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Crítica
10 de Outubro de 2023   Lógica

A lógica de Frege

Anthony Kenny
Tradução de Fernando Martinho

O acontecimento mais importante na história da filosofia do século XIX foi a invenção da lógica matemática. Não se tratou apenas de fundar de novo a própria ciência da lógica; foi algo que teve igualmente consequências importantes para a filosofia da matemática, para a filosofia da linguagem e, em última análise, para a compreensão que os filósofos têm da natureza da própria filosofia.

O principal fundador da lógica matemática foi Gottlob Frege (1848–1925). Nascido na costa báltica alemã em 1848, doutorou-se em Filosofia em Gotinga e leccionou na Universidade de Jena de 1874 até se reformar, em 1918. Excepto no que respeita à sua actividade intelectual, a vida de Frege foi rotineira e isolada; o seu trabalho foi pouco lido enquanto viveu, e mesmo depois da sua morte só exerceu influência por intermédio dos escritos de outros filósofos. Mas, gradualmente, foi-se reconhecendo que Frege foi o maior de todos os filósofos da matemática e que, como filósofo da lógica, foi comparável a Aristóteles. A sua invenção da lógica matemática foi um dos maiores contributos para os desenvolvimentos, em diversas disciplinas, que estiveram na origem da invenção dos computadores. Dessa forma, Frege afectou as vidas de todos nós.

A produtiva carreira de Frege começou em 1879 com a publicação de um opúsculo intitulado Begriffschrift, ou Escrita Conceptual. A escrita conceptual que deu o título ao livro consistia num novo simbolismo, concebido com o fim de exibir claramente as relações lógicas escondidas na linguagem comum. A notação de Frege, logicamente elegante mas tipograficamente incómoda, já não é usada em lógica simbólica; mas o cálculo por ele formulado constitui desde então a base da lógica moderna.

Em vez de fazer da silogística aristotélica a primeira parte da lógica, Frege atribuiu esse lugar a um cálculo inicialmente explorado pelos estóicos: o cálculo proposicional, ou seja, o ramo da lógica que trata das inferências que assentam na negação, conjunção, disjunção, etc., quando aplicadas a frases declarativas no seu todo. O seu princípio fundamental — que remonta igualmente aos estóicos — consiste em considerar que os valores de verdade (isto é, o verdadeiro ou o falso) das frases declarativas que contêm conectivas como “e”, “se”, “ou”, são determinados apenas pelos valores de verdade das frases ligadas pelas conectivas — da mesma forma que o valor de verdade da frase “João é gordo e Maria é magra” depende apenas dos valores de verdade de “João é gordo” e de “Maria é magra”. As frases compostas, no sentido técnico dos lógicos, são tratadas como funções de verdade das frases simples que entram na sua composição. O Begriffschrift de Frege contém a primeira formulação sistemática do cálculo proposicional; este é apresentado sob uma forma axiomática, na qual todas as leis da lógica são derivadas, por meio de regras de inferência, a partir de um certo número de princípios primitivos.

O maior contributo de Frege para a lógica foi a invenção da teoria da quantificação; isto é, um método para simbolizar e exibir rigorosamente as inferências cuja validade depende de expressões como “todos” ou “alguns”, “qualquer” ou “cada um”, “nada” ou “nenhum”. Este novo método permitiu-lhe, entre outras coisas, reformular a silogística tradicional.

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Existe uma analogia entre a inferência

Todos os homens são mortais.
Sócrates é um homem.
Logo, Sócrates é mortal.

e a inferência

Se Sócrates é um homem, Sócrates é mortal.
Sócrates é um homem.
Logo, Sócrates é mortal.

A segunda é uma inferência válida no cálculo proposicional (se p, então q; dado que p, segue-se que q). Mas nem sempre pode ser considerada uma tradução da primeira inferência, uma vez que a sua primeira premissa parece afirmar algo acerca de Sócrates em particular, ao passo que se “Todos os homens são mortais” for verdadeira, então

Se x é um homem, x é mortal.

será verdadeira independentemente do nome que substituir a variável x. De facto, esta frase continuará a ser verdadeira mesmo que x seja substituída por um nome que não designe homem algum, uma vez que nesse caso a antecedente é falsa e, de acordo com as regras verofuncionais para frases declarativas condicionais, a frase na sua totalidade será verdadeira. Assim, podemos exprimir a proposição tradicional

Todos os homens são mortais.

desta forma:

Para todo o x, se x é um homem, x é mortal.

Esta reformulação constitui a base da teoria da quantificação de Frege; para ver como isso acontece, temos que explicar de que forma Frege concebeu cada um dos elementos que contribuem para formar uma frase complexa.

Frege introduziu a terminologia da álgebra na lógica. Pode-se dizer que uma expressão algébrica como x/2 + 1 representa uma função de x; o valor do número representado pela expressão na sua globalidade dependerá da substituição que se fizer para a variável x, ou, em terminologia técnica, do argumento que tomarmos para a função. Assim, o valor da função é 3 se o argumento for 4, e é 4 se o argumento for 6. Frege aplicou esta terminologia (argumento, função, valor) tanto a expressões da linguagem comum como a expressões em notação matemática. Substituiu as noções gramaticais de sujeito e de predicado pelas noções matemáticas de argumento e de função e, a par dos números, introduziu os valores de verdade como valores possíveis de expressões. Assim, “x é um homem” representa uma função que toma o valor verdadeiro para o argumento “Sócrates” e o valor falso para o argumento “Vénus”. A expressão “para todo o x”, que introduz a frase anterior, diz, em termos fregianos, que o que se lhe segue (“se x é um homem, x é mortal”) é uma função verdadeira para qualquer argumento. A uma expressão deste tipo chama-se “quantificador”.

Além de “para todo o x”, o quantificador universal, existe também o quantificador particular “para algum x”, que diz que o que se lhe segue é verdadeiro para pelo menos um argumento. Então, “alguns cisnes são pretos” pode-se representar num dialecto fregiano como “para algum x, x é um cisne e x é preto”. Pode-se considerar que esta frase é equivalente a “existem coisas que são cisnes pretos”; e, na verdade, Frege usou o quantificador particular para representar a existência. Assim, “Deus existe” ou “há um Deus” é representada no seu sistema por “para algum x, x é Deus”.

O uso da nova notação para a quantificação permitiu-lhe apresentar um cálculo que formalizou a teoria da inferência de uma maneira mais rigorosa e mais geral do que a tradicional silogística aristotélica, a qual, até à época de Kant, fora considerada o supra-sumo da lógica. Depois de Frege, a lógica formal podia, pela primeira vez, lidar com argumentos que envolviam frases com quantificação múltipla, frases que eram, por assim dizer, quantificadas em ambos os extremos, tais como “ninguém conhece toda a gente” e “qualquer criança em idade escolar pode dominar qualquer língua”.

Anthony Kenny
História Concisa da Filosofia Ocidental (Lisboa: Temas e Debates, 1999)
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ISSN 1749-8457