Pelo menos desde a década de oitenta, em colégios e universidades por todo o planeta têm sido dados cursos de pensamento crítico. Estes cursos são na sua maioria leccionados pelos departamentos de filosofia, e visam dar aos estudantes as competências gerais que são necessárias em todas as disciplinas académicas. Adivinha-se quais são as ambições dos cursos de pensamento crítico vendo como os principais manuais da área são apresentados pelos seus editores. Por exemplo, um desses manuais afirma que fornece aos estudantes “as competências mentais necessárias para analisar argumentos, raciocinar com clareza, identificar e resolver problemas, e tomar decisões sólidas”. Afirma-se que estas competências são “necessárias em todas as áreas académicas e em qualquer contexto — dentro e fora da sala de aula”.1
Os psicólogos cognitivos têm cada vez mais posto em dúvida a utilidade desses cursos gerais de pensamento crítico. Nota bene, ninguém parece pôr em questão a existência de capacidades de raciocínio importantes que são comuns aos vários ramos do ensino superior; em todos os tipos de estudos se precisa de competências como “ver os dois lados de uma questão, estar aberto a novas provas que infirmem as nossas ideias, raciocinar desapaixonadamente, exigir que as afirmações se apoiem em provas, deduzir e inferir conclusões dos factos disponíveis, resolver problemas, e assim por diante” (Willingham, 2008, p. 21). A questão crucial não é se estas são (em algum sentido) as “mesmas” capacidades quando são usadas em áreas diferentes. Ao invés, a questão é se podem ser aprendidas de uma maneira geral que permita aos estudantes aplicá-las a todos os tipos de assuntos.
Com base em amplas provas empíricas, os psicólogos mostraram que as competências mentais não podem em geral ser aprendidas em abstracto, e depois aplicadas a qualquer assunto que nos apareça pelo caminho. Essas competências são em grande medida específicas de cada domínio, no sentido em que a capacidade de um indivíduo para executá-las está fortemente ligada ao seu conhecimento e às suas atitudes, no contexto particular ou área de aplicação. Como Daniel Willingham faz notar (2008, p. 21), “se insistirmos o suficiente para que o estudante ‘olhe para uma questão de diferentes perspectivas’, o estudante irá aprender que deve fazê-lo, mas se não souber grande coisa acerca de um assunto, não consegue pensar sobre isso de várias perspectivas”.
Nesta discussão não se tem dado suficiente atenção à noção de “domínio”. Por exemplo, no artigo citado, Willingham (2008, p. 21) sublinha que “há tipos específicos de pensamento crítico que são característicos de diferentes assuntos: é isso que queremos dizer quando falamos de ‘pensar como um cientista’ ou ‘pensar como um historiador’”. Ele passa então a “explorar a maneira como os estudantes adquirem um tipo específico de pensamento crítico: pensar cientificamente (Willingham, 2008, pp. 21–22). Contudo, mesmo que se restrinja o significado de “ciência” às ciências da natureza, não se trata certamente de um domínio único e unificado. As formas de raciocínio que um estudante tem de dominar diferem radicalmente entre campos como a astrofísica, a estereoquímica e a ecologia das populações. Um “domínio” com exigências uniformes com respeito às capacidades de raciocínio teria de ser muito menor que as ciências (naturais) como um todo. Mas quão menor? Até quando se passa para áreas de investigação intimamente relacionadas, como a aplicação da cristalografia a diferentes tipos de moléculas, é preciso por vezes aprender novas maneiras de pensar. A transferibilidade de padrões mentais é aparentemente uma questão de graus, e não uma questão de tudo ou nada baseada em domínios estritamente demarcados do conhecimento.
A falta de transferibilidade pode ser uma surpresa. Os autores de manuais de pensamento crítico mostraram convincentemente que os mesmos padrões de raciocínio válido, e também as mesmas falácias argumentativas, estão em jogo em disciplinas muitíssimo diferentes. Parece quase inegável que muitas características do raciocínio válido são essencialmente as mesmas num domínio vasto de disciplinas e áreas temáticas. Mas então por que razão são estas competências tão difíceis de transferir entre disciplinas?
Uma explicação possível é que o raciocínio válido faz exigências tanto ao nosso conhecimento como às nossas atitudes. Por exemplo, precisamos de saber a diferença entre uma condição necessária e suficiente, e precisamos de saber como determinar se a fonte é fidedigna. Mas é igualmente importante, para praticar essas competências com equidade e sem distorções, ter atitudes como “abertura mental, equidade e uma determinação para fazer juízos com base na avaliação racional” (Bailing, 2002, p. 369). Estas atitudes são em grande medida específicas de cada domínio, e poderão exigir um esforço e uma formação consideráveis para desenvolvê-las numa área nova.
Como Albert Einstein fez notar, o pensamento científico “não é senão um refinamento do pensamento quotidiano” (Einstein, 1936, p. 349). Na vida quotidiana já praticamos grande parte das competências intelectuais que se exigem nas disciplinas académicas. Por exemplo, fazemo-lo quando tentamos encontrar um objecto que perdemos ou quando tentamos descobrir o que há de errado com um dispositivo qualquer que funciona mal. Nestas e noutras práticas de procura de factos da vida quotidiana fazemos espontaneamente grande parte do que se ensina nas aulas de pensamento crítico, como tirar conclusões, criticar non sequiturs, propor e testar hipóteses, etc. (Hanson, 2018). Os estudos experimentais têm mostrado que em tarefas apropriadamente escolhidas, mesmo as crianças são capazes de raciocinar segundo os padrões que associamos habitualmente à ciência (Klahr, 2000, pp. 5–6, 14–17). Mas nas nossas vidas diárias, tal como na academia, só conseguimos raciocinar de maneira bem-sucedida se tivermos uma atitude distanciada e uma mentalidade aberta com respeito ao tema em questão. Talvez uma grande parte da dificuldade com respeito à transferência de competências cognitivas de uma área para outra esteja relacionada com a abordagem sem distorções e de mentalidade aberta que é necessária para executá-las apropriadamente (cf. Thompson e Evans, 2012).
