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Crítica
26 de Agosto de 2017   Metafísica

Linguagem e ontologia social

John Searle
Tradução de Vítor Guerreiro

Este artigo é acerca da ontologia de uma determinada classe de entidades sociais e do papel da linguagem na sua criação e manutenção. As entidades sociais que tenho em mente são os objectos como a nota de 20 dólares que tenho na mão, a Universidade da Califórnia e o Presidente dos Estados Unidos. Também incluo factos como o de Barack Obama ser o Presidente dos Estados Unidos, de o pedaço de papel que seguro na mão ser uma nota de 20 dólares e de eu ser um cidadão dos Estados Unidos. A estes chamo “factos institucionais” e ficará claro que são logicamente anteriores aos objectos (porque o objecto só é institucional se for criado por uma determinada operação linguística que cria um facto institucional). Também pretendo subsumir no conceito de entidade social instituições como o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento. Creio que no que diz respeito às ciências sociais, a ontologia social é anterior à metodologia e à teoria. É anterior no sentido de que a menos que tenhamos uma concepção clara da natureza dos fenómenos que investigamos, é improvável que desenvolvamos a metodologia e os instrumentos teóricos adequados para conduzir a investigação.

Tenho também um objectivo polémico ao pretender discutir a ontologia social, na medida em que acredito que temos uma longa tradição, que remonta aos gregos antigos, de compreender erroneamente o papel da linguagem na criação e constituição da realidade social e política. Creio ser característico de todos os autores na nossa tradição, de que tenho conhecimento, dos gregos até ao presente, o não verem com precisão o papel da linguagem na criação, constituição e manutenção da realidade social. Os teorizadores sociais e políticos pressupõem que somos já animais dotados de linguagem e daí passam para a discussão da sociedade, sem compreender a importância da linguagem para a própria existência da realidade social humana. Todos os autores que li, dos gregos antigos até autores contemporâneos como Foucault, Bourdieu e Habermas, dão a linguagem como garantida. O que quero dizer ao afirmar que dão a linguagem como garantida é que nas suas discussões sobre a realidade social discutem pessoas que são já dotadas de linguagem. Pode parecer intrigante acusar Foucault, Bourdieu e Habermas de darem a linguagem como garantida, uma vez que realmente discutem a linguagem e a sua relação com a sociedade. Mas parece-me que em cada caso não nos chegam a dizer o que é a linguagem. Por exemplo, Bourdieu afirma, correctamente, que a capacidade de controlar o modo como as questões políticas são categorizadas linguisticamente é um elemento importante no poder político. Mas não nos diz de modo algum o que envolve esta capacidade de usar a linguagem para categorizar. Quais são as implicações ontológicas da própria capacidade de categorizar linguisticamente? Os que nesse aspecto mais pecam são os teorizadores do contrato social, que pressupõem simplesmente que somos animais que falam uma língua e que todos nos juntamos no estado de natureza e formamos um contrato social. O que argumento neste artigo é que depois de termos linguagem temos já um contrato social. O contrato social está integrado na própria essência da linguagem. Assim, de modo a dar início a esta discussão, examinarei, muito brevemente, a natureza da linguagem.

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Dúvidas?

O que é a linguagem?

A linguagem humana é uma extensão de formas pré-linguísticas de intencionalidade e preciso identificar algumas das características relevantes dos estados intencionais que formam a base da evolução da linguagem. Não sabemos como a linguagem evoluiu a partir de formas de vida mental pré-linguísticas e, dada a ausência de indícios fósseis, talvez nunca venhamos a saber em detalhe como evoluiu; mas mesmo não conhecendo os detalhes da evolução da linguagem podemos ainda identificar as distinções conceptuais entre as formas de intencionalidade pré-linguisticas e as formas de intencionalidade linguísticas. Numa dada altura, criaturas mais ou menos semelhantes a nós, os primeiros seres humanos, caminharam sobre a Terra em África e não tinham linguagem. Agora temos linguagem. O que temos nós que eles não tinham? Mais especificamente: que recursos conceptuais estão já disponíveis na intencionalidade pré-linguística e o que precisamos de acrescentar à intencionalidade pré-linguística para obter a linguagem?

Para começar a responder essa questão, tenho de dizer algo acerca da intencionalidade em geral. Os estados e eventos intencionais são aqueles estados e eventos mentais direccionados a objectos e estados de coisas no mundo, ou acerca deles. Incluem não só o intencionar, no sentido em que tenciono ir ao cinema, mas também a percepção e a acção intencional, a crença, o desejo, as emoções e, na verdade, qualquer estado que tenha um conteúdo direccionado. Os estados intencionais têm algumas características notáveis que já prenunciam características correspondentes na linguagem e na base das quais a linguagem se pode desenvolver. Especificamente, os estados intencionais têm por norma conteúdo proposicional num certo modo psicológico. Assim, por exemplo, posso acreditar que está a chover, recear que esteja a chover ou ter a esperança de que esteja a chover. Em cada caso tenho o mesmo conteúdo proposicional — que está a chover — mas em diferentes modos psicológicos. Isso corresponde na linguagem à distinção entre o conteúdo proposicional de um acto de fala e o modo do acto de fala, o tipo de acto de fala de que se trata. Assim, posso ordenar ao leitor que se retire da sala; posso perguntar-lhe se irá sair; e posso prever que irá sair da sala. Em cada caso temos o mesmo conteúdo proposicional — que o leitor sairá da sala — apresentado num diferente tipo de acto de fala. A notação que uso para representar essas distinções consiste em escrever “E(p)” sendo que “E” representa o estado psicológico e “p” representa o conteúdo proposicional. Uso também “F(p) para o acto ilocutório em que “F” representa a força ilocutória e “p” representa o conteúdo proposicional.

Dado que os estados intencionais normalmente têm conteúdo proposicional, podem representar o modo como as coisas são no mundo, ou como gostaríamos que fossem, ou como pretendemos mudá-las. Supostamente uma crença representa o modo como as coisas são no mundo, um desejo representa como gostaríamos que fossem, uma intenção como pretendemos mudá-las. Introduzamos a noção de condições de satisfação a fim de descrever o que há de comum em todos esses casos para que então, deixando de lado todo o género de detalhes, possamos dizer que a intencionalidade envolve essencialmente a representação de condições de satisfação. Em cada caso, o estado intencional representa as suas condições de satisfação: condições de verdade no caso da crença, condições de execução no caso das intenções e condições de realização no caso dos desejos.

