Se quiser ler apenas um livro este ano, leia este. Além de muitíssimo bem escrito, combinando com mestria a sobriedade e o distanciamento com o humor e a leveza, é de tal forma abrangente e o tema é tão central que é praticamente impossível ser uma pessoa culta e ignorar este livro. Infelizmente, a edição inglesa em capa mole da Harper Perennial é servida por uma capa horrível, assim como a anterior edição em capa dura da Fourth Estate. A capa da edição brasileira, sendo banal, tem pelo menos a vantagem de não ser feia.
Simon Singh é doutorado em física das partículas pela Universidade de Cambridge, e é autor de O Livro dos Códigos (Temas e Debates) e A Solução do Último Teorema de Fermat (Relógio d’Água). Transformou ambos os livros em documentários para a BBC e o Channel 4, tendo o último ganho o prestigiado prémio BAFTA. Neste livro, apresenta uma história do Big Bang. Não se trata de uma descrição dos processos que deram origem ao universo actual, a partir da Grande Explosão que ocorreu entre dez a vinte biliões de anos, mas antes da história fascinante da investigação científica que conduziu a esta descoberta.
Esta história começa com os filósofos gregos antigos, que foram os primeiros seres humanos de que há registo que pensaram criticamente sobre estas questões, não se submetendo aos ditames da tradição e da autoridade:
“Os gregos adoravam uma boa discussão, e por isso uma comunidade de filósofos examinava teorias, questionava a argumentação em que se baseiam e em última análise escolhia a mais convincente. Ao invés, em muitas outras culturas as pessoas não se atreviam a questionar a sua mitologia. Cada mitologia era, na sua própria sociedade, um artigo de fé”. (pág. 7 da edição inglesa)
As descobertas científicas dos gregos antigos foram impressionantes, se tivermos em conta que os conhecimentos da altura eram parcos e não existiam praticamente instrumentos de precisão. Os primeiros passos seguros, contudo, foram dados por estes filósofos, o que mostra bem o alcance e importância da argumentação cuidada e da observação sistemática, por oposição à tradição e à autoridade. As oitenta páginas do primeiro capítulo contam a história das descobertas astronómicas fundamentais desde os gregos antigos até Galileu e à (demasiado familiar) batalha entre a ciência e os sectores mais retrógrados da religião (que não se deve confundir com a religião no seu todo — o próprio Galileu era religioso).
Este primeiro capítulo será do interesse de muitos leitores, nomeadamente estudantes e professores de filosofia da ciência, pela informação que contém sobre a revolução científica e o debate entre os modelos heliocêntricos e geocêntricos do universo. A tabela das páginas 34-35 (edição inglesa) resume de forma exemplar os diferentes aspectos a favor e contra cada uma das teorias, o que permite perceber como se processa a discussão entre modelos científicos opostos. Singh revela uma compreensão rara da ciência porque não apresenta apenas os seus resultados, como é costume nos maus manuais escolares; apresenta também os problemas que motivaram os cientistas a construir as suas teorias explicativas, e os argumentos e provas que as sustentam. Deste modo, fica patente a realidade da ciência, que não é o corpo inerte de resultados provados que na faculdade se regurgitam nos testes, mas antes o processo de observação e discussão que conduz a esses resultados (que depois os países atrasados se limitam a importar, acriticamente).
Conhecer a dimensão do universo e o nosso lugar nele é um requisito de toda a pessoa culta. Infelizmente, muitas pessoas têm ainda crenças aritmeticamente ridículas sobre a verdadeira dimensão do universo. Os números são em si pouco expressivos quando se trata de quantidades astronómicas. De modo que é melhor pensar assim: imagine-se o número de segundos que existe numa hora — são 3600. Portanto, há 86 400 segundos por dia. Se fizer os cálculos para determinar quantos segundos há num ano já está mais perto do que se quer: é que na nossa galáxia há o mesmo número de estrelas que segundos há em três mil anos. E em torno da nossa estrela há nove planetas, o que também acontecerá com muitas outras estrelas. Mas a nossa galáxia não é a única: há cem biliões de galáxias. Qualquer mundividência que não acomode esta realidade é pura e simplesmente provinciana.
Para poder apresentar os aspectos científicos relevantes que conduziram aos diferentes aspectos da moderna teoria do Big Bang, o autor apresenta as teorias de Newton e de Einstein, assim como algumas das descobertas fundamentais da física atómica e até da química. Não se trata, contudo, de falar em segunda mão, com base noutros livros de divulgação. O autor apresenta-nos uma história baseada em fontes primárias, o que lhe permite desfazer injustiças históricas, descrevendo resultados científicos fundamentais que muitas vezes passaram despercebidos no seu tempo, e que ainda hoje não são referidos nos manuais e livros de divulgação.
Por vezes, surpreende descobrir quão ignorantes eram os nossos antepassados mais próximos. Quando a segunda guerra mundial acabou, por exemplo, ainda ninguém sabia que a nossa galáxia é apenas uma entre muitas. O processo de descoberta de que há outras galáxias além da nossa é apresentado de forma fascinante, e mostra bem dois aspectos centrais da ciência: a observação muitíssimo cuidada e precisa, e a argumentação imaginativa.
A história termina em 1992 com a medição das variações da radiação de fundo (uma espécie de eco da Grande Explosão) que confirmou o modelo do Big Bang. O jornal inglês Independent publicou nesse ano, no dia 24 de Abril, um arrojado gráfico na primeira página com o título COMO O UNIVERSO COMEÇOU. Para saber a história desta descoberta, devore este livro único.