Além destes problemas de transferência, também há problemas conceptuais consideráveis associados à noção de pensamento crítico. Tem-se repetidamente feito notar que o conceito não tem uma definição plausível que colha aceitação geral (Bailin, 2002, p. 361; Mulnix, 2012, p. 464; Johnson e Hamby, 2015). Além disso, há problemas mais específicos de natureza filosófica ligados a cada uma das palavras, “pensamento” e “crítico”.
A palavra “crítico” diz respeito principalmente à tendência para pôr defeitos no que os outros fazem ou dizem. Por exemplo, o Oxford English Dictionary define “crítico” como “ser dado a ajuizar; dado esp. à crítica adversa ou desfavorável; encontrar defeitos; atitude censória”, ou “que se ocupa ou tem talento para a crítica”. O uso da palavra “crítico”, em vez de, por exemplo, “válido” ou “bem fundamentado”, tende a dar ênfase a práticas antagónicas da vida académica em detrimento das práticas cooperativas (Thayer-Bacon, 1998, pp. 125–126). A palavra “pensamento” sublinha esta abordagem individualista. Além disso, “pensamento” chama a atenção para as partes não-empíricas das actividades de investigação. Acresce que a escolha de “pensamento crítico” como termo capital sugere facilmente problemas do género “Tente encontrar o que os argumentos seguintes têm de errado!” É defensável que os estudantes terão a ganhar com uma abordagem mais aberta, como “O que precisamos de saber para resolver este problema, e como conseguimos encontrar essa informação?”
A escolha do termo “pensamento crítico”, em vez de, por exemplo, “raciocínio bem fundamentado”, no ensino de competências académicas gerais poderá ter algo a ver com o papel de peso desempenhado pela filosofia nestes cursos. A filosofia, tal como é praticada hoje, tende a ser programaticamente não-empírica, e tem sido também associada, não sem alguma razão, ao lugar do “método antagonista” na academia (Moulton, 1983). Mas com a responsabilidade de dar cursos de competências académicas gerais vem (ou deveria vir) a obrigação de ir além dos limites da nossa própria disciplina.
Tem-se afirmado amiúde que o pensamento crítico coincide essencialmente com a lógica. Numa defesa recente desta posição, Jennifer Wilson Mulnix concede que o pensamento crítico, tal como é habitualmente ensinado, consiste numa “miríade de competências”, mas sustenta que todas se reduzem afinal a “uma competência fundacional prévia muito importante: o reconhecimento das conexões inferenciais entre afirmações”. Logo, afirma, os princípios do pensamento crítico são “o género de axiomas que se aprenderia num curso de Introdução à Lógica” (Mulnix, 2012, p. 467). Do seu ponto de vista, as competências do pensamento crítico não são específicas de cada domínio, mas “dependem do domínio de conhecimento para que possam ser exercidas” (Mulnix, 2012, p. 470).
Contudo, sabe-se desde há muito tempo que as competências lógicas são tão específicas de cada domínio quanto as outras competências mentais, e não estão certamente “fora do problema da transferência” (McPeck, 1990, p. 11). Isto não deveria ser surpreendente. Fora da matemática, a lógica dedutiva tem apenas um pequeno papel na resolução de problemas, e a grande maioria de casos práticos de “falácias lógicas” dizem respeito a princípios lógicos que vão muito além da lógica dedutiva (Boudry et al., 2015). Mal deixamos o domínio da lógica dedutiva para trás, o conhecimento de fundo do assunto empírico em questão torna-se decisivo para as conclusões que se pode tirar. Para citar o caso mais famoso de todos, é devido à nossa informação de fundo acerca de pássaros que tendemos a concluir “Tweety voa” de “Tweety é um pássaro”.
O mesmo tipo de afirmações ambiciosas que têm sido feitas para promover cursos de pensamento crítico têm sido feitas também a favor dos estudos filosóficos em geral. Basta navegar nas páginas web de alguns dos mais importantes departamentos de filosofia para encontrar fortes afirmações a favor da ideia de que os estudos de filosofia fornecem competências e aptidões úteis para todas as disciplinas, e essencialmente em todos os altos cargos que se consiga imaginar. Infelizmente, estas afirmações não têm bases.
Se os filósofos querem liderar a promoção do pensamento racional e dos padrões inferenciais elevados, seria certamente apropriado não fazer afirmações sem bases sobre os próprios cursos em que os estudantes supostamente aprendem a evitar fazer asserções sem bases. E é claro que não é preciso fazer afirmações sem bases para promover estes cursos. Os cursos de filosofia da ciência dão insights sobre a natureza da ciência que são valiosos mesmo sem provas de que os estudantes que os fazem se tornam cientistas melhores. Os cursos de ética dão aos estudantes os meios para analisar questões morais e normativas — um tópico socialmente importante que não é ensinado noutras disciplinas. E os cursos de lógica oferecem uma compreensão aprimorada da natureza do raciocínio humano. Isso não é suficiente?