Outra característica crucial dos estados intencionais que se estende à linguagem é que os estados intencionais têm diferentes modos de se ajustarem à realidade. O propósito de uma crença é ser verdadeira; o propósito de uma intenção é ser levada a cabo e o propósito de um desejo é ser realizado. Acerca das crenças podemos, portanto, pensar que delas se espera que representem o modo como as coisas são. O modo de se ajustarem ao mundo é aquilo a que podemos chamar de direcção de ajuste “mente-mundo” (o estado na mente deve representar o modo como as coisas são no mundo), ao passo que dos desejos e intenções não se espera que representem o modo como as coisas são, mas antes como gostaríamos que fossem, ou como pretendemos mudá-las e, portanto, podemos dizer que têm a direcção de ajuste “mundo-mente” (a ideia é que o estado do mundo venha a corresponder ao modo como as coisas são representadas na mente). O melhor teste para a presença da direcção de ajuste mente-mundo é perguntar “Pode o estado em questão ser literalmente verdadeiro ou falso?” As crenças podem ser verdadeiras ou falsas e portanto têm a direcção de ajuste mente-mundo. Os desejos e intenções não podem ser literalmente verdadeiros ou falsos e portanto não têm a direcção de ajuste mente-mundo. Tudo isso se irá estender à linguagem (com algumas variações absolutamente cruciais). Penso em termos de metáforas simples e nessa medida agrada-me pensar na direcção de ajuste mente-mundo (ou palavra-mundo) como um movimento descendente, ↓, da representação para a realidade, e na direcção de ajuste mundo-mente (ou mundo-palavra) como um movimento ascendente, ↑, da realidade para a representação. Uso assim as setas ascendentes e descendentes a fim de representar as duas direções de ajuste. As afirmações, bem como as crenças, têm a direcção de ajuste descendente, ↓; as ordens e as promessas, bem como os desejos e as intenções, têm a direcção de ajuste ascendente, ↑.

Os nossos humanos primevos têm também percepções e acções conscientes e isso confere-lhes um conjunto de categorias perceptivas e agentivas de modo a poderem estruturar e organizar as suas experiências. Irão percepcionar objectos, propriedades e relações e agir de tal modo que manifestam o seu próprio carácter de agentes e a sua capacidade para ter experiência da causalidade. Se podem reconhecer o mesmo objecto em diferentes ocasiões e distinguir um objecto de outro, manifestam as categorias de identidade e de individuação. Podem assim operar com um conjunto bastante robusto de categorias filosóficas tradicionais (por exemplo, aristotélicas e kantianas), embora seja óbvio que não têm conceitos correspondentes a essas categorias. Quando afirmo que têm um conjunto robusto de categorias, o que quero dizer é que operam com categorias como “identidade” e “individuação”, “propriedade” e “objecto”, “relação” e “causalidade”, bem como “agência” e “acção”.

Até agora falámos como se a intencionalidade fosse uma propriedade exclusiva de mentes individuais, mas é claro que ao compreender a sociedade temos de introduzir a noção de intencionalidade colectiva. Quando o leitor e eu estamos empenhados num qualquer género de comportamento cooperativo, como preparar conjuntamente uma refeição ou ter uma conversa, temos intencionalidade colectiva. Um encontro onde todos nos reunimos para discutir problemas comuns é um caso paradigmático de intencionalidade colectiva. Toda a intencionalidade se encontra nos cérebros de seres humanos e de animais individuais, mas uma parte adquire a forma da primeira pessoa do plural. Não se trata apenas de eu fazer isso e o leitor fazer isso, mas de o fazermos juntos; e esse facto é representado em cada uma das nossas cabeças sob a forma de intencionalidade colectiva.

Para resumir o que escrevi até agora, encontramos algumas analogias notáveis entre a estrutura formal dos estados intencionais e a estrutura formal dos actos de fala linguísticos. Especificamente, encontrámos três áreas de semelhança. Primeiro, descobrimos que a distinção conteúdo-tipo se aplica tanto a F(p) como a E(p). Segundo, descobrimos que a noção de condições de satisfação se aplica a ambos. Terceiro, descobrimos que a noção de direcção de ajuste se aplica a ambos. E podemos usá-las para mostrar como construir uma linguagem sobre a base da intencionalidade pré-linguística. Ademais, encontrámos um fenómeno que será essencial quer para a linguagem quer para a sociedade, nomeadamente, a intencionalidade colectiva. Além disso, pressupomos que os seres humanos primevos pré-linguísticos, dotados de um aparato cognitivo semelhante ao nosso, têm experiências que manifestam categorias como objecto, identidade, propriedade, relação, etc. O que temos de acrescentar a tudo isso a fim de obtermos a linguagem?

Significado, representações, convenções e sintaxe

Há muitas diferenças entre as formas linguísticas e as formas pré-linguísticas de intencionalidade, mas para os fins da presente discussão, que é sobre a ontologia social, as três características cruciais da linguagem que a intencionalidade pré-linguística não tem são o significado, a convenção e frases com estrutura sintática interna. Passo agora à discussão de cada uma delas. Muitos animais pré-linguísticos têm a capacidade de comunicar com outros animais por meio da sinalização. O caso mais célebre é o das abelhas, mas a linguagem das abelhas tem algumas características intrigantes, pelo que será melhor tomarmos um exemplo ainda mais simples, o do macaco vervet. Esses macacos têm diferentes sinais para diferentes tipos de perigo. Têm um tipo de sinal caso o perigo venha de um leopardo, outro tipo se o perigo vem de uma cobra e um terceiro se o perigo vem de um falcão. Não sabemos o que se passa na mente do macaco quando faz os sinais, mas não é difícil imaginar o que poderia ocorrer na mente de alguém que também dispusesse de sinais para indicar a presença do perigo (ou alimento ou fogo). Precisamos primeiro de distinguir entre fazer um sinal enquanto acto físico e fornecer o sinal enquanto veículo de comunicação de significado. Qual a diferença entre simplesmente fazer o sinal e ter a intenção de que o sinal signifique que um determinado tipo de perigo está presente? Os sinais correspondem a frases de uma só palavra e se imaginarmos os primeiros seres humanos fazendo isso, imaginaremos que as suas elocuções, muito embora não disponham ainda de frases e palavras convencionais, poderiam ser traduzidas para o português moderno, como, por exemplo, “Perigo!” ou “Comida!”, ou “Fogo!”. Mas é preciso distinguir em cada caso entre emitir o som e emiti-lo como modo de transmitir algum significado. A emissão do som é só por si a condição de satisfação da intenção de emitir esse mesmo som. Mas se emitirmos o som de modo a que tenha significado, então acrescentamos algo crucial ao próprio som. O que acrescentamos é que o próprio som precisará agora de ter condições adicionais de satisfação, as quais, nesse caso, são condições de verdade. Podemos generalizar esse ponto: as elocuções com significado são aquelas em que o falante intencionalmente impõe condições de satisfação às elocuções. Mas porque as próprias elocuções são condições de satisfação da intenção de realizar aquelas elocuções, podemos dizer que o significado do locutor consiste na imposição intencional de condições de satisfação a condições de satisfação. Argumento que essa é a essência do significado do locutor. A condição de satisfação de uma elocução intencional destituída de significado é simplesmente a de que a elocução deve ser produzida. Mas se a elocução deve ter significado, deve ter condições ulteriores de satisfação, como condições de verdade ou condições de realização. É a imposição intencional dessas condições semânticas ulteriores de satisfação às condições de satisfação já presentes na elocução intencional que constitui o significado do locutor.

