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Crítica
19 de Novembro de 2023   Metafísica

Teremos realmente livre-arbítrio?

Theodore Sider
Tradução de Vítor Guerreiro

Suponha o leitor que o raptam e o obrigam a cometer uma série de crimes terríveis. O raptor fá-lo disparar sobre a primeira vítima, forçando-o a premir o gatilho de uma arma, hipnotiza-o para que envenene uma segunda e depois empurra-o de um avião fazendo-o esmagar uma terceira. Milagrosamente, o leitor sobrevive à queda. A situação deixa-o atordoado, aliviado por ter chegado ao fim da sua dolorosa experiência. Mas então, para sua surpresa, é detido pela polícia, que o algema e acusa de homicídio. Os pais das vítimas gritam-lhe obscenidades enquanto a polícia o leva, humilhado.

Estarão os pais e a polícia a ser justos ao culpá-lo pelas mortes? Obviamente que não, pois o leitor tem uma desculpa irrefutável: não agiu de acordo com o seu livre-arbítrio. Não podia evitar ter feito o que fez; não podia ter feito de outro modo. E só quem age livremente é moralmente responsável.

Todos pensamos que temos livre-arbítrio. Como poderíamos não o pensar? Renunciar à liberdade significaria deixar de fazer planos para o futuro, pois de que adianta fazer planos, se não temos a liberdade para mudar o que acontecerá? Significaria renunciar à moralidade, pois só quem age livremente merece censura ou castigo. Sem liberdade, percorremos caminhos predeterminados, incapazes de controlar os nossos destinos. Uma vida assim não vale a pena.

No entanto, a liberdade parece entrar em conflito com um certo facto evidente. Por incrível que pareça, este facto não é segredo; na sua maioria, as pessoas estão perfeitamente cientes dele. Só aceitamos acriticamente o livre-arbítrio porque não conseguimos somar dois e dois. O problema do livre-arbítrio é uma bomba-relógio escondida nas nossas crenças mais firmemente arreigadas.

Eis o facto: todo o acontecimento tem uma causa. Este facto é conhecido como “determinismo”.

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Dúvidas?

Todos acreditamos que há causas. Se os cientistas descobrissem vestígios na estratosfera superior a formar as palavras “Ozzy Osbourne!” começariam de imediato a trabalhar para descobrir a causa. Teriam os vestígios sido ali deixados por uma divisão rebelde da NASA composta por fãs de heavy metal? Seria um projecto científico de uma escola para génios adolescentes? Se estas coisas fossem excluídas como causas, os cientistas começariam a considerar hipóteses mais estranhas. Talvez alienígenas de um planeta remoto nos estejam a pregar uma partida. Talvez os vestígios sejam o que resta de uma colisão entre cometas e a semelhança com o nome do cantor de heavy metal seja puramente fortuita. Talvez cada uma das diferentes porções dos vestígios tenha diferentes tipos de causas. Podemos considerar qualquer destas hipóteses. Mas se há algo que os cientistas não considerariam é que simplesmente não houve qualquer causa. As causas podem ser difíceis de descobrir, ou fortuitas, ou podem ter muitas partes diferentes, mas estão sempre lá.

Não que os acontecimentos sem causa sejam inteiramente inconcebíveis. Podemos imaginar o que seria a ocorrência de um acontecimento sem causa. Além disso, podemos imaginar o que seria a ocorrência de todo o tipo de coisas estranhas: porcos a voar, macacos a fazer estátuas de gelatina com três mil metros de altura, etc. Mas é razoável crer que nada disso realmente ocorre. De igual modo, é razoável crer que não há realmente acontecimentos sem causa — ou seja, é razoável crer no determinismo.

A nossa crença no determinismo é razoável porque todos vimos a ciência ser bem-sucedida, uma e outra vez, na sua procura das causas subjacentes das coisas. As inovações tecnológicas devem a sua existência à ciência: arranha-céus, vacinas, naves espaciais, a Internet. A ciência parece explicar tudo o que observamos: a mudança das estações, o movimento dos planetas, o funcionamento interno das plantas e animais. Dado este registo de êxitos, esperamos razoavelmente que a marcha do progresso continue; esperamos que a ciência venha a dada altura a descobrir as causas de tudo.

