Algumas linguagens são expressivas; seja complementar seja principalmente, expressam sentimentos e/ou atitudes. Há elocuções puramente expressivas, mas há também partículas expressivas, como “raios”, que ocorrem integradas em frases gramaticais. Além disso, há frases completas que podem ser usadas literalmente ou não, mas que, por vezes, expressam atitudes de uma maneira que não é cancelável; os exemplos principais figuram na ironia, incluindo o sarcasmo — especialmente neste caso — e também nas elocuções pejorativas.
É claro que estes fenómenos não são ilocutórios, nem meramente casos de implicatura conversacional. Há duas abordagens gerais à ironia verbal: uma teoria “ecoica” e uma teoria da simulação. Ambas partilham algumas características principais, e torna-se ainda mais difícil distingui-las quando nos damos conta de que uma elocução irónica não tem de ser literalmente ecoica nem literalmente uma simulação. A ironia exige uma alusão tácita a uma crença ou atitude preexistente, e exprime uma crença ou atitude dissociativa com respeito à crença ou atitude prévia, mas, além disso, não há senão um conjunto vago de características típicas.
O sarcasmo é uma forma muito mais específica de ironia verbal. Elizabeth Camp defende que exige uma “inversão de significado”, ainda que num sentido muito vasto de “significado”, que inclui força ilocutória e meras implicaturas.
A linguagem pejorativa tem vários tipos. Os termos depreciativos raciais e étnicos fornecem os exemplos mais ricos. Segundo a “perspetiva comum”, um termo depreciativo é uma expressão denotativa que convencionalmente implica uma crença ou atitude negativa num sentido ou outro desse termo técnico. Mas a perspetiva comum enfrenta várias objeções.
Comecemos com desabafos e vivas. Esqueçamos os gemidos e grunhos, porque tipicamente não são sequer palavras; mas muitos outros desabafos são até articulados: até “Ui”, em contraste a um mero ganido ou grito, é uma palavra da língua portuguesa, incluída nos dicionários como exclamação ou interjeição. “Ha! ha! ha!”, em contraste com o riso propriamente dito, é uma expressão verbal muitas vezes usada ironicamente (num romance britânico já vi “Ha raios partam ha”). “Maldição!”, “Hurra!” (“eia”, “ena”). “Bah”. “Fu!”, “Santo Deus!”. “Buu”, “Xii!”, “Credo!” “Obrigado”. “Arre”. “Ámen”. Já era tempo de voltarmos a estes casos, diria Wittgenstein.
Podemos tentar compreender exclamações e interjeições como se fossem elipses. “Obrigado” não abrevia certamente a performativa pura “Eu agradeço-lhe [por este meio]”. E como se fez notar no Capítulo 12, Lewis (1970: 50–58) propôs-se analisar “Viva Porky!” como “Aclamo Porky”; mas quando me limito a gritar “Viva!” não parece que fiz uma elocução performativa com uma estrutura proposicional determinada por uma construção sintática. “Raios!” é um candidato melhor: um linguista poderia mostrar que há um objeto direto tácito — é quase equivalente a dizer “Raios para isto!” — e há possivelmente um objeto sintático “mais elevado”, “Deus” (ainda que esta última ideia seja sintaticamente refutada por Quang (1971)). A elocução poderia uma subjuntiva exortativa: “Que Deus amaldiçoe [seja o que for]”. Mas esse não é o uso normal; quem profere sinceramente “Raios” não precisa de acreditar em Deus, nem de instigá-lo a condenar um objeto particular, condenando-o ao Inferno.
Não há razão para insistir que todos os exemplos devem ser tratados da mesma maneira: talvez “Ai” e “Santo Deus!” sejam apenas exclamações, e mesmo quem defende a teoria das condições de verdade pode admitir por cortesia que têm significado. Talvez “Viva” ou “Raios” tenha efetivamente uma estrutura proposicional subjacente, ainda que isso tenha de ser ainda evidenciado por meio de algum argumento positivo. E talvez alguns dos casos sejam realmente contraexemplos às teorias verificacionistas e das condições de verdade, tomadas como explicações da totalidade do significado.
Mas algumas expressões deste género são subfrásicas. “Raios” pode funcionar como adjetivo, dando um contributo sintático para a frase que o contém: “Aquele gato dum raio fez cocó na almofada”; “O raio é que ele fez isso”. Nessas frases, “raio” não é apenas uma interjeição; “O meu filho casou-se — raios! — com um guru da Nova Era” está bem, mas “O meu filho casou-se raios com um guru da Nova Era” é simplesmente agramatical. O mesmo acontece com “maldito” e, como anteriormente, “O maldito do gato fez cocó…” não quer dizer (nem sequer metaforicamente) “Aquele gato foi condenado ao Inferno por Deus e fez cocó…”. “Maldito” é apenas expressivo, ainda que tenha um papel sintático bem determinado.