O leitor pode constatar essa diferença nos casos de línguas humanas desenvolvidas se pensar na diferença entre proferir algo como quem realmente quer dizer alguma coisa, e proferir esse mesmo algo sem com isso querer dizer coisa alguma. Suponha, por exemplo, que estou a praticar a pronúncia francesa e profiro repetidas vezes “il pleut” embora na verdade não pretenda dizer que chove. Apenas tento pronunciar as palavras correctamente. Nesse caso, a condição de satisfação da minha intenção é simplesmente a de que devo produzir os sons correctamente. Mas suponha que estou na rua com um amigo francófono; reparo que chove e digo “il pleut”. Nesse caso, não só tenho a intenção de emitir o som, mas também quero com isso dizer algo. O meu querer dizer algo consiste na intenção de que proferir o som tenha agora condições de satisfação adicionais, nesse caso, condições de verdade, e invoco efectivamente as convenções do francês para comunicar as condições de verdade em causa. Acrescentámos agora um elemento crucial à nossa explicação da intencionalidade pré-linguística: o significado do locutor.

Para compreender inteiramente a importância dessa ideia, temos de ser claros quanto à distinção entre representação e expressão. Muitos sinais produzidos por animais servem simplesmente para exprimir — no sentido etimológico literal da palavra: espremer para o exterior — algum estado intencional interno. Assim, quando um cachorro late furiosamente, o seu latido é uma expressão de fúria. Mas as formas linguisticamente significativas de comunicação envolvem mais do que a mera expressão intencional de estados; envolvem a representação de estados de coisas no mundo. Assim, nas línguas humanas existentes há uma distinção crucial entre, por exemplo, dizer “Ai!” e dizer “Tenho uma dor”. A primeira expressão não pode ser literalmente verdadeira ou falsa, embora possa ser sincera ou insincera. A segunda pode ser literalmente verdadeira ou falsa, porque representa um estado de coisas no mundo. Não se limita a exprimir um estado intencional; embora, acessoriamente, também exprima um estado intencional, porque toda a afirmação é expressão de uma crença. Mas o propósito de exprimir a crença não é o de informar o leitor acerca dos estados mentais doxásticos internos do locutor, mas antes informá-lo acerca de como as coisas são no mundo. Se digo “Chove”, exprimo de facto a crença de que chove, mas o propósito da elocução não é o de comunicar ao leitor um pormenor autobiográfico meu, mas informá-lo de como as coisas se passam no mundo. Ao analisar a ontologia social, o elemento crucial na linguagem é a função representacional e não a função expressiva.

Portanto, a razão da presente discussão é a que, ao vermos como a linguagem se relaciona com as formas pré-linguísticas de intencionalidade, temos de ver que uma das características essenciais da linguagem para os nossos propósitos é a sua capacidade de ser usada na realização de actos de fala para representar estados de coisas no mundo com as diferentes direcções de ajuste, e fazemos isso impondo condições de satisfação a outras condições de satisfação.

O próximo passo no sentido de dotar os nossos seres humanos primevos pré-linguísticos com os rudimentos da linguagem é imaginar a introdução de convenções. Suponhamos que desenvolvemos maneiras convencionais de comunicar esses conteúdos diversos. Estas podem desenvolver diferentes convenções para diferentes tipos de conteúdo a comunicar. Essas comunicações corresponderiam às frases de uma só palavra na nossa linguagem, que podem ser elocuções como “Comida!”, “Fogo!”, “Perigo!”. A introdução de formas canónicas ou convencionais de comunicar o significado é um enorme passo em frente, porque permitem tanto ao locutor quanto ao ouvinte terem uma expectativa razoável quer de que o locutor pretende dizer algo identificável por meio da elocução, quer de que se pode razoavelmente pressupor que o ouvinte compreende a elocução. Não quero com isso propor qualquer teoria metafísica robusta sobre convenções. Afirmo apenas que as criaturas em causa desenvolveram procedimentos de caráter normativo que lhes conferem expectativas justificáveis. O locutor tem a expectativa de que se proferir o som tal e tal, será compreendido de uma certa maneira. E o ouvinte tem a expectativa de que escutando um determinado som produzido intencionalmente, pode pressupor justificadamente que se pretende um significado específico. Além disso, essas expectativas são fundamentadas no facto de que as convenções em causa são essencialmente normativas. Há uma maneira correcta e uma maneira incorrecta de usar as palavras.

Até aqui temos somente frases de uma só palavra. O próximo passo é dividir as frases de uma só palavra em partes distintas. Dispomos já, na experiência consciente dos seres humanos primevos em causa, de experiências de objectos com propriedades, relações, etc. Os seres humanos primevos estão já equipados com certas categorias kantianas e aristotélicas tradicionais. Não têm ainda conceitos correspondentes a essas categorias, mas são capazes de operar com categorias perceptivas e volitivas como, por exemplo, objecto, propriedade, relação, agência, causa, etc. e isso manifesta-se nas suas experiências conscientes efectivas.

Se já têm significado do locutor e convenções, além da percepção de objectos com as propriedades, relações e conexões causais, etc., não estamos a uma distância assim tão grande de imaginar que desenvolvem expressões que correspondem a objectos, expressões que podem ser usadas referencialmente, e que além disso desenvolvem expressões para descrever ou caracterizar diversas características de objectos, expressões que podem ser usadas predicativamente. Apesar da rapidez com que refiro tudo isso, quero deixar claro que muitos dos recursos essenciais às línguas plenamente desenvolvidas estão já presentes na intencionalidade pré-linguística, e se a esta acrescentarmos significado, convenções e estrutura sintática interna, estaremos simultaneamente construindo sobre um aparato preexistente e desenvolvendo-o numa direcção notável que quero agora tornar explícita.

Compromissos e outras formas de deontologia

Depois de terem desenvolvido convenções e de poderem tornar explícito o conteúdo que comunicam dividindo o sinal em elementos sintáticos que formam frases completas, dispõem de uma característica adicional que não está presente na intencionalidade pré-linguística. As suas elocuções envolverão agora tipos especiais de compromisso. “Compromisso” é o termo mais geral para uma classe de fenómenos pelos quais os seres humanos criam vínculos entre si por meio de tipos especiais de razões para agir: aqui se inclui direitos, responsabilidades, autorizações, obrigações, permissões, titularidades, entre outros. Somente para dispormos de um termo geral, chamo a tudo isso “deontologias”, a partir da palavra grega que se refere ao dever. As deontologias reconhecidas são o que tornam a sociedade humana possível. O desenvolvimento de compromissos linguísticos é o primeiro passo para a deontologia social em geral.