A ameaça à liberdade vem quando nos apercebemos de que esta marcha acabará por nos apanhar. Do ponto de vista científico, as escolhas e comportamentos humanos fazem parte do mundo natural. Como as estações, os planetas, as plantas e os animais, as nossas acções podem ser estudadas, previstas, explicadas, controladas. É difícil dizer quando terão os cientistas aprendido o suficiente sobre o que faz os seres humanos funcionar, de modo a prever tudo o que fazemos, se é que aí se chegará. Mas independentemente de quando se irá descobrir as causas do comportamento humano, o determinismo garante-nos que essas causas existem.

É difícil aceitar que as nossas próprias escolhas estão sujeitas a causas. Suponhamos que o leitor fica sonolento e se sente tentado a pousar este livro. As causas tentam fazê-lo dormir. Mas o leitor resiste-lhes! É forte, e continua a ler mesmo assim. Terá frustrado as causas e refutado o determinismo? Claro que não. O acto de continuar a ler tem a sua própria causa. Talvez o seu amor pela metafísica supere a sonolência. Talvez os seus pais o tenham ensinado a ser disciplinado. Ou talvez seja apenas teimoso. Seja qual for a razão, houve uma causa.

Pode responder: “Mas não senti qualquer compulsão de ler ou de não ler; simplesmente decidi fazer uma ou outra coisa. Não senti qualquer causa.” É verdadeiro que não sentimos que muitos pensamentos, sentimentos e decisões têm causas. Mas, na verdade, isto não põe em questão o determinismo. Por vezes, as causas das nossas decisões não são conscientemente detectáveis, mas existem, apesar disso. Algumas causas do comportamento são funções pré-conscientes do cérebro, como ensina a psicologia contemporânea, ou talvez até funções de desejos subconscientes, como pensava Freud. Outras causas das decisões podem nem sequer ser mentais. O cérebro é um objecto físico incrivelmente complicado, e pode “desviar-se” para esta ou aquela direcção em resultado de certos movimentos das suas partes mais minúsculas. Tais causas puramente físicas não podem ser detectadas limitando-nos a direccionar a atenção para o nosso interior, independentemente de quão longa, árdua e calmamente se medite. Não podemos esperar ser capazes de detectar todas as causas das nossas decisões só por introspecção.

Portanto: o determinismo é verdadeiro, mesmo no que se refere às acções humanas. Mas agora consideremos qualquer acção alegadamente livre. Para ilustrar o que está aqui em causa, consideremos uma acção horrivelmente repreensível do ponto de vista moral: a invasão da Polónia levada a cabo por Hitler em 1939. Sem sombra de dúvida que culpamos Hitler por esta acção. Consideramos assim que agiu livremente. Mas o determinismo parece sugerir que Hitler não era afinal livre.

Para ver porquê, temos primeiro de investigar os conceitos de causa e efeito. Uma causa é um acontecimento anterior que faz ocorrer um efeito posterior. Dadas as leis da natureza, uma vez ocorrida a causa, o efeito tem de ocorrer. O relâmpago é a causa do trovão: as leis da natureza que regem a electricidade e o som garantem que, quando se dá o relâmpago, seguir-se-á o trovão.

O determinismo diz-nos que a invasão da Polónia levada a cabo por Hitler teve como causa um acontecimento anterior. Até aqui, pouco há que ameace a liberdade de Hitler. A causa da invasão poderia ser algo sob o controlo de Hitler, caso em que a invasão também estaria sob o seu controlo. Por exemplo, a causa poderia ser uma decisão que Hitler tomou pouco antes da invasão. Deste modo, parece que podemos ainda culpar Hitler por ter ordenado a invasão.

