrutável, mesmo na linguagem de origem; mas para fazer isto, temos novamente de presumir alguma linguagem de fundo. As nossas investigações filosóficas ganham substância relativamente a esta linguagem de fundo.

2

A que tipo de perspectiva se opõe Quine quando afirma que a referência é sempre relativa a uma linguagem de fundo? De passagem, mencionámos a posição a que Quine chama “mentalismo”; mas a nossa discussão não permitiu realmente clarificar a índole desta perspectiva, nem assinalou com precisão de que modo se lhe opõe a abordagem relativista de Quine. Considerando em conjunto o peso substancial dos seus argumentos e as breves observações que faz a perspectivas adversárias, aparentemente Quine quer que a sua abordagem responda a filósofos para quem, a dada altura, os termos linguísticos tivessem de se “conectar” directamente (independentemente da mediação de outras expressões referenciais) aos itens do mundo a que se referem.12 Tal filósofo poderia argumentar do seguinte modo:

A linguagem é sobre o mundo. Usamos os termos linguísticos para identificar objectos e afirmar coisas sobre eles. Em geral, a relação entre palavra e coisa é indirecta; é mediada por outras expressões referenciais. Ao assinalar o que tal termo nomeia ou aquilo a que se aplica, servimo-nos de outros dispositivos referenciais. Mas a relação entre palavra e objecto não pode ser sempre indirecta neste sentido. De contrário, cada termo apenas teria poder referencial em virtude do poder referencial de outras expressões, e estas, por sua vez, apenas indirectamente se reportariam ao mundo, e por aí em diante ad infinitum. Nunca os termos referenciais da linguagem se escorariam nos itens a que se referem; e assim, por conseguinte, a linguagem não poderia ser sobre o mundo.

O que precisamos é de uma “saída para o labirinto verbal”,13 e tal saída é facultada por uma classe de termos referenciais que se reportam directamente ao mundo. No caso de tais termos, o poder referencial é independente da intrusão das restantes expressões referenciais. Referem, de e por si mesmos; e ao passo que o seu poder referencial é imediato, medeiam as relações referenciais que outros termos mantêm com objectos no mundo. Na verdade, é apenas pela mediação destes termos referencialmente primitivos que se pode dizer que as expressões têm em última instância o mundo por objecto. Assim, tais termos constituem o alicerce de todo o uso referencial da linguagem; escoram a linguagem na realidade que é o seu objecto.

A posição aqui delineada relaciona-se intimamente com a perspectiva fundacionalista do conhecimento humano a que Quine se tem oposto desde longa data. O ponto fulcral de tal perspectiva é a existência necessária de um nível onde um indivíduo fosse capaz de captar a conexão entre palavra e coisa independentemente do poder referencial das restantes expressões. Tal nível implicaria conhecimento, isto é, conhecimento daquilo a que os termos referencialmente primitivos se referem; mas este seria um tipo peculiar de conhecimento; pois um indivíduo nunca poderia exprimir precisamente aquilo de que tinha obtido conhecimento. Suponhamos que “x” é um desses termos referencialmente básicos. Uma pessoa saberia o que “x” refere ou a que objectos se aplica, mas jamais seria capaz de nos assinalar o objecto ou objectos em questão. O mais que poderia dizer é que “x” refere x ou que se aplica a xizes. A especificação de x ou xizes não poderia prosseguir, e isto, precisamente porque nos encontramos a um nível em que a referência não é mediada.

A resposta de Quine a tudo isto, obviamente, é que não há tais termos referencialmente privilegiados. De modo a especificar o poder referencial de qualquer termo, temos sempre de confiar noutras expressões cujo poder referencial tomamos por garantido. Isto é o melhor que podemos fazer, e é o suficiente. É suficiente porque nos capacita a pensar e falar acerca de coisas no mundo. É o melhor que podemos fazer porque, mesmo no exemplo do egocêntrico, a referência é inescrutável. Dado não poder haver linguagem privada, não posso conhecer factos acerca de mim mesmo (factos acerca da força referencial das minhas observações), a que os outros, em princípio, não possam ter acesso. Os outros, por seu turno, são incapazes de determinar, de qualquer modo absoluto, o poder referencial das minhas observações, pois só podem captar a substância de tais observações efectuando uma forma de tradução — a tradução homofónica; e, como mostra o caso da tradução radical, a tradução implica sempre a inescrutabilidade referencial.