Uma crença ou uma intenção ou até mesmo um desejo é já uma forma de compromisso. Se, por exemplo, uma crença que o leitor tem se mostrar falsa, você tem de (isto é, tem o compromisso de) abandoná-la. Mas o compromisso envolvido em proferir uma frase publicamente é substancialmente maior e de uma categoria inteiramente distinta da do compromisso envolvido na simples adopção de uma crença. Se creio que chove e descubro que não chove, tenho de abandonar a minha crença. Mas se uso frases convencionais de uma língua para fazer explícita e intencionalmente uma afirmação de que chove, dirigida a outra pessoa, então tenho um grau de compromisso muito maior, na verdade uma ordem de compromisso inteiramente distinta daquele compromisso envolvido na simples adopção de uma crença. Estou, no mínimo, comprometido com a verdade do que digo, tenho um compromisso de sinceridade, ou seja, de não mentir, e um compromisso de ser capaz de apresentar razões a favor da minha afirmação. E todos esses compromissos são compromissos públicos. Tipos diferentes de actos de fala acarretam diferentes tipos de compromisso, mas cada acto de fala acarreta algum tipo de compromisso. Os casos mais óbvios são os das afirmações e promessas, mas o mesmo sucede até nas ordens e pedidos de desculpas. Cada acto de fala literal sério, realizado em conformidade com as convenções de uma língua, envolve uma deontologia. Ora, essa deontologia tem uma propriedade lógica crucial que será essencial para a criação da realidade social e institucional: a criação de uma deontologia de compromissos, bem como de direitos, deveres, obrigações, etc., cria razões para agir independentes do desejo. Se faço uma afirmação, por exemplo, tenho uma razão independente do desejo para dizer a verdade porque a minha elocução me compromete a dizer a verdade.

Mais adiante argumento que a cimento que une a sociedade consiste em deontologias, que estas são criadas por via da imposição, por intencionalidade colectiva, de um certo tipo de função, a que chamo “funções estatutivas”, a pessoas e objectos, e que essa operação é de caráter essencialmente linguístico. Até aqui tentei mostrar somente que qualquer uso da linguagem acarreta uma forma simples dessa deontologia, que os actos de fala realizados intencional, deliberada e conscientemente em conformidade com as convenções de uma língua, estabelecem compromissos para o locutor e que esses compromissos exemplificam a deontologia a que me refiro.

Para tornar isso claro tenho de dizer algo mais acerca do compromisso.1 Há duas componentes ligadas à nossa noção de compromisso. A primeira é a de compromisso enquanto tarefa difícil ou impossível de reverter. A segunda componente é a noção de obrigação. Nesse sentido, um compromisso de fazer uma coisa estabelece para o leitor uma obrigação de fazê-la, em que a obrigação é precisamente uma razão independente do desejo, do tipo a que me venho referindo. De acordo com o primeiro sentido de compromisso, posso enveredar por um curso de acção difícil de reverter mas em que não estou sujeito a qualquer obrigação. Por exemplo, se começo a conduzir rumo a Los Angeles pela Autoestrada 5, tenho o compromisso de seguir pela 5 porque é muito difícil mudar de autoestrada e seguir pela 101. Mas não há qualquer obrigação nesse caso. Um acto de fala que consiste em realizar uma promessa combina ambos os elementos dos compromissos. Enveredo por um curso de acção difícil e não raro impossível de reverter e esse curso de acção envolve sujeitar-me a uma obrigação de fazer algo.

Um aspecto notável acerca da linguagem e a razão de ela ser muito mais do que simplesmente um sistema de sinalização é tratar-se de uma fonte das nossas formas caracteristicamente humanas de deontologia. O uso da linguagem envolve essencialmente a criação de compromissos de diversas espécies e esses são razões deônticas, razões para agir independentes do desejo.

Isso é visível na capacidade distintamente humana de mentir. Depois de dispor de uma linguagem, os seres humanos têm a capacidade de mentir deliberadamente. Mentir só é possível porque a linguagem dá aos seres humanos a capacidade de se comprometerem a dizer a verdade. E isso, por sinal, é a razão pela qual o actor no palco, ou o autor de um romance, não mente: as suas elocuções não são compromissos de dizer a verdade.

A extensão da deontologia

Dada uma linguagem, mesmo do tipo rudimentar que venho descrevendo, é inevitável que os seus utilizadores criem outros géneros de deontologia por via do modo como a usam para tratar objectos e pessoas no seu ambiente. Uma vez na posse dos tipos de compromisso que venho descrevendo, não requer um esforço enorme imaginar os seres humanos primevos com a capacidade de dizer coisas como “Aquela é a minha cabana”, “Aquela é a minha mulher”, “Aquele é o meu homem”, “Aquela pessoa é o líder”. Essas elocuções são mais do que meras representações de estados de coisas preexistentes, estabelecem asserções. Se as pessoas que as fazem puderem fazer as outras pessoas aceitá-las, terão criado um tipo de deontologia que vai além da deontologia do acto de fala. Se outras pessoas concedem que essa é a minha cabana, por exemplo, então concedem que tenho certos direitos sobre essa cabana. A deontologia da propriedade privada, do casamento e da autoridade é uma extensão natural das formas pré-linguísticas da vida social, depois de haver uma linguagem suficientemente rica para criar uma deontologia. Mas essas formas têm uma direcção de ajuste bastante peculiar, que irei explicar agora. Os actos de fala podem ser muito elegantemente categorizados num número bastante limitado de tipos,2 e a direcção de ajuste é uma característica crucial em especificar que posições ocupam na taxonomia. Assim, muito sucintamente, os actos de fala Assertivos, como as afirmações e as descrições, pretendem representar o modo como as coisas são e, portanto, têm a direcção de ajuste descendente, ou palavra-mundo: ↓. Os Directivos, como as ordens e mandados, e os Comissivos, como as promessas e os juramentos não têm a direcção de ajuste descendente, mas pretendem alterar a realidade a fim de que a realidade corresponda ao conteúdo da proposição e, portanto, têm a direcção de ajuste ascendente, ou mundo-palavra: ↑. Há uma quarta categoria, os Expressivos, com que não precisamos de nos preocupar aqui, em que o ajuste é tomado por garantido e o propósito do acto de fala é somente o de dar expressão ao nosso estado psicológico. Aí se incluem coisas como desculpas, agradecimentos e congratulações. Mas há uma quinta categoria crucial para a nossa investigação e nessa se incluem os casos em que fazemos de algo uma realidade efectiva ao representá-la como efectivamente real. A esses chamo Declarações. Por exemplo, adiamos a reunião proferindo “a reunião está adiada”; proclamamos alguém marido e mulher ao dizer, “Declaro-vos marido e mulher”. Obtemos assim a direcção de ajuste “mundo-palavra”, mas obtemo-la ao representar o mundo como se já tivesse sido alterado, ou seja, por meio da direcção de ajuste “palavra-mundo”. Portanto, as Declarações requerem uma direcção de ajuste dupla, que podemos representar do seguinte modo: ↕.

Nas línguas plenamente desenvolvidas, os nossos exemplos paradigmáticos da criação da realidade por via de uma Declaração são as elocuções performativas, como “Declaro-vos marido e mulher”, “Por este meio se declara a guerra”, “prometo visitá-lo na Quarta-feira”. Nesses casos há um verbo performativo explícito, que permite ao locutor realizar o acto nomeado pelo verbo. Quero agora fazer uma afirmação muito forte, a saber: com a importante excepção da própria linguagem, toda a realidade institucional é tanto criada na sua existência inicial, quanto mantida na sua existência persistente por meio de representações que têm a mesma estrutura lógica das Declarações, muito embora em casos específicos possam não ter efectivamente a forma de uma Declaração.