Na peugada de David Kaplan, irei chamar “expressivos” a itens linguísticos deste género — ou seja, aqueles que são palavras de línguas particulares e que têm propriedades sintáticas mas só exprimem atitudes ou outros estados mentais e que não parece que tenham qualquer contributo a dar ao significado proposicional, em termos de conteúdo. Constituem uma categoria surpreendentemente abrangente e diversificada. Iremos voltar a eles, mas vou abordar primeiro um estilo de discurso expressivo que não é abrangido seja pela teoria dos atos de fala, seja pela pragmática conversacional puramente griciana.
Grice sustentava que a ironia e o sarcasmo são simplesmente casos de implicatura conversacional. Essa tese torna-se difícil devido a vários factos acerca do sarcasmo, mas consideremos primeiro a ironia mais em geral. (Presumo que a ironia é a categoria mais vasta, da qual o sarcasmo é um caso especial; mas a ironia é diversificada, e não devemos pressupor que tem uma única análise correta.) O exemplo óbvio de ironia não é o sarcasmo, mas o eufemismo irónico:
Dois outros exemplos de ironia que não é sarcástica são os seguintes:
Eis alguns exemplos de ironia:
Seria difícil reconstruir cada um destes casos como inferências convidadas gricianas: “Ele disse que p; …” Para começar, em casos como 5 e 11, não há um implicatum óbvio. O aspeto irónico da elocução parece exprimir apenas uma atitude, e não transmitir mais informação. Além disso, a atitude expressa é normativa ou, pelo menos, faz referência a uma norma social/cultural.
Há uma ideia muito geral de que a ironia “chama a atenção para uma discrepância entre uma descrição do mundo que o locutor está aparentemente a propor e o modo como (ele quer sugerir) que as coisas são efetivamente” (Wilson 2006: 1722; o sarcasmo seria um caso particularmente direto, quase um caso-limite). Mas é claro que há muitas maneiras de o fazer, além da ironia verbal. Surgiram, entretanto, dois tratamentos mais específicos.
Sperber e Wilson (1981) deitaram mão de um conceito que ainda não encontrámos: o uso “ecoico”. No discurso, fazemos por vezes eco de uma elocução alheia. A: “Primeiro fui à loja de bicicletas”…. B: “Loja de bicicletas, claro, e depois?” Este fazer eco indica normalmente que o interlocutor deu-se conta da elocução da outra pessoa e que está, pelo menos por instantes, a pensar nela: “A loja de bicicletas. Vendem capacetes lá?” E, por vezes, fazemos eco com um tom crítico ou jocoso: “Foste à loja de bicicletas, hã?/que história plausível/querias que eu fosse nessa/e eu sou Rex, o Cavalo Maravilha”, ou tão-somente “Foste à loja de bicicletas”, proferido com uma expressão na cara de franco descrédito. Sperber e Wilson sugeriram que a ironia verbal é uma “alusão” ecoica, faz eco de uma ideia ou elocução (usualmente imaginária) tacitamente atribuída a outra pessoa, sendo que o seu objetivo é exprimir uma atitude dissociativa e/ou exibir a falsidade, o risível, a inadequação, ou outra infelicidade da ideia ou elocução da qual se faz eco. Em eufemismos irónicos como 1, o locutor faz eco de alguém que não se dá conta da estupidez do Carlos. 2 é uma resposta amarga à elocução de Romeu “Coragem, homem; a dor não pode ser assim tão grande”. 3 faz eco da perspetiva que o sujeito tem de si próprio. Em 4, o locutor faz eco de um cidadão leal de um estado totalitarista, sendo a discrepância o facto de ele não ser, nem nunca poder ser, um cidadão leal, sugerindo hiperbolicamente que a opinião em questão é suficientemente extrema para ser digna de repressão militar.
De passagem, e sem espalhafato, Grice reconheceu que a ironia e o sarcasmo não se encaixam no seu modelo original. Em particular, nesses casos é incorreto começar o raciocínio interpretativo com “Ele disse que p”; o locutor só “fez como se” fosse dizer que p e só “dá a entender que avança” essa proposição (1975: 34). Inspirando-se nisto, Clark e Gerrig (1994), Recanati (2004) e Currie (2006) ofereceram abordagens da ironia em termos de simulação, segundo as quais a elocução, no seu todo, não é o que o ato de fala dá a entender; o locutor está só a fingir que assere ou pergunta, etc., o que a sua frase de facto assere ou pergunta. (Recorde-se as perspetivas da simulação de Walton (1990) e Crimmins (1998), discutidas no Capítulo 4.) O locutor está a apoucar ou de algum modo a dissociar-se de quem poderá usar a mesma frase com a força que superficialmente parece ter. Assim, um locutor de 1 está a fingir que não se dá conta da estupidez do Carlos, Mercúcio finge concordar com saída insensível de Romeu, um locutor de 3 está a fingir que partilha a perspetiva de si que faz a pessoa em causa, o locutor de 4 finge que é um cidadão leal de um estado totalitarista que reage a uma opinião proibida, e assim por diante.