3

Embora possamos considerar discutíveis as armas que Quine emprega contra o mentalista ingénuo, podemos, não obstante, estar dispostos a alegar que Quine tem razão em criticar a perspectiva. Poderíamos argumentar que, dado não existir qualquer conhecimento não-verbal do tipo exigido, não podem haver termos referencialmente privilegiados. Assim, é legítimo afirmar que se alguém sabe que p, pode dizer-nos que p — este é um aspecto lógico do termo “saber”. Mas, continuaríamos, se o objecto de conhecimento é o poder referencial de um termo, tal conhecimento só é susceptível de ser articulado em função de outras expressões linguísticas; novamente, um aspecto trivial: precisamos de palavras para falar. Neste sentido trivial, não pode haver “saída do labirinto verbal”; nem, poderíamos adiantar, devia tal dar azo a perplexidades filosóficas. Ora, embora sintamos que esta linha de argumentação precisa de ser explicitada com razoável detalhe, suspeitamos de que se encontra no caminho certo. Sem dúvida, o ataque de Quine ao mentalista ingénuo incorpora pontos de vista intimamente relacionados com estes; mas implica muito mais; e aqui, sentimos poder entrar em desacordo com Quine.

Considere-se, em primeiro lugar, o argumento de Quine a favor da inescrutabilidade da referência na comunicação intralinguística. Como mencionámos algumas vezes, a inescrutabilidade da referência contamina a comunicação entre falantes de uma e da mesma linguagem dado estar implicada uma forma de tradução. Ora, ainda que partamos do princípio de que a tradução envolve sempre a inescrutabilidade da referência, a questão permanece: implicará a comunicação intralinguística algo a que possamos chamar legitimamente tradução?

As afirmações de Quine sobre o emparelhamento de frases não são decisivas aqui; pois mesmo que fôssemos capazes de mostrar que o tipo relevante de emparelhaento é operativo em toda a comunicação intralinguística, teríamos ainda de demonstrar que o emparelhamento é uma forma de tradução. Ora, há boas razões para crer que não se trata de uma forma de tradução. A tradução implica, entre outras coisas, a passagem de frases numa linguagem para frases noutra linguagem; mas é difícil ver algo na comunicação intralinguística que implique tal passagem.

Suponhamos que ao falar com o nosso vizinho efectuamos realmente o tipo de emparelhamento de frases que Quine imagina que fazemos. O meu vizinho articula uma sequência de sons. Supostamente, eu emparelho tal sequência com uma sequência particular de sons no meu idiolecto; pois se a identificação for aqui impossível, o conceito de “meu idiolecto” torna-se o conceito de uma linguagem privada, e não há ideia a que Quine se oponha mais vigorosamente. Com que sequências de sons devemos então emparelhar as sequências sonoras do nosso vizinho? Independentemente da sequência que escolhemos, tal sequência pertence ou à mesma linguagem do meu vizinho, caso em que não se verifica a tradução, ou a uma linguagem diferente, caso em que não se verifica já a comunicação intralinguística.

Sem dúvida que Quine alegaria que nos atirámos com demasiada severidade ao termo “tradução”. Talvez sugerisse que este não é um ingrediente essencial do seu argumento; nem sequer é necessário introduzir a ideia de emparelhamento de frases com frases. O facto persiste; é possível reinterpretar as observações do meu vizinho de tal modo que, continuando a acomodar as suas características discursivas evidentes, posso entender as suas aparentes referências a coelhos como referências a segmentos espácio-temporais de coelhos. Mas, concedendo a Quine esta modificação, persiste uma dificuldade fundamental. Se devo reinterpretar as observações do meu vizinho da maneira prescrita, tenho de saber como as reinterpreto — tenho de saber, por exemplo, que trato o seu uso do termo “coelho” como diferente do meu próprio uso desse termo; tenho de saber que a minha interpretação do seu discurso implica tomar o seu uso de “coelho” como um equivalente referencial do meu “segmento espaciotemporal de coelho”. Mas para saber tais coisas tenho de saber como uso os termos “coelho” e “segmento espaciotemporal de coelho”.