Regressando à nossa discussão sobre como a deontologia de uma linguagem em desenvolvimento se poderia estender dos actos de fala à sociedade em geral, podemos imaginar, por exemplo, que as pessoas dizem coisas como “Isso é meu”, e se conseguirem fazer outras pessoas reconhecer que aquilo é delas, i.e., sua propriedade, então criaram uma deontologia de direitos de propriedade ao representarem essa deontologia como se já existisse. Alguém faz suceder que tem direitos de propriedade e assim obtém a direcção de ajuste ascendente ou mundo-palavra, mas fá-lo ao representar esse estado de coisas como se já existisse, por meio da direcção de ajuste palavra-mundo. Esse é o movimento lógico decisivo na criação da civilização humana. Criamos dinheiro, governo, propriedade privada e casamento, por exemplo, por meio de representações que têm a dupla direcção de ajuste.

Para resumir, nesta parte do argumento fiz três afirmações:

  1. Primeira: depois de ter uma linguagem com significado do locutor, convenções e estruturas sintáticas internas, já se tem um sistema de compromissos públicos de diversos tipos, um sistema de deontologias.
  2. Segunda: as deontologias já presentes na linguagem são fácil e inevitavelmente alargadas a fim de criar factos institucionais como os que envolvem a propriedade privada, o casamento, e as relações de poder. Não é logicamente necessário que tal extensão venha a ocorrer. Podemos imaginar uma sociedade desprovida de factos institucionais além da linguagem, mas não conheço qualquer sociedade assim (nem mesmo a Pirarrã). E as vantagens de se criar esses factos institucionais tornam praticamente inevitável que venha a ocorrer uma criação desse género.
  3. Terceira: a operação lógica pela qual criamos esses sistemas deônticos é formalmente idêntica à das elocuções performativas. São Declarações. Fazemos de algo uma realidade efectiva ao representá-lo como efectivamente real. Tais elocuções têm uma direcção dupla de ajuste.

A criação de factos institucionais. X conta como Y em C.

Chegámos ao ponto em que podemos conectar a presente discussão com o meu trabalho anterior sobre a realidade institucional. Em The Construction of Social Reality (Searle 1995) afirmei que a criação de dinheiro, propriedade, governo e casamento exige a aplicação reiterada de regras constitutivas da forma “X conta como Y em C”. Por exemplo, este pedaço de papel conta como uma nota de 20 dólares, Barack Obama conta como Presidente dos Estados Unidos, eu conto como professor da Universidade da Califórnia. Esta operação cria novas funções ao atribuir um novo estatuto a uma pessoa ou a um objecto. Quando pensamos em funções, geralmente pensamos em coisas como facas, carros e computadores, casos em que o objecto pode realizar a sua função em virtude da sua estrutura física. Mas é uma capacidade notável dos seres humanos poderem atribuir funções a pessoas e objectos, de tal modo que essas pessoas e objectos não realizam a função em virtude das suas estruturas físicas, ou não somente em virtude das suas estruturas físicas, mas antes porque um certo estatuto lhes foi atribuído, e com esse estatuto desempenham uma função que somente pode ser realizada em virtude da aceitação colectiva desse estatuto. Os exemplos são praticamente ubíquos: aquela pessoa é Presidente dos Estados Unidos somente porque é reconhecida ou aceite como Presidente, e pode realizar as suas funções em virtude desse reconhecimento ou aceitação colectiva, e o mesmo sucede com a propriedade privada, as cartas de condução, os beberetes e as universidades. Chamo-lhes “funções estatutivas”. São o cimento que mantém coesa a sociedade humana, porque acarretam um tipo especial de deontologia que torna possível a sociedade.

O propósito último de se fazer isso é criar novas relações de poder. A deontologia que acompanha a criação de factos institucionais acarreta consigo uma aceitação colectiva de poder. Assim, em correspondência com o procedimento para a criação de factos institucionais, “X conta como Y em C”, há um operador de criação de poderes: “Aceitamos (S tem poder (S faz A))” e todo o sistema de direitos, deveres e obrigações, etc. pode ser expresso usando-se esse operador de criação de poderes e operações boolianas realizadas sobre ele. Por exemplo, se tenho uma obrigação, tenho um poder negativo. Se tenho a obrigação de pagar uma multa, então a forma da minha obrigação é a seguinte:

“Aceitamos (S não tem poder (S não paga a multa))”

Argumentei naquele trabalho que a linguagem é essencial para essa operação porque nada determina que o termo X tem a função estatutiva Y a não ser o facto de o representarmos desse modo. O homem só é Presidente na medida em que o representamos como Presidente; o pedaço de papel só é uma nota de dólar na medida em que o representamos como uma nota de dólar, mas todas essas representações requerem linguagem. Tornamos algo uma realidade efectiva representando-o linguisticamente como uma realidade efectiva. E a forma lógica dessa representação é a de uma Declaração.

Fazer isso requer a aceitação colectiva de uma deontologia. A criação da função estatutiva, que é o mesmo que a criação do facto institucional, só funciona na medida em que é colectivamente aceite. E não há propósito em fazer isso senão o de criar poderes deônticos — direitos, deveres, obrigações, autoridades, permissões, etc. O resultado é que a linguagem cria factos institucionais de um modo que é simultaneamente descendente e ascendente. O modo descendente é o que descrevi no meu Construction. Dispondo de linguagem, pode-se criar novos factos institucionais mais ou menos à vontade, desde que se possa fazer que as pessoas aceitem os factos criados desse modo. Poderíamos, por exemplo, em qualquer reunião de pessoas, criar uma nova organização simplesmente realizando certos tipos de actos de fala. Mas há também uma relação ascendente entre a linguagem e a ontologia da sociedade: depois de se ter linguagem, a criação de realidade institucional segundo a fórmula “X conta como Y” é praticamente inevitável, porque temos o mecanismo para usar a dupla direcção de ajuste. A operação do mecanismo “conta como” é Declarativa. Se todos aceitarmos que X conta como Y, sendo que Y é uma função estatutiva, então tornamos em realidade efectiva que X é Y representando-o como efectivamente real.

Declarações funcional-estatutivas e regras constitutivas

Em Construction, argumentei que toda a realidade institucional é criada por aplicações reiteradas de regras constitutivas (princípios, procedimentos, etc.). Neste artigo defendo que toda a realidade institucional é criada por Declarações funcional-estatutivas. Qual a relação entre essas duas explicações? Penso que podemos agora ver que a regra constitutiva é um modo especial de executar o procedimento mais geral pelo qual criamos factos institucionais por meio de Declarações funcional-estatutivas. A explicação que figura em Construction está para esta explicação como uma teoria especial está para uma teoria geral.