Tem-se levantado a questão de saber quão diferentes são as perspetivas ecoicas e da simulação. As suas características mais comuns são as mesmas: i) o modelo original de Grice estava errado, porque uma elocução irónica não é uma asserção ou pergunta genuína, ou algo do género. ii) o modelo original de Grice estava errado, porque a ironia envolve a expressão de uma atitude, e não apenas transmitir mais informação. iii) A atitude é dissociativa.
Além disso, não conseguimos compreender a “simulação” num sentido literal muito forte. Um locutor de 1 não está realmente a fingir, no sentido pleno de Austin, e, ao proferir 5, Russell não estava inequivocamente a simular fazer algo, ou que era um tipo qualquer de pessoa. Ao invés, temos de entender que se trata do que Crimmins chama simulação “superficial”, tratando-se apenas de “falar como se”, e isso torna mais aguda a questão de como a perspetiva da simulação difere da ecoica. Outro problema é que tanto o fazer eco como a simulação figuram por vezes indisputavelmente na ironia; algumas elocuções irónicas são casos plenos de fingimento, com imitação vocal e facial deliberada. Será relevante se Russell, ao proferir 5, estava a imitar o papel cómico de um hegeliano, ou apenas a fazer eco de uma passagem satiricamente atribuída aos hegelianos?
Porém, os paradigmas são realmente diferentes. Grice (1978) fez uma boa observação rápida a favor da simulação: uma elocução irónica não pode ser antecedida de “Ironicamente falando, …” (contrastando com as elocuções metafóricas, que podem ser antecedidas de “Metaforicamente falando, …”), porque “ao passo que se quer que a simulação seja reconhecida como tal, anunciá-la como simulação estragaria o efeito” (p. 54); mas nada há de errado com “Fazendo eco [da elocução U], …”
Além disso, o defensor da teoria da simulação pode queixar-se que a “alusão” ecoica a uma elocução que não é senão possível não é fazer eco; é, na melhor das hipóteses, “como se” fizesse eco, i.e. — já se está a ver — simulação.
Contudo, Wilson e Sperber defendem que o paradigma ecoico é mais fundamental, pois a simulação só por si não é suficiente. Posso fingir asserir o que é um absurdo sem ser irónico, se o absurdo vier do nada:
Ainda que eu profira 12 num tom claramente, efusivamente, irónico, a resposta seria apenas um perplexo “O quê?”, precisamente porque ninguém disse ou sequer se imaginou que tenha dito algo acerca de pinguins ou saltos em comprimento. (Ainda que uma elocução possa vir do nada e mesmo assim ser irónica, caso se reconheça que é atribuível a uma pessoa particular, ou grupo de pessoas, ou cultura, ou até às pessoas em geral.) De modo que os defensores da teoria da simulação tiveram de acrescentar ad hoc o alusivo ou atributivo.
Wilson (2006) defende, além disso, que falar de simulação só é apropriado quando há algum elemento de mimetismo ou simulação da prestação do hipotético locutor. Nos casos em que só o conteúdo proposicional abstrato se apresenta para ser examinado e não há sugestão ou imitação, como em 8 e 9, não há simulação. Mas isto parece demasiado forte, dado que a simulação “superficial”, o falar simplesmente “como se”, não exige mimetismo.
Um ponto melhor seria que em alguns dos exemplos, como 9 e 11, há um compromisso genuíno com a verdade de tudo o que é proferido, ou parte disso, se é que não há asserção propriamente dita. Não se trata apenas de simular que se assere.
Na verdade, o aspeto irónico de uma elocução tem por vezes por alvo apenas uma pequena parte do que genuinamente se disse:
Isto seria uma asserção perfeitamente genuína, e não simulada, ainda que se possa responder que o locutor está a fingir que considerou a atitude do empregado prestável, e não o contrário.
Em que ficamos? Fazer eco, em si, não é preciso para ser irónico e, ao que parece, o mesmo acontece com a simulação, em qualquer sentido forte. Na melhor das hipóteses, tem de haver “alusão” ecoica, que não é fazer eco e só é simulação num sentido muito fraco. E, ao revés de qualquer teoria pura de qualquer um dos dois tipos, uma elocução irónica pode constituir um ato de fala genuíno, e pode, na verdade, ter a força característica da frase, tomada literalmente. De modo que temos uma característica necessária, a expressividade normativa, e talvez uma segunda, a alusão ecoica, e algumas outras características típicas — mas nenhum critério claro. Na verdade, afirmo apenas “talvez”, no que respeita ao requisito ecoico, porque identificar um referente ecoico em 9, 10 e 11 não é trivial e é algo forçado.