Ora, isto é importante pois, num momento posterior do argumento a favor da relatividade referencial, Quine pretende afirmar que há um sentido relevante no qual eu não posso saber tais coisas e, o que é mais surpreendente, recorre à própria possibilidade de reinterpretar deste modo as observações do meu vizinho para demonstrar isto. Assim, Quine argumenta que, sendo a referência, do ponto de vista intralinguístico, inescrutável, e dado que não pode haver linguagem privada, a referência tem de ser inescrutável também no exemplo do egocêntrico; mas, como acabámos de assinalar, Quine só pode demonstrar a inescrutabilidade intralinguística se partir precisamente da perspectiva inversa; que posso captar, de algum modo determinado, o valor referencial de expressões do meu idiolecto.

Em sentido forte, o argumento de Quine a favor da inescrutabilidade da referência no exemplo do egocêntrico pressupõe que, pelo menos neste caso, a referência não é inescrutável. Se concedemos a impossibilidade de uma linguagem privada, o passo crucial naquele argumento é a passagem para a afirmação de que a referência é inescrutável no exemplo intralinguístico. Mas não faz seguramente qualquer sentido supor que o nosso vizinho se refere a um dentre uma série de objectos categoricamente diferentes a menos que ele possa compreender o que são tais objectos categoricamente diferentes. Tal entendimento, contudo, é precisamente o que a inescrutabilidade egocêntrica pressupõe.

Provavelmente, Quine alegaria que a nossa objecção não reconhece a acção omnipresente de uma linguagem de fundo. Assim, apenas assinalamos dificuldades nos argumentos análogos, para a inescrutabilidade intralinguística e egocêntrica, porque somos incapazes de perceber como é possível algo, que a um dado nível funciona como sistema de orientação para avaliar o poder referencial, tornar-se em si mesmo, a outro nível, o locus da inescrutabilidade referencial. Infelizmente, Quine não pode defender estes argumentos recorrendo à sua doutrina da relatividade referencial; pois é precisamente tal doutrina da relatividade o que os argumentos em causa procuram demonstrar. É por a referência ser, mesmo no caso do egocêntrico, inescrutável, que o poder referencial tem sempre de ser relativo a uma linguagem de fundo.

Numa formulação ligeiramente diferente, a estratégia de Quine consiste em fazer-nos aceitar o que entende ser uma perspectiva controversa colocando um problema que noutros aspectos é irresolúvel. Quine sustenta que, de modo a evitar a conclusão de que todo o pensamento e discurso acerca de objectos é incoerente, temos de aceitar a perspectiva de que a referência é sempre relativa a uma linguagem de fundo. O que suscita aqui o problema é o facto de em ambos os exemplos, intralinguístico e egocêntrico, a referência ser inescrutável.14 O que pretendemos sugerir é que Quine apenas pode formular coerentemente o seu argumento em favor destas alegações na condição de aceitar a controversa perspectiva em causa, nomeadamente, que a referência é sempre relativa a uma linguagem de fundo.

Contudo, em si, a ideia de uma linguagem de fundo é ainda assim problemática. Uma linguagem de fundo permite-nos fazer o quê? Pelo menos uma coisa é óbvia: torna-nos capazes de levantar questões ontológicas; as nossas questões acerca do âmbito referencial deste ou daquele termo ganham sentido relativamente a essa linguagem. Mas permitir-nos-á a linguagem de fundo resolver tais problemas? Em geral, Quine fala como se assim fosse; mas a relatividade imiscui-se uma vez mais, pois só podemos resolver tais questões reportando-nos à linguagem de fundo em que foram formuladas. Mas isto leva-nos a perguntar como o conceito de uma linguagem de fundo acarreta a suposta indeterminação da tradução radical. Será o linguista capaz de decidir, relativamente à sua linguagem de origem, o que poderia, independentemente de tal sistema de orientação, ser objectivamente indeterminado; ou será o caso da tradução radical diferente do exemplo da comunicação intralinguística? A abordagem de Quine pressupõe que os casos intralinguístico e interlinguístico estão a par. Assim, pareceria que o conceito de linguagem de fundo se comporta de modo similar em ambos os casos. Infelizmente, se o faz, o argumento de Quine enfrenta graves dificuldades. Se, reportando-se à sua linguagem de origem, o linguista é capaz de resolver problemas de referência na linguagem-objecto, então a tradução radical não aparentaria estar em tão maus lençóis como Quine sugere. Por outro lado, se o conceito de linguagem de fundo se comporta diferentemente nos dois casos, então não é claro que ambos sejam suficientemente similares para que Quine possa extrapolar, como o faz, da inescrutabilidade referencial no caso interlinguístico para a inescrutabilidade referencial no caso intralinguístico.