A forma lógica da criação de todos os factos institucionais é a forma da Declaração. Dado que a criação de factos institucionais invariavelmente cria funções estatutivas, chamemos a esses tipos de declarações “Declarações funcional-estatutivas”. Ora, se isto estiver correcto, então sucede que a operação lógica subjacente que cria a realidade institucional é a seguinte:

Nós (ou eu) fazemos (ou faço), por via de uma Declaração, da existência da função estatutiva Y uma realidade efectiva.

Essa operação geral pode ser executada de várias maneiras, das quais me ocorrem três:

Primeira: temos uma regra constitutiva da forma X conta como Y em C. A regra constitutiva funciona como uma Declaração permanente. Transforma em realidade efectiva, para o futuro indefinido, que seja o que for que satisfaça a condição X conta como portadora da função estatutiva Y. Assim, por exemplo, obter a maioria de votos no Colégio Eleitoral conta como ganhar a presidência dos Estados Unidos. E seja quem for que vença e faça o juramento conta como presidente dos Estados Unidos. É por isso que não precisamos de separar actos de aceitação para cada caso individual. Ao aceitar as regras constitutivas comprometemo-nos a aceitar os casos abrangidos por essas regras. Não precisamos decidir para cada caso se realmente aceitamos que tal e tal é um xeque-mate, um casamento, um condutor habilitado, ou um penálti. Uma vez tendo aceite as regras constitutivas, os factos do caso determinam o estatuto institucional apropriado e o compromisso com as regras compromete-nos a aceitá-lo.

Uma segunda maneira de executar a forma geral é simplesmente fazer Declarações funcional-estatutivas de modo ad hoc. Simplesmente contamos, por exemplo, determinada pessoa como nosso líder. E, como observei, não é preciso ter um acto de fala Declarativo explícito. Um conjunto de representações pode equivaler a uma Declaração nos casos em que alteram o mundo ao representá-lo como já tendo sido alterado desse modo. Por exemplo, uma tribo pode simplesmente tratar alguém como seu líder por meio de toda a sorte de actos de fala, de tal modo que essa pessoa adquire o estatuto deôntico de líder. As representações linguísticas da tribo criam o estatuto do indivíduo como líder.

Uma terceira maneira de executar o operador de criação de poder é simplesmente tornar em realidade efectiva, por via de uma Declaração, que a função estatutiva Y existe, sem que seja imposta a qualquer objecto ou pessoa preexistente. Barry Smith chama isso de “Termos Y autónomos”.3 Isso é o que ocorre no caso da criação de corporações em que não temos de ter um objecto preexistente ao qual o estatuto de corporação seja atribuído. É o que ocorre no caso do dinheiro eletrónico, em que não é preciso atribuir a função a quaisquer moedas ou notas preexistentes. E também sucede no xadrez às cegas, em que usamos simplesmente representações das peças ao invés de peças reais para realizar as funções estatutivas.

A existência de termos Y autónomos, juntamente com qualquer forma complexa de estrutura institucional, requer algo além da linguagem falada: tem de haver versões escritas permanentes dos actos de fala, que simultaneamente estabeleçam os factos institucionais e permitam a sua persistência. As sociedades sem escrita funcionam relativamente bem sem quaisquer documentos escritos. Contudo, não têm corporações, contas bancárias, sistemas jurídicos ou disputas sobre direitos autorais. Tudo isso requer a escrita. Todas essas coisas exigem alguma forma de documentação, tanto para estabelecer os factos institucionais em causa como para preservarem continuamente a sua existência.

A dupla direcção de ajuste é característica da criação de factos institucionais, mas também é característica da existência contínua de funções estatutivas. Portanto, quando uma corporação é criada, realiza-se uma Declaração. Declara-se que uma corporação existe. Assim, poderíamos pensar que qualquer referência ulterior à corporação exige somente a direcção de ajuste descendente ou palavra-mundo. Basta que façamos afirmações verdadeiras ou falsas acerca dela, mas na verdade a aceitação contínua da sua existência é essencial para a sua existência contínua, e o uso do vocabulário assinala essa aceitação. O papel desempenhado pelo vocabulário é visível nas actividades dos movimentos revolucionários e reformistas. Tentam controlar o vocabulário a fim de alterar o sistema de funções estatutivas. As feministas tinham razão quando fizeram notar que o vocabulário de “Dama” e “Cavalheiro” envolve já uma deontologia que queriam rejeitar. Mais uma vez, os comunistas na Rússia queriam que as pessoas se tratassem umas às outras por “camarada”, de modo a criar novas funções estatutivas e destruir as antigas. Outra maneira de ver esse fenómeno é fazer notar como as palavras que assinalam funções estatutivas podem gradualmente cair em desuso com a correspondente erosão da própria função estatutiva. A palavra inglesa spinster [solteirona] figura proeminentemente nas leis americanas mais antigas, mas não é uma palavra que se use na linguagem comum. Quando pergunto às minhas alunas “Quantas de vocês são spinsters?” somente uma intrépida mulher de meia-idade teve a coragem de levantar a mão. Dessa forma o uso quotidiano do vocabulário com a direcção de ajuste descendente tem já uma dada direcção de ajuste ascendente cumulativa, ao sustentar a existência de funções estatutivas ao longo do tempo. Penso que uma mudança similar poderá ocorrer relativamente ao estatuto de “celibatário”. O uso dessa palavra parece estar em declínio, e com ele as funções estatutivas correspondentes.

Para resumir, a principal ideia que defendo é que o mecanismo que cria e sustenta factos institucionais é sempre o mesmo. Trata-se de Declarações funcional-estatutivas por meio das quais criamos uma realidade institucional ao representá-la como se existisse. Assim, obtemos a direcção de ajuste mundo-palavra (mudamos o mundo de modo a ajustar-se às palavras), mas fazemo-lo por meio da direcção de ajuste palavra-mundo (representamos o mundo como se já estivesse alterado). Enumero três maneiras pelas quais fazemos isso, mas talvez haja outras que não me ocorreram.

A forma lógica geral das funções estatutivas

Já apresentei de forma preliminar as diferentes maneiras pelas quais o operador de criação de poder pode ser executado. Nesta secção, exploro mais esses pontos ao tentar formular mais precisamente as relações entre a forma da regra e o operador de criação de poder, de modo a podermos ver a distinção entre 1) a regra enquanto forma universalmente quantificada, 2) a aplicação da regra geral a casos individuais, 3) a criação ad hoc de funções estatutivas sem uma instituição preexistente, 4) o caso dos termos Y autónomos e 5) a relação de tudo isso com o operador de criação de poder.

A distinção entre 1 e 3 é ilustrada pela distinção entre, por exemplo, a regra que diz que seja quem for que satisfaça certas condições conta como Presidente dos Estados Unidos e os casos em que simplesmente impomos funções estatutivas de uma maneira ad hoc, como no exemplo da tribo que simplesmente seleciona alguém como líder sem que haja qualquer regra geral para selecioná-los. A esses casos temos ainda de acrescentar aquele (4) em que podemos fazer que um conjunto de funções estatutivas exista por via de uma Declaração. Isso é o que acontece quando criamos corporações.

