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Crítica
5 de Março de 2008   Lógica

Prosa clara e rigor conceitual

Matheus Martins Silva
A Prova de Gödel
de Ernest Nagel e James R. Newman
Tradução de Gita K. Guinsburg
São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, 100 pp.

Este livro introduz o leitor a uma das descobertas mais importantes do século XX: os teoremas da incompletude de Gödel. Em 1931, Kurt Gödel, então um jovem matemático de 25 anos, publicou em um periódico alemão o artigo intitulado “Über formal unentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme” (“Sobre as Proposições Indecidíveis dos Principia Mathematica e Sistemas Correlatos”). As conclusões contidas em tal artigo são um divisor de águas na história da lógica e da matemática: sistemas dedutivos como a aritmética não podem ser completamente axiomatizados e quaisquer métodos que utilizemos para demonstrar a consistência desses sistemas serão tão complexos que sua consistência fica tão aberta a dúvidas quanto a dos próprios sistemas.

Em oito capítulos de prosa clara e rigor conceitual, Ernest Nagel e James Newman narram o percurso histórico que levaria à prova de Gödel. À medida que novas áreas da matemática foram dotadas com conjuntos de axiomas, surge no século XIX a esperança de que toda a matemática poderia ser dotada de um conjunto de axiomas. Se fosse possível fornecer uma axiomatização completa da aritmética, axiomatizar as demais áreas da matemática seria apenas uma questão de tempo. A metamatemática de Hilbert assim como os Principia de Russell são exemplos desses modelos axiomáticos que tinham como objetivo fornecer uma prova da aritmética. Essa esperança caiu por terra com as conclusões de Gödel.

Para ilustrar como isso acontece tomemos como exemplo a metamatemática de Hilbert. Ela procede a partir da seguinte distinção: A matemática constitui os sistemas formais estudados pelos matemáticos; a teoria acerca desses sistemas denomina-se “metamatemática”. As expressões que ocorrem na matemática devem ser compreendidas como isentas de sentido, o que importa são suas estruturas e o modo como se combinam. As expressões que ocorrem na metamatemática, por outro lado, são significativas, e será a partir dela que iremos avaliar se a aritmética é consistente: demonstrar que duas fórmulas contraditórias não podem ser ambas derivadas dos axiomas da aritmética é demonstrar que a aritmética é consistente. Mas, como Gödel demonstrou, esse projeto enfrenta dois obstáculos insuperáveis.

O primeiro obstáculo é demonstrado pelo Primeiro Teorema da Incompletude (prova da existência de proposições indecidíveis no cálculo dos Principia Mathematica e sistemas semelhantes): em qualquer sistema axiomático suficientemente amplo para expressar a aritmética é possível construir uma fórmula aritmética verdadeira F que é exprimível no sistema, mas que não é demonstrável no sistema. Tais fórmulas aritméticas verdadeiras têm um correspondente enunciado metamatemático que afirma que a própria fórmula não é verdadeira — isto é, F diz de si própria que não é demonstrável. Se F for demonstrável, então é uma verdade da aritmética. Por outro lado, como F afirma que ela própria não é demonstrável, a sua demonstração implica a sua falsidade. Mas se a aritmética admite uma fórmula e a sua negação como verdades, então é inconsistente. Portanto, F é verdadeira e não pode ser demonstrada na axiomatização da aritmética, pois se F pudesse ser demonstrada nessa axiomatização teríamos uma contradição. Logo, F é indecidível.

Como conseqüência, a axiomatização da aritmética somente poderá ser consistente se for inerentemente incompleta e (o que é trivial) só poderá ser completa se for inconsistente. Qualquer axiomatização consistente da aritmética é incapaz de abranger todas as verdades da aritmética — alguns sistemas podem abranger mais verdades do que outros, mas nenhum é capaz de abranger todas as verdades da aritmética.

O segundo obstáculo insuperável é demonstrado pelo Segundo Teorema da Incompletude de Gödel, que é um corolário do Primeiro (não é possível provar, no interior do cálculo dos Principia Mathematica e sistemas semelhantes, a consistência do próprio sistema): a consistência de um sistema axiomático suficientemente amplo para conter a aritmética não pode ser demonstrada no interior deste próprio sistema. Se a axiomatização da aritmética proposta por Hilbert for consistente, o enunciado metamatemático que representa a sua própria consistência não é demonstrável nessa axiomatização. A consistência de sistemas como a metamatemática de Hilbert somente pode ser demonstrada com o emprego de princípios logicamente mais complexos do que os próprios princípios da metamatemática de Hilbert.

As descobertas de Gödel têm grande importância, mas a extensão do seu alcance ainda não foi totalmente compreendida. Uma das razões para essa incompreensão é que as descobertas de Gödel tiveram o mesmo destino de outras descobertas importantes: foram tão deturpadas por interpretações capciosas de diletantes e intelectuais de quinta categoria que se torna difícil perceber sua real significância. O desfile de interpretações malucas vai desde filósofos pós-modernos, que vêem nisso o surgimento de uma ciência pós-moderna, até irracionalistas, que vêem nas conclusões de Gödel uma derrota da lógica clássica. Mas as descobertas de Gödel não têm nenhuma dessas implicações. Os filósofos pós-modernos, como de costume, não tem qualquer argumento para sustentar suas afirmações e a interpretação irracionalista ignora que o próprio Gödel forneceu demonstrações de consistência da lógica clássica (“The Completeness of the Axioms of the Functional Calculus of Logic”, 1930).

Uma conseqüência real dentre várias que podemos inferir das descobertas de Gödel, é que a verdade matemática não pode ser identificada com a dedutibilidade a partir de axiomas ou com meras convenções lingüísticas. Esse resultado deita por terra a epistemologia positivista que procurava explicar o conhecimento a priori reduzindo-o ao mero conhecimento lingüístico. Verdades como o último teorema de Fermat permaneceram como uma conjectura durante séculos até a descoberta de sua demonstração no séc XX. As justificativas racionalistas são inevitáveis nesse caso, pois não podemos esgotar tal verdade matemática em convenções lingüísticas. A razão é fonte de conhecimento substancial — tese defendida pelo próprio Gödel.

Outra conseqüência é que aquilo que denominamos de prova matemática nada tem a ver com um método axiomático formalizado. Isso porque os axiomas e regras de demonstração inicialmente fixadas não podem impor um limite à inventividade dos matemáticos e à sua capacidade para criar novas demonstrações — o que também vai ao encontro das justificativas racionalistas.

Não sou matemático mas, até onde posso acompanhar, o livro de Nagel e Newman explica a estrutura básica das demonstrações de Gödel de maneira acessível e sem perder a tecnicidade necessária nessas demonstrações. Outro mérito do livro é propiciar ao leitor os instrumentos conceituais necessários para essa compreensão: noções como axioma, teorema, modelo, consistência entre outras noções fundamentais são adequadamente apresentadas em cada capítulo. No entanto cabe fazer algumas ressalvas, não quanto à exposição dos autores, mas no que diz respeito a alguns descuidos na edição do livro: em algumas ocasiões simplesmente está faltando algumas palavras (será que a tradutora não viu que faltou algumas palavras?) assim como também falta um índice remissivo. Essas ressalvas, contudo, não prejudicam o livro como um todo, que é ainda uma das melhores introduções disponíveis às descobertas de Gödel e que continua a ser reeditado, desde 1958.

Matheus Martins Silva

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ISSN 1749-8457