Muito mais se podia dizer acerca da abordagem de Quine à referência. Os nossos breves apontamentos servem para assinalar os aspectos mais problemáticos da sua perspectiva. Talvez as nossas críticas tenham origem numa incompreensão do que Quine efectivamente diz; mas se tal é verdade, a dificuldade persiste, como noutros casos, na forma obscura com que Quine apresentou a sua posição. Assim, se interpretámos mal as afirmações de Quine, este ensaio será melhor entendido como um desafio a que o proponente da perspectiva de Quine clarifique a sua posição.

Michael J. Loux e Wm. David Solomon
Notre Dame Journal of Formal Logic, 1974, vol. 15, no. 1, pp. 16-24.

Notas

  1. Word and Object, MIT Press, Cambridge (1960), p. 28.
  2. Ibid., pp. 51–54.
  3. Ibid.
  4. Ibid. p. 73. Quine nega que o bilinguismo sirva de contra-exemplo à indeterminação da tradução; pois sustenta que duas pessoas, bilingues relativamente às mesmas línguas, podem correlacionar termos e frases destas línguas de maneiras diferentes e que nada no seu comportamento linguístico nos revelaria a diferença na correlação. Cf. p. 74.
  5. Quine considera o exemplo da tradução radical, pois aí o substancial da questão parecerá mais digerível. Ver pp. 27-28. No contexto da tradução radical, excluem-se as semelhanças etimológicas entre línguas; e mais importante, não existem, no caso da tradução radical, métodos estabelecidos de tradução que possam incutir no leitor quaisquer preconceitos contra as afirmações de Quine. Gilbert Harmon pensa que Quine defende a afirmação forte (que toda a tradução é indeterminada); ao que Quine reage favoravelmente. Ver Words and Objections: Essays on the Work of W.V. Quine, ed. Donald Davidson e J. Hintikka, Humanities Press, Nova Iorque (1969), pp. 14-26 e 295-297.
  6. Ontological Relativity and Other Essays, Columbia University Press, Nova Yorque (1969), pp. 26-29.
  7. Ibid., pp. 46-47.
  8. Ibid., p. 47.
  9. Ibid.
  10. Ibid.
  11. Ibid. pp. 48-50. Neste contexto, Quine compara o estatuto de conceitos referenciais ao estatuto de conceitos espaciais. Tal como não faz qualquer sentido especificar a posição ou velocidade absolutas deste ou daquele corpo, não faz qualquer sentido especificar, de um modo absoluto, o poder referencial deste ou daquele termo.
  12. A nossa reconstituição desta perspectiva baseia-se, em grande medida, no facto de que ao falar do que designa por “mentalismo” ou o “mito do museu”, Quine mencionar o jovem Wittgenstein como representante da tradição à qual se opõe. Ora, enquanto que se pode argumentar que a perspectiva do Tractatus se desvia em importantes aspectos da posição que aqui delineamos, não há dúvida que considerações semelhantes exerceram influência na formação da perspectiva do jovem Wittgenstein.
  13. D. F. Pears, “Universals” in Logic and Language, Second Series, ed. by A. G. N. Flew, Basil Blackwell, Oxford (1953), p. 53.
  14. Ver Ontological Relativity and Other Essays, em particular pp. 47-49.
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