Ademais, precisamos ser bastante cuidadosos acerca do uso da notação de quantificador, porque segundo a interpretação canónica o âmbito das variáveis abrange um domínio previamente identificado de objectos. Mas em alguns desses casos, por exemplo na criação de corporações, estamos na verdade a criar objectos, e em qualquer caso a notação “conta como” é intencional.

Qual é a formulação efectiva? Bem, haverá mais do que uma. Haverá a(s) regras(s) constitutiva(s) geral (ou gerais), haverá a atribuição ad hoc de funções estatutivas sem regras constitutivas prévias, e haverá criação de funções estatutivas que não requerem um termo X. Além disso, precisamos distinguir entre a criação inicial de uma instituição e a sua existência contínua. A mesma distinção se aplica aos factos institucionais, em que precisamos distinguir entre a criação inicial e a preservação contínua. O princípio geral a não esquecer é o seguinte:

Factos institucionais = funções estatutivas → poderes deônticos → razões para agir independentes dos desejos

Todos os factos institucionais são funções estatutivas e todas as funções estatutivas acarretam poderes deônticos e os poderes deônticos fornecem razões para agir independentes do desejo. Eis, portanto as expressões completas das formas. Começamos com a forma universalmente quantificada, usando a presidência dos EUA como exemplo (usarei “x” e “y” minúsculos como variáveis da quantificação e “X” e “Y” maiúsculos como variáveis livres que podem ser ligadas a uma expressão substantivada próxima):

Regra constitutiva. Para todo o x, se x tem as características f no contexto C, x conta como o Y (função estatutiva) Presidente dos Estados Unidos. Poderes deônticos: Para todo o x, se x é Presidente, x tem os poderes (deônticos) atribuídos pela Constituição e pelas leis.

Combine-se-las agora no âmbito do operador de aceitação colectiva:

Aceitamos colectivamente que para todo o x, se x tem as características f em C, x conta como o (função estatutiva) Presidente dos EUA e S tem poderes (deônticos) atribuídos pela constituição e pelas leis.

Isto ilustra a forma geral da regra constitutiva universalmente quantificada.

Aplique-se agora essa regra a um caso particular:

Barack Obama tem f em C.

Logo:

Aceitamos colectivamente que Barack Obama conta como o (função estatutiva) Presidente dos EUA e tem os poderes (deônticos) atribuídos pela constituição e pelas leis.

Tudo isto está implícito em Construction. Mas uma ideia que surge aqui e não se encontra em Construction é a seguinte: depois de aceitarmos a regra e o facto de que o objecto X satisfaz as condições especificadas pela regra, estamos logicamente comprometidos a aceitar a função estatutiva particular. Nenhum acto ulterior de aceitação distinto é necessário. Isso funciona assim para todas as instituições. Depois de aceitarmos as regras do futebol e de aceitarmos que tal e tal equipa marcou mais golos do que a adversária, estamos comprometidos com a aceitação da vitória da equipa que marcou mais golos. É por essa razão, por exemplo, que houve tanta controvérsia acerca da eleição presidencial norte-americana de 2000. Bush realmente obteve a maioria dos votos eleitorais dos Estados? Nunca houve qualquer disputa acerca do sistema de regras constitutivas, mas somente acerca de Bush ter ou não satisfeito a condição “x tem f”.

No caso ad hoc, em que, por exemplo, uma tribo simplesmente trata Bill como o líder e desse modo faz dele um líder, a regra tem a seguinte aparência:

Aceitamos colectivamente que Bill, enquanto X, conta como nosso líder, como Y, e enquanto líder ele tem os poderes deônticos que esse estatuto acarreta.

O que dizer acerca dos casos de termos autónomos? Note-se que não podemos ter nesses casos uma regra universalmente quantificada cujo âmbito abranja um domínio preexistente de objectos, como tínhamos no exemplo da presidência dos EUA. Porém, o que é ainda mais interessante, não podemos sequer ter uma forma existencialmente quantificada no sentido de haver algum x tal que x é uma corporação, porque, por hipótese, não há qualquer x preexistente que seja a corporação. Segundo a interpretação canónica dos quantificadores, tem de haver um domínio preexistente de objectos abrangidos pelos quantificadores. Mas nesses casos não há semelhante âmbito de objectos. Não há quaisquer objectos para serem transformados em corporações; em vez disso, realizamos um acto de fala que cria uma corporação. A forma geral da regra, quando codificada, teria de ser a de que tal e tal acto de fala conta como a criação de uma corporação. Pelo que a forma lógica da criação de uma corporação particular não é:

Para algum x, x torna-se a corporação, Y.

Mas, ao invés, a sua forma é a de uma Declaração:

Suponha que a corporação Y existe em virtude da realização deste mesmo acto de fala e a corporação existe com tais e tais conjuntos de funções estatutivas atribuídas aos administradores e accionistas.

O Código da Califórnia relativo às corporações deixa isto explícito:

Parágrafo 200A: “Uma ou mais pessoas físicas, parcerias, associações ou corporações, nacionais ou estrangeiras, podem formar uma corporação de acordo com este artigo ao executar e registrar certificados de incorporação.”

Parágrafo C: “A existência da corporação tem início com o registo dos certificados e continua perpetuamente, salvo estipulação contrária nos termos da lei ou das condições.” (itálicos meus)

Julgo ser claro que a forma lógica disto não é a quantificação existencial. Não nos diz que há um x preexistente, que é uma corporação, mas diz-nos que uma corporação “tem início”. Diz-nos que a realização desses actos de fala — “executar e registar certificados de incorporação” — conta como a criação de uma corporação — “a existência da corporação tem início com o registo dos certificados e continua perpetuamente [...]”. E a formulação efectiva da lei na Califórnia tem um quantificador universal cujo âmbito abrange “pessoas físicas, parcerias, associações, corporações, nacionais ou estrangeiras [...]”.

Pelo que a forma lógica geral da função estatutiva nesses casos, usando a criação de corporações e permitindo que o âmbito de “s” abranja pessoas físicas, etc., é a seguinte:

Aceitamos que para todo o s, se s realiza certos tipos de actos de fala, i.e., “executar e registar”, esses actos de fala contam como a criação de uma corporação Y e com ela as funções estatutivas de Presidente, administradores, e accionistas são atribuídas a S1, S2, S3; e essas funções estatutivas acarretam os poderes deônticos atribuídos a essas posições; e aceitamos ainda que uma vez criada, a corporação como Y durará perpetuamente (“salvo estipulação contrária explícita”).

Note-se que, mais uma vez, a linguagem é crucial para a ontologia. As próprias frases que citei do Código da Califórnia são em si Declarações. Elas tornam em realidade efectiva, por meio de uma Declaração, que determinadas outras Declarações contam como a criação de corporações, e que uma vez criada, essa corporação conta como existente em perpetuidade. É inconcebível que isto pudesse ser feito sem linguagem. Mas, poder-se-ia objectar, não seria possível haver uma sociedade na qual corporações, ou algo similar, se desenvolvesse naturalmente sem qualquer lei? Podemos imaginar coisas semelhantes, mas fazê-lo é imaginar actos de fala Declarativos realizando o seu trabalho sem o auxílio da legislatura. A minha perspectiva subsiste: sem linguagem, não há corporações.