Mas agora consideremos esta decisão em si. É apenas outro acontecimento. Pelo que do determinismo decorre que também esta decisão tem de ter uma causa. Esta nova causa poderia ser outra decisão anterior que Hitler tomou, ou algo que os seus conselheiros lhe disseram, ou algo que ele comeu, ou, mais provavelmente, uma combinação de muitos factores. Seja o que for, chamemos c a esta causa da decisão de Hitler de invadir a Polónia. Repare-se que c também causou a invasão da Polónia. Pois, como vimos, uma causa é um acontecimento anterior que faz ocorrer um acontecimento posterior. Uma vez ocorrido c, a decisão de Hitler tinha de ocorrer; e uma vez ocorrida a decisão, a invasão tinha de ocorrer.

Podemos repetir este raciocínio para sempre. Do determinismo decorre que c tem de ter uma causa anterior c1, que por sua vez tem de ter uma causa anterior c2, e assim sucessivamente. A sequência de acontecimentos resultante prolonga-se regressivamente no tempo:

c2c1 → decisão → invasão

Cada acontecimento da sequência é uma causa da invasão, uma vez que cada acontecimento é uma causa do acontecimento que ocorre imediatamente a seguir, o qual então é uma causa do próximo acontecimento que ocorre imediatamente após esse, e assim sucessivamente. Os acontecimentos mais perto do fim desta sequência parecem estar sob o controlo de Hitler. Mas não os anteriores, pois à medida que regredimos no tempo, a dada altura chegamos a acontecimentos anteriores ao nascimento de Hitler.

Pode-se repetir este argumento para qualquer acção humana, por mais momentosa ou trivial que seja. Suponhamos que um idoso escorrega ao atravessar a rua e que, em vez de o ajudar, desato a rir. Usando a anterior sequência de raciocínio, podemos mostrar que a minha risota teve como causas acontecimentos anteriores ao meu nascimento.

Parece difícil incluir a liberdade nesta imagem. Já não parece que Hitler tinha a liberdade de escolher invadir ou não a Polónia. Parece que eu não tive escolha senão rir-me do idoso. Pois as causas de todas estas acções são coisas fora do nosso controlo. Mas então o que há de moralmente errado no que Hitler ou eu fizemos? Como se pode culpar Hitler por ter invadido a Polónia se antes do seu nascimento foi determinado que o faria? Como poderei ser incriminado por rir? Como podemos culpar seja quem for seja pelo que for?

Podemos reformular o desafio à liberdade em termos da física. Qualquer acção ou decisão envolve o movimento de partículas subatómicas nos nossos corpos e cérebros. Estas partículas subatómicas deslocam-se segundo as leis da física. A física permite-nos calcular as futuras posições de partículas a partir de informação sobre 1) os estados anteriores das partículas e 2) as forças que actuam sobre as partículas. Assim, em princípio, poder-se-ia ter examinado as partículas subatómicas cem anos antes da invasão da Polónia, calculando-se então exactamente como essas partículas se iriam deslocar cem anos depois, e desse modo calcular que Hitler invadiria a Polónia. Esses cálculos são demasiado difíceis para, na prática, alguma vez serem levados a cabo, mas isso não importa. Independentemente de alguém poder ou não concluir os cálculos, as partículas estavam lá, antes do nascimento de Hitler, e o facto de estarem lá, e estarem dispostas do modo como estavam, tornou inevitável que Hitler invadisse a Polónia. Mais uma vez, descobrimos uma causa para a invasão levada a cabo por Hitler que já existia antes de Hitler ter nascido. E a existência dessa causa parece sugerir que a invasão da Polónia levada a cabo por Hitler não foi uma acção livre.

E no entanto, tem de ter sido livre, pois de que outro modo o podemos culpar por este acto desprezível? A bomba-relógio explodiu. Duas das nossas crenças mais arreigadas, a nossa crença na ciência e a nossa crença na liberdade e na moralidade, parecem contradizer-se. Temos de resolver este conflito.

Theodore Sider
Enigmas da Existência: Uma Visita Guiada à Metafísica (Lisboa: Bizâncio, 2010)
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ISSN 1749-8457