A criação de dinheiro pelos bancos na ausência de moeda tem uma estrutura lógica diferente. Em geral, o banco cria dinheiro ao emitir empréstimos de dinheiro de que não dispõe. Mais uma vez, trata-se de Declarações.

Suponha que o Banco da América empresta ao Jonas mil dólares. A Declaração tem a seguinte forma: Nós, Banco da América, fazemos que suceda efectivamente, por via de uma Declaração, que o Jonas tenha mil dólares na sua conta (em troca do que ele promete pagar ao Banco mil dólares mais juros).

Assim, o acto de fala, enquanto X, faz suceder efectivamente que o Jonas tem a função estatutiva Y: tem mil dólares. Mas não tem de haver qualquer realidade física que corresponda aos mil dólares, além da representação. O Jonas tem agora o poder deôntico de gastar o dinheiro como lhe aprouver.

Para reiterar a ideia crucial, a estrutura lógica da criação de toda a realidade institucional, com a excepção crucial da própria linguagem, é a realização de actos de fala ou outras formas de representação com a forma lógica de Declarações funcional-estatutivas. A sua forma lógica é igual à dos performativos. Tornamos algo uma realidade efectiva representando-o como efectivamente real.

A linguagem como instituição

Podemos ver agora num sentido mais profundo por que razão a linguagem é a instituição social fundamental e por que não é como as outras instituições. Todas as outras instituições requerem a representação linguística porque um novo facto não-semântico é criado pela representação, e.g., o dinheiro, o governo e a propriedade privada são criados pela semântica, mas em cada caso os poderes criados vão além da semântica. Usa-se significados para criar uma realidade que vai além do significado e para criar poderes que vão além dos poderes semânticos. Mas a própria linguagem não tem um significado que vá além do significado. Lê-se na nota de vinte dólares: “Esta nota é moeda corrente para todos os débitos públicos e privados”. Assim, por que razão não se faz seguir essa frase por outra que diga “Esta é de facto uma frase da nossa língua e quer genuinamente dizer o que diz”? Será que isso nos daria mais confiança? A frase inscrita na nota é uma Declaração. Certifica que a nota é moeda corrente ao representá-la como moeda corrente. Mas a frase que imaginei não pode certificar ou, seja por que meio for, fazer a outra frase ser realmente uma frase. Tão-pouco teria de fazer semelhante coisa. A linguagem é suficiente para determinar que se trata de uma frase. As funções estatutivas da linguagem — por exemplo, as frases — identificam-se a si próprias como tal, a seja quem for que conheça a linguagem. Porém, outras funções estatutivas requerem linguagem não só para que as possamos identificar, mas para existirem de todo.

A própria linguagem não requer uma representação ulterior para ser linguagem. As funções estatutivas atribuídas às palavras e frases não requerem qualquer representação ulterior a fim de existirem como tais. Obama só pode ser Presidente e esta casa só pode ser propriedade minha se ambos forem representados linguisticamente como tais, mas as palavras que o leitor vê nestas páginas têm significados sem terem qualquer outra representação de que têm estas funções estatutivas. A maneira pela qual o nível duplo se aplica a todas as funções estatutivas é, no caso da linguagem, diferente do que ocorre em todos os outros factos institucionais. Ambos os casos poderiam parecer, à primeira vista, como que paralelos. Em virtude das regras constitutivas, esse pedaço de papel conta como uma nota de vinte dólares nos Estados Unidos; analogamente, em virtude das regras constitutivas do inglês, a elocução adequada da frase “A neve é branca” conta como a realização da afirmação de que a neve é branca. Qual a diferença entre os dois casos? No caso da frase, a regra constitutiva simplesmente repete o significado da frase. No caso da frase, a regra constitutiva constitui o significado. Mas no caso do dinheiro, a regra constitutiva articula uma operação que cria poderes que vão além dos poderes do significado. A semântica cria o poder do dinheiro, mas depois desse poder ter sido criado, o poder que daí resulta para quem tem dinheiro não é somente poder semântico. A Declaração funcional-estatutiva no caso de fenómenos não-linguísticos é uma operação que alguém realiza para criar funções estatutivas cujos poderes vão além do significado.

Conclusão

Penso que o desfecho desta discussão é o seguinte: em relação às instituições estabelecidas, precisamos distinguir entre a criação da instituição e dos factos institucionais que lhe são internos. Em relação aos próprios factos institucionais, precisamos distinguir entre a criação do facto institucional e a preservação da sua existência contínua. Com a excepção da criação da linguagem e dos próprios factos linguísticos, a forma lógica da criação de um facto institucional é sempre a de uma Declaração funcional-estatutiva. Isso não nos é imediatamente claro pela razão de que um facto institucional poderia desenvolver-se gradualmente no decorrer de um longo período de tempo. Ainda assim, a dupla direcção de ajuste tem de ser manifesta na criação de qualquer facto institucional extralinguístico. A preservação de um facto institucional em existência contínua tem também a forma lógica de uma Declaração. A razão para isso é que o facto só pode existir na medida em que seja representado como algo que existe, mas na sua criação e preservação a representação faz mais do que representar um fenómeno que existe independentemente, antes fazendo aquele fenómeno existir e preservando a sua existência contínua. Pelo que a forma mais geral de criação de um facto institucional é a Declaração funcional-estatutiva. Não podemos criar luz como Deus, dizendo “Faça-se luz!”, mas ao menos podemos criar entidades institucionais de maneira semelhante, porém não sobrenatural de Declaração: “Faça-se uma corporação!”.

John Searle
Theory and Society (2008) 37:443–459. Revisão de Lucas Miotto e Desidério Murcho.

Agradecimentos

O material neste artigo foi originalmente apresentado em conferências em Herdeck, Alemanha e Beijing, China. Uma versão deste artigo está agendada para aparecer nos anais dessas conferência. O trabalho é um fragmento de um trabalho maior sobre ontologia social que estou preparando. Toma de empréstimo outros fragmentos que publiquei, notavelmente “What is language?” em John Searle’s Philosophy of Language: Force, Meaning and Mind, editado por Savas L. Tschohatzidis, Cambridge: Cambridge University Press, 2007. Estou em dívida com um grande número de pessoas pela ajuda com este trabalho, especialmente com Dagmar Searle. Este artigo também será publicado em Chris Mantzavinos (ed.), Philosophy of the Social Sciences. Cambridge: Cambridge University Press.

Referências

Notas

  1. Para uma boa discussão sobre o compromisso, veja Miller (2007).↩︎︎

  2. Searle (1975). Deixo esses substantivos em maiúscula (Assertivos, Directivos, Comissivos, Expressivos e Declarações) para indicar que todos são termos técnicos.↩︎︎

  3. Smith (2003). Uma observação similar foi feita por Thomasson (2002).↩